A solidão é o espaço encantado, onde o espírito se derrama livremente...
Passa-se nela longas horas em uma doce embriaguez de reflexões, engolfado em místico e jamais interrompido silêncio... nulificam-se aí os sentidos com a mais completa indiferença a tudo que os rodeia... não se vê o que existe a dois palmos dos olhos... não se ouve a avezinha que modula na árvore mais próxima... não se sente a aurora que principia a romper, nem as trevas que começam a difundir-se; está levantada uma barreira entre o mundo e a alma; e, mais que nunca dona de si própria, ela rumina o passado... reflete sobre o presente... e sonha de ordinário com o futuro...
Oh!... então é um milagre, quando os lábios se sorriem, a não ser com amarga ironia!... porque também, para dizer a verdade, o homem tem na sua vida tão poucas coisas de que sorrir-se alegremente!...
Então se está quase sempre ou sempre sob o domínio da melancolia.
Mas esse estado não se parece nada com o desgosto de si mesmo, que, como o castigo de Deus, enche de fel o coração do mau.
Esse estado é o que convém à imaginação brilhante, que se sente enjoada e se vinga do mundo de gelo e de cifras, indo, livre dos grilhões da sociedade, derreter-se em arabescos de fogo...
É o fecundo sonhar do poeta...
É não dormir, e não velar; é um viver entre a vigília e o sono, que se assemelha à hora do crepúsculo, que não é dia nem noite.
A natureza parece haver criado aqui e ali sítios moldados a esse inefável gozo de ilusões, como altares erguidos ao espírito no templo da solidão.
E os homens nisso, como em tudo mais, têm pretendido com a arte arremedar as obras inimitáveis do Senhor.
No jardim da casa ocupada por Hugo de Mendonça se encontrava um desses lugares silenciosos e melancólicos, que convidam a meditar.
As pequenas salas que davam para os terraços levantados aos lados do pórtico singelo da rua solitária, se escondiam cercadas por grupos de frondosas árvores, abrindo para o interior do jardim duas janelas, defronte de cada uma das quais outras tantas palmeiras derramavam seus ramos arqueados.
Pois que essa rua é ainda agora mesmo muito pouco freqüentada; em certas horas do dia reinava aí silêncio profundo... solidão completa... e então as pequenas salas desabitadas e sombrias, onde chegava apenas o gemer das ondas e o ciciar das palmeiras, tinham inexplicável encanto.
Honorina, já naturalmente melancólica e contemplativa, e escrava ainda mais do terno segredo de seu amor, desde que viera com sua família habitar a elegante casa da Rua da Glória, se aprazia em ir passar as últimas horas do dia naquela das salas que ficava do lado do mar.
Hugo, respeitando os inocentes desejos de sua filha, não só deixou sempre que ela fosse na companhia de Lúcia passar as tardes na sala predileta, como fê-la mobiliar com simplicidade e gosto; de modo que, ao aproximar-se a hora do crepúsculo, Honorina e Lúcia dirigiam-se para os terraços; e, enquanto esta descansava à sombra das palmeiras, aquela ia, em completa liberdade, pensar no seu amor.
Era, portanto, aí que Honorina dividia os seus pensamentos e suspiros pelo moço loiro e pela amiga de seu peito; e era nesse lugar, enfim, que um dia, repassada de angústia, deveria vir chorar a desgraça de seu pai... e a posição melindrosa em que tinha de ver-se colocada.
Não havia chegado ainda a seu termo o dia em que Hugo de Mendonça recebera a notícia de seu inesperado infortúnio, e logo depois a carta de Lauro.
O sol começava a moderar o calor de seus raios; uma aragem branda e suave vinha soprando docemente.
Honorina e Lúcia encaminharam-se para os terraços da rua solitária; e, como sempre, Lúcia ficou sentada à sombra de uma palmeira, e Honorina subiu para a sala do lado do mar.
E ela meditava...
Não lhe restava a menor dúvida... a lei do destino, a força das circunstâncias a tinha colocado entre dois terríveis extremos!... dois pensamentos deviam ser medidos... um de dois tormentos escolhido:
Ou a miséria de seu pai.
Ou o sacrifício de seu amor.
De um lado estava um ancião respeitável, que a carregara pequenina; que depois de lhe ter dado a existência, lhe dera ainda tudo mais que pode dar um extremoso amor de pai; que, nas tristes circunstâncias em que se achava, não ousava oferecer um conselho; não queria o menor sacrifício; não desenhava aos olhos dela o painel da miséria, que podia ser para longe lançada com uma única palavra... enfim, de um lado estava seu pai: seu pai, que ela amava como a mais extremosa das filhas, abatido... magro... desfigurado... enfermo... pedindo compaixão e piedade à sua filha!...
E a filha poderia negar compaixão e piedade a seu pai?...
Mas do outro lado levantava-se um mancebo, nobre, ardente e destemido; um mancebo que lhe salvara a vida... que a amava com paixão desmedida, e que era amado com mais paixão ainda... enfim, do outro lado levantava-se o moço loiro, aflito... silencioso... que ia passando sem deixar uma só queixa... e que ia indo com o desespero no coração... ia indo...
E para onde se vai quando se tem no coração o desespero?!...
E essas duas imagens, a de seu pai, e a do moço loiro, se sucediam em seu espírito uma à outra, três, vinte, cem, mil vezes sempre as mesmas, sempre do mesmo modo; como as ondas do mar repetidas sempre!...
Falava primeiro o amor de seu berço, o amor da infância, o amor que votava àquele, que, pegando-lhe pelas mãozinhas, lhe tinha ensinado a andar... que se sorrira ao seu primeiro sorrir, e chorara de prazer à sua primeira palavra... falava primeiro o amor do pai...
Falava depois o primeiro amor de seu virginal coração... oh! o primeiro amor!... o eterno sentimento, que ainda quando se não realizam seus anelos, deixa, papa jamais extinguir-se, seu doce e fragrante aroma impregnado na alma!... o primeiro amor! almo desperto do sono da inocência! chama abrasadora da juventude... pura, como a juventude; tão sem vil ambição como a juventude; bela e cheia de esperança, como ainda a juventude!... o primeiro amor! e falava então o amor do moço loiro...
E depois ela media suas próprias forças...
Ardente e devotada achava-se capaz de ser mártir... não hesitaria em sacrificar pela felicidade de seu pai a sua própria vida... tudo... tudo... oh! mas aquilo que ela dizia ser a única luz que pode tornar brilhante o caminho da vida para a mulher?...
E apenas com dezesseis anos, tão moça ainda! ela olhava para a vasta extensão que lhe cumpria atravessar no mundo, e tudo se lhe antolhava feio, perigoso, escuro, horrível... e não longe, pronto a correr para seu lado, estava um moço loiro, que, com lâmpada mágica na mão, mudando a face de toda essa cena amedrontadora, prometia levá-la por um caminho de flores, risonha e feliz até o fim da viagem.
Afora a imagem do moço loiro, não via mais nada no campo da vida... tudo era negro... e feio... apenas na outra extremidade do vasto campo podia descobrir a pálida figura do descanso assentada na beira de uma cova...
Oh!... se ao menos lhe dessem a certeza de não padecer muito... de morrer cedo!...
E de novo lembrava-se de seu pai... não; nunca de seus lábios sairia a sentença da desgraça dele... mas o sacrifício de seu amor?!... era muito... muito!...
E Deus não podia amaldiçoá-la por vê-la hesitando; e o mundo não tinha o direito de chamá-la ingrata; porque Deus está vendo a sorte que os homens prescrevem à mulher; e o mundo deve, antes de tudo, corar de si próprio!!!...
A verdade é esta: a mulher só tem na vida o amor; sacrificar seu único bem é perder tudo... é deixar-se morrer de um modo cruel.
Porque, ou seja vício de educação, ou de qual causa estimarem dar, a sorte da mulher é apoucada e mesquinha.
Na divisão dos direitos e deveres coube-lhe um papel, sem dúvida respeitável e nobre debaixo de um ponto de vista; porém, em tudo mais secundário e quimérico, a mulher chega a ser mãe de família... e mais nada.
Primeiro, felizmente adormecida no doce cativeiro de seus pais, acorda com um gemido para passar ao de seu tutor; ou se sorri, recebendo as cadeias que lhe lança seu marido, sujeita desde que nasce... sujeita até que morre, tem sempre ao pé de si um homem para pensar e desejar por ela; para, pelo prazer dele, medir o seu... é uma criança, que sempre se vigia... um cego, que se leva pela mão; ou, ao muito, quando consegue ser amada, uma escrava, que se prende em um altar, uma divindade que se tem em ferros, e a quem se dá o nome de senhora!...
E a mulher há de por força sujeitar-se à lei, que os homens lhe têm imposto: se alguma tentasse reaver... exercer direitos muito nobres e legítimos, que Deus lhe concedeu, e o mundo lhe arranca; se alguma ousasse dizer — eu sou livre, — teria horríveis tempestades a assoberbar, e, por fim, sucumbiria; porque o mundo entende que só há dois caminhos para a mulher: o da escravidão e o da vergonha.
E ainda quando ela, sentindo-se insultada, gritasse — calúnia! calúnia!... o mundo rir-se-ia... e responderia sempre — vergonha!... vergonha!... porque somente o homem tem o direito de fazer face à opinião dos outros... e a mulher não pode ser senão aquilo que o mundo quiser que ela seja...
E, apertada no estreito círculo dos deveres domésticos, a mulher não terá nunca outras honras, outra glória a desejar, senão aquelas que se devem à fidelidade da esposa, à extremosa maternidade, às virtudes domésticas enfim; e, quando uma desgraça cair sobre ela e sobre a sua família, ela, a quem se não permite outro cuidado, outro culto, que não seja o de sua família, e o de si, isto é, ela que está apertada no estreito círculo dos deveres domésticos, é mais que o homem lamentável.
Porque o homem tem o comércio... as armas... a política... muito mais ainda... e, finalmente, a mulher.
E a mulher tem unicamente o homem.
Ora, se ele, que pode ser distraído por tantos interesses diversos, no tão vasto campo que se lhe abre para dar pasto a seu espírito, ainda assim é digno de lástima quando desposa uma mulher que não ama, ela, se abafa uma paixão em que se esperançava e liga sua vida inteira a um estranho, a quem jura obediência e amor eterno, consuma o maior de todos os sacrifícios, apaga assim a só luz, que lhe pode tornar brilhante o caminho da vida.
Por conseqüência, ninguém deve exigir de uma mulher o sacrifício de seu amor.
Porque a única esperança que ela pode ter na vida é amar e ser amada.
Porque o único direito que se lhe concede no mundo é (às vezes) o de aceitar ou não um noivo.
Porque é justo que ela escolha entre todas as cadeias, que lhe oferecem, aquelas que menos pesadas julgue, e mais bem douradas pareçam a seus olhos.
Porque, enfim, é necessário que a mulher ame a seu marido, para que possa ser esposa feliz e mãe extremosa.
E, sem o querer, sem o pensar, Hugo de Mendonça pede à sua filha o sacrifício de seu amor tão terno e tão doce; pois, ainda que ele tenho dito — responde livremente — não pode dar-se verdadeira liberdade em Honorina, que a todo o momento vê diante de seus olhos a imagem da pobreza nua... desgrenhada... dolorosa... estendendo emagrecidos braços para prender entre eles a seu pai.
E, portanto, terá Honorina de ser uma nova mártir, que vá aumentar o número já tão crescido dessas outras nobres mártires, que aí vão passando pela vida... pálidas... silenciosas... e que muita gente as julga felizes; porque elas, sempre generosas, sabem abafar seus suspiros... engolir seus gemidos... e esconder seus tormentos de um mundo egoísta e sem piedade, no qual a mulher é quase sempre uma vítima!...
Mas a meditação da moça foi interrompida por Lúcia, que entrou na sala.
— Sr.ª D. Honorina! disse ela.
— O que é, mãe Lúcia?... respondeu a jovem levantando a cabeça, que tinha pousado sobre uma mão.
— Um pajem, que não conheci, chamou-me da porta do jardim, e, dizendo-se escravo do Sr. Jorge, entregou-me esta carta, que da parte da Sr.ª D. Raquel lhe é dirigida.
— Oh!... a minha Raquel!... dá-ma... mas esse pajem, mãe Lúcia?...
— Retirou-se imediatamente.
— Embora... é uma carta da minha Raquel... que virá talvez animar-me um pouco.
Honorina ficou outra vez só e abriu a carta; havia, além de um curto bilhete, algumas páginas escritas em separado...
A moça leu primeiramente o bilhete com violenta comoção.
"Honorina. Eu sei tudo! a casa do Sr. Hugo de Mendonça vai desmoronar-se... e um homem se oferece para sustê-la: a esperança de teu pai está toda concentrada em ti... pende de teus lábios; e tu salvarás o autor de teus dias, e a família do nome que tens, aceitando a proposição de teu primo. Oh!... e que filha resistiria ao aspecto da desgraça de um pai?!... se eu fosse rico!... se eu fosse rico, iria de joelhos despejar meus tesouros a teus pés; mas tão pobre!... que importa que meu amor seja ardente e desmedido? de que vale, de que serve o amor de um pobre?... é, portanto, preciso esquecer... apagar para sempre a memória do passado; mas, Honorina, se esta minha paixão tão desgraçada... se esta, que eu morro, morte do coração pode merecer alguma piedade, aceita, recebe, recebe essas páginas do livro de minha alma!!!... a derradeira esperança que me resta, é que elas serão lidas por teus olhos, e finalmente, queimando-as junto de ti, vê-las-ás tornadas em cinza feia e negra... negra, como o futuro do pobre... como o meu futuro! aceita-as, pois, e adeus!... sê feliz... esquece-me..."
Terminando a leitura do bilhete, a moça misturou duas lágrimas brilhantes com um sorriso acerbo, cheio do fel da ironia, e murmurou tristemente:
— Como todos estes homens, a quem eu amo, desconhecem o meu coração!... como é que meu pai pôde dizer-me — falarás livremente —! como é que este homem animou-se a escrever-me — de que vale, de que serve o amor de um pobre!... — então este... este me compreende ainda menos do que meu pai!...
E depois começou a ler as páginas do livro da alma do moço loiro.