Ouvindo o sinal das oito horas, Miguel correu para junto do templo do Carmo e, bem não eram ainda passados cinco minutos, logo viu chegar cuidadoso e apressado um menino, que era por força aquele de quem o moço loiro lhe dera os sinais.
Faça-se idéia da vivacidade personalizada: era esse menino, sem dúvida, com não mais de dezesseis anos; com cabelos excessivamente loiros e crespos; os olhos grandes, pretos, brilhantes e à flor do rosto, que, muito redondo, era ao mesmo tempo igualmente corado; o nariz pequeno, os lábios rubros; dentes belíssimos; o corpo delgado; e em todas as suas ações, em todos os seus movimentos ligeireza, rapidez, volubilidade: os olhos do menino brilhavam de noite como dois globos ardentes, em rotação contínua.
Miguel endireitou para ele, e a dois passos parou e ficou firme como um soldado, mas sem dizer palavra: o menino fitou-lhe seus dois olhos de um modo tão penetrante, tão perscrutador, tão forte que, a despeito da influência de sua maior idade, Miguel teve de voltar a cabeça por não poder encará-lo.
— Que é isso lá?... disse o menino com voz argentina e firme.
Miguel nada respondeu; tirando, porém, a mão do bolso, estendeu o braço e mostrou-lhe o anel.
O menino arrancou-lhe o anel da mão, e correu para baixo de um lampião; depois, voltando com igual presteza:
— Onde está o dono deste anel?... perguntou.
— Na minha casa.
— Pois partamos.
E, tomando o braço de Miguel, o menino obrigou-o a andar tão depressa, que quase corriam.
Depois de alguns minutos de marcha, Miguel teve vontade de travar conversação com o seu companheiro.
— O senhor, disse ele ao menino, é irmão daquele moço que está em minha casa?...
— Não.
— Mas é seu amigo?
— Sim.
— Entendo: não tem parentesco nenhum com ele?
— Não.
— Oh! ele parece ser muito bom moço.
— Sim.
— É mesmo natural desta terra?...
— Que lhe importa?...
Esta última resposta foi dada de um modo interrogativo; mas com um tom tão terminante, que Miguel convenceu-se para logo que aquele estômago de criança não cedia nem ao mais poderoso emético.
Portanto, decidiu-se a guardar silêncio. Assim chegaram a casa.
Apenas entrando no quarto do moço loiro, o menino correu para ele, e, abraçando-lhe as pernas, exclamou:
— Ah! padrinho!...
— Está bom, Carlos, está bom; disse sorrindo-se o moço; não há tempo a perder. Deve ir a casa que tu sabes, e entrega este bilhete à mesma pessoa a quem tens entregado os outros: o que trouxeres, deve ser-me dado, quando eu estiver só.
O menino recebeu um bilhete, que o moço tinha escrito na tarde desse dia, e desapareceu correndo.
Miguel, que pretendia colher muitas reflexões da entrevista dos dois, convenceu-se para logo, ao ver a maneira por que se explicava o moço, que ainda depois da volta do menino se deveria contentar com saber que ele se chamava Carlos, e que o moço era seu padrinho.
E, para maior pena, o moço foi pedir à mãe Sara que, quando voltasse o seu afilhado, o deixassem a sós com ele; de modo que Miguel abriu a porta ao pequeno Carlos, e teve de ficar ao pé de sua avó, até que, passado um quarto de hora, apareceram os dois na sala.
— Adeus, mãe Sara! disse o moço; eu me vou... e algum dia receberá novas minhas... Adeus, Miguel!... Adeus também minha pequena afilhada de bonita madrinha!... oh!... vem cá, meu anjinho; quero dar-te um beijo... não é verdade que tua madrinha te beija também? eu creio que devo vir a ser muito amigo dela...
— Meu filho, disse a velha, pois ainda tão fraco...
— Este menino tem o braço bem forte para me sustentar. Adeus, pois, meus amigos... obrigado!... muito obrigado!...
Feitas as últimas despedidas, o padrinho e o afilhado saíram, deixando a avó e o neto a pensar neles.
— Este rapaz, repetia a velha muitas vezes, tem cabeça de doido e coração de santo! sempre tão alegre e tão afável!... o brejeiro zombou de mim todo o dia, ao mesmo tempo que me abraçava, e chamava-me sua mãe!... eu não sei por que, mas a gente por força há de querer-lhe bem!
Entretanto, os dois caminhavam, como podia o ferido, escolhendo de preferência as ruas mais solitárias; de minuto a minuto o menino voltava para trás seus dois belos pirilampos, como para convencer-se de que não eram seguidos. Finalmente, chegando a uma rua escura e feia, cujo nome importa pouco saber, eles entraram em uma casa de triste aparência.
Essa casa era habitada por uma família tão necessitada, como aquela que recebera o ferido; mas este ocupava um pequeno sótão, que nela havia; e posto que devesse pagar aluguel a esta família, parecia pouco conhecido dela, pois que apenas do corredor deu as boas-noites, e começou a subir vagarosamente a escada do sótão, enquanto Carlos foi pedir a chave da porta.
Enfim, eles se acharam sentados defronte um do outro. Todo o sótão se compunha de uma saleta e dois pequenos quartos; neles não reinava nem luxo, nem miséria; era a morada de um homem solteiro arranjada um pouco menos à franciscana do que um quarto de estudante.
Quando o menino sentiu que seu padrinho já havia descansado, disse:
— Eu não sei por que meu padrinho, em lugar de me fazer ir todas as noites postar-me de sentinela junto ao Carmo, me não deixa antes vir encontrá-lo aqui!
— Porque poderiam seguir-te, ver-te entrar... e quem sabe as conseqüências?
— Ver-me entrar?... a mim?... perguntou o menino sacudindo a cabeça.
— Pois bem, meu vaidosinho, a cautela nunca fez mal... mas agora vamos ao que nos interessa: que novidades há?...
— Nenhuma.
— Quê!... pois nenhuma absolutamente?...
— Já disse até onde tinha chegado! ainda não fui mais longe.
— Que tens ouvido?...
— Nada.
— Que tens visto?
— Coisa nenhuma.
— Que tens pensado... sentido... suspeitado?...
— Absolutamente nada.
— É porque tens sido um tolo.
— Qual tolo, meu padrinho! lá, de dia trabalha-se...
— E de noite?
— Dorme-se.
O moço não pôde deixar de rir-se da resposta de seu afilhado; alguns minutos depois continuou no seu interrogatório.
— E tu onde dormes?
— No sótão... mesmo por cima do quarto dele.
— No sótão?... ah! tu já me tinhas dito; bem bom, Carlos, bem bom; mas isso é quase uma honra...
— Foi em atenção àquela senhora que falou por mim.
— Eu sei... eu sei; porém, vamos: tu dormes no sótão, mesmo por cima do quarto dele... eis aí meio caminho andado; deverias ter visto e ouvido muita coisa...
— E o forro?...
— Arranca-se uma tábua.
— E a bulha?...
— Então desce-se ao sobrado para espreitar...
— E as portas?
— Que têm as portas?
— Durmo trancado.
— Pateta!... não há chaves falsas no mundo?...
— E o tempo que se gasta em procurá-las?...
— Pois bem... e o tempo que se tem perdido?...
— Qual perdido, meu padrinho!... fiz coisa melhor do que tudo isso.
— E então para que me quebras a cabeça? fala.
— No sótão e junto da minha cama há uma tábua quebrada no assoalho; arranquei-a.
— E depois?...
— Restava o forro: arranjei uma verruma e, à mercê dela, fiz um buraco, que chega para metade de meu olho.
— Bem; e depois?...
— Aprontei um pauzinho redondo, e pintado de branco...
— E para que essa asneira?...
— Para ter o buraco tapado de dia.
— Está bom... está bom; tens razão, adiante...
— Às dez horas de todas as noites apago a minha luz; levanto com cuidado a tábua velha do assoalho; tiro o meu pauzinho do forro; e fico com o olho no buraco.
— Vamos... vamos...
— Quando ele não tem divertimento, recolhe-se às dez horas.
— E o que faz?...
— Lê livros ou periódicos.
— E depois?...
— Despe-se, e vai deitar-se.
— E depois?...
— Dorme.
— E enfim?...
— E, enfim, vou eu também dormir.
— Pois é preciso não dormir, Carlos.
— Mas, meu padrinho, é que se não pode trabalhar no dia seguinte.
— Pois faze-te doente.
— Dar-me-ão remédios.
— Toma-os.
— E se eu morrer?...
— Mandarei fazer-te um riquíssimo enterro.
— Obrigado, meu padrinho.
— Tu és um preguiçoso... um descuidado, e um tolo!... não tens feito nada... nada... nem trabalhado por fazer.
O menino pareceu vivamente incomodar-se com o desgosto de seu padrinho.
— Mas... eu não pensava!... o que é que se pode colher de um homem que dorme?!...
— Oh!... o sono, Carlos, o sono pode ser bem fatal a um homem! quem sabe se ele não sonha?... quem te assegura que ele em seus sonhos não possa dizer alguma coisa que nos seja útil?... Carlos, o sonho do homem é mil vezes o traidor de seus pensamentos!... e, portanto, é preciso que tu o observes de dia e de noite; no trabalho e no descanso; na vigília e no sono!
— Porém, eu não hei de dormir nunca?!...
— Também tens razão, disse o moço rindo-se de novo; façamos, portanto, um ajuste; a que horas dormes?...
— À meia-noite, e às vezes depois.
— E quando te levantas?...
— Às cinco e meia.
— Bem: vela depois que ele dormir mais uma hora, e dorme quatro e meia.
— Velarei hora e meia e dormirei quatro.
— Carlos, tu és muito bom.
— Oh! meu padrinho! exclamou o menino abraçando o moço.
— Precisas de dinheiro? perguntou este.
— Ainda tenho bastante.
— Excelente rapaz!
— Meu padrinho está contente de mim?...
— O mais que é possível!
O menino demonstrou o seu prazer, saltando e batendo palmas loucamente.
— Aquieta-te, travesso, disso o moço; ainda temos que falar.
O menino tomou de novo o seu lugar; e ficou mudo, sério e atento como um ministro de Estado que vai ouvir uma interpelação.
— Durante estes cinco dias, observa o nosso homem, se nada colheres, fica em casa; se houver novidade ou precisares de alguma coisa, achar-me-ás aqui; depois, será como dantes, às oito horas da noite junto ao templo do Carmo.
— Estou ciente.
— Agora ajuda-me a mudar esta roupa, que ainda tem manchas de sangue.
— Foi uma queda horrível, não é assim, meu padrinho?
— Sim... uma queda; mas quem te disse que foi horrível?...
— Eu pensava... uma queda, em que se quebra a cabeça...
— Pois eu não quero que penses desse modo, Carlos.
— Então como?...
— Foi uma queda abençoada, ouviste?
— Está dito, meu padrinho: foi uma queda abençoada.
Meia hora depois Carlos, deixando seu padrinho de vestidos mudados, com um lenço limpo na cabeça, e sossegadamente deitado, despediu-se dele e ia descer:
— Carlos, disse ainda o moço, dize à família que mora embaixo que fico estes cinco dias em casa; e, por conseqüência, que continue a mandar-me almoço, jantar e ceia; principiando pela ceia, ouviste?...
— Sim, meu padrinho!... respondeu Carlos descendo rapidamente a escada.
— Grata criança!... disse o moço, quando o viu partir.
No entanto, o menino, depois de cumprir a recomendação de seu padrinho, pôs a cabeça fora da rótula, examinou se alguém havia de espreita e, vendo a rua solitária, saiu, e marchou precipitadamente, olhando muitas vezes para trás, como era de seu costume.
A dedicação dessa criança ao moço loiro deveria ter por origem um sentimento bem nobre!
Às dez horas da noite Carlos entrava pela porta de uma elegante casa, dizendo consigo mesmo:
— Esta noite não durmo sem ouvir sermão; também nunca me recolhi tão tarde.
E ao mesmo tempo o moço loiro sentava-se à mesa de seu pequeno quarto e se dispunha a cear o que acabavam de trazer-lhe.
Ao amanhecer do dia seguinte a velha Sara despertou e, lembrando-se do moço ferido... sem poder conter-se de si mesma, passou a mão por baixo de seu travesseiro, e surpreendida tirou daí uma carteira...
Imediatamente gritou por Miguel, que se levantou espantado; mas para logo seu espanto se tornou em vivo prazer; pois viu que a carteira, se não continha soma capaz de enriquecer uma família, lhes trazia meios de melhorar muito sua posição.
Raquel, a quem foi relatado o sonho do moço e o aparecimento da carteira, compreendeu facilmente qual tinha sido a mão de gênio benfazejo.