A João Lopes
UM PADRE ESCRAVOCRATA!... Horror!
Um padre, o apóstolo da Igreja, que deveria ser o arrimo dos que sofrem, o sacrário da bondade, o amparo da inocência, o atleta civilizador da cruz, a cornucópia do amor, das bênçãos imaculadas, o reflexo do Cristo...
Um padre que comunga, que bate nos peitos, religiosamente, automaticamente, que se confessa, que jejua, que reza o — Orate fratres, que prega os preceitos evangélicos, bradando aos que caem surge et ambula.
Um escravocrata de... batina e breviário... horror!
Fazer da Igreja uma senzala, dos dogmas sacros leis de impiedade, da estola um vergalho, do missal um prostíbulo...
Um padre, amancebado com a treva, de espingarda a tiracolo como um pirata negreiro, de navalha em punho, como um garoto, para assassinar a consciência.
Um canibal que pega nos instintos e atira-os à vala comum da noite da matéria onde se revolvem as larvas esverdeadas e vítreas da podridão moral.
Um padre que benze-se e reza, instante a instante, que gagueja à frente do cadáver o aforismo de Horácio — Hodie mihi cras tibi.
Um padre que deixando explosir todas as interjeições da ira, estigmatiza a abolição.
Ela há de fazer-se, malgrado os exorcismos crus dos padres escravocratas; depende de um esforço moral e os esforços morais são, quase sempre, para a alta filosofia, — mais do que os esforços físicos — o fio condutor da restauração política de um país!...
O interesse egoístico de um indivíduo não pode prevalecer sobre o interesse coletivo de uma nação, disse-o um moço de alevantado talento, Artur Rocha.
Não é com a ênfase dogmática do didatismo ou com a fraseologia tecnológica dos cinzelados folhetins de Teófilo Gautier que o trabalho da abolição se fará.
Mas com a palavra educada, vibrante — essa palavra que fulmina —profunda, nova, salutar como as teorias de Darwin.
Com a palavra inflamável, com a palavra que é o raio e dinamite, como o era na boca de Gambetta, a maior concretização do estupendo — depois do sol.
A palavra que ri... de indignação; um riso convulso... de réprobo, funambulesco... de jogral.
Um riso que atravessa séculos como o de Voltaire.
Um riso aberto, franco, eloqüentemente sinistro.
O riso das trevas, na noite do calvário.
O riso de um inferno... dantesco.
Ouves, padre?...
Compreendes, sacerdote?...
Entendes, apóstolo?...
Então para que empunhas o chicote e vais vibrando, vibrando, sem compaixão, sem amor, sem te lembrares daquele olhar doce e aflitivo que tinha sobre a cruz, o filho de Maria?...
O filho de Maria, sabes?!...
Aquele revolucionário do bem e aquele cordeiro manso, manso como um ósculo da alvorada nas grimpas da montanha, como o luar a se esbater num lago diamantino...
Lembras-te?!...
Era tão triste aquilo...
Não era padre, ó padre?!...
Não havia naquela suprema angústia, naquela dor cruciante, naquela agonia espedaçadora, as mesmas contorções de uma cólica frenética, os mesmos arrancos informes de um escravo?...
Não compreendes que se açoitares um mísero que for pai, uma desgraçada que for mãe, as bocas dos filhinhos, daquelas criancinhas negras, sintetizando o remorso, o aguilhão da tua consciência, se abrirão nuns gritos desoladores que, corno uns bisturis envenenados, trespassar-te-ão as carnes?...
Não compreendes que de seus olhos, acostumados a paralisarem-se ante o terror, irromperão as lágrimas, esse líquido precioso das alminhas inocentes?!!... Pois tu, nunca choraste?!...
Nunca sentiste os engasgos de um soluço saltarem-te pela garganta, quando te lembras de trocar as tuas magníficas conquistas, os teus manjares especiais, os teus licores dulçorosíssimos pela noite escura, muito escura, onde grasnam surdamente as aves da treva, onde Dante se acentua no Lasciate ogni speranza, onde os espíritos vis desaparecem e os Homeros e Camões e Virgílios surgem e se levantam pelo braço hercúleo da posteridade, pelo fôlego intérmino e secular da História?
Nunca?!...
Sim, tu estás comigo, padre!...
Estás!...
És bondoso, eu sei, tens a alma tão serena e tão lúcida como uma imagem de N.S. da Conceição.
Eu sei disso!...
Olha, quando morreres — se é que morres — irás de palmito e capela, na mudez dos justos e as virgens tímidas e cloróticas, entoando grave De profundis, murmurarão lacrimosas:
— Coitado, foi o pai carinhoso das donzelas...
Requiescat in pace!...
Que bonito será, não!...
E depois o céu!
Sim, porque tu irás para o céu!
Não crês no céu, padre?
Pois crê, esses filólogos mentem, têm princípios errôneos e tu, padre, és um sábio...
Tu és bom...
Porém... por Deus, como é que vendes a Cristo como um quilo de carne verde no mercado?!...
Ah! É verdade, és muito pobre, andas com os sapatos rotos, não tens que comer e... és muito caridoso...
Mas, escuta, vem cá: —
Eu tenho também minhas fantasias; gosto de sonhar às vezes com o azul.
O Azul!...
Deslumbro-me quando o sol se atufa no oceano, espadanando os raios purpureados, como flechas de fogo, pela enormidade côncava do espaço; inebrio-me quando a natureza com seu tropicalismo, ergue-se do banho de alvoradas, jorrando nos organismos de ouro o licor olímpico e santo do ideal, as músicas maviosíssimas e puras da inspiração, nos crânios estrelejados!...
Pois façamos uma coisa:
Eu escrevo um livro de versos que intitularei: O ABUTRE de BATINA
Puros alexandrinos, todos iguais, corretos, com os acentos indispensáveis, com aquele tic da sexta, — tipo elzevir, papel melado — e ofereço-to, dou-to.
Prescindo dos meus direitos de autor e tu o assinas!...
Com os diabos, hás de ter influência no teu círculo.
Imprimes um milhão de exemplares, vende-os e assim terás das loiras para a tua subsistência, porque tu és paupérrimo, padre, e necessitas mesmo de dinheiro, porque tens família, muitos afilhados que te pedem a bênção e precisas dar-lhes no dia de teu santo nome um mimo qualquer.
Faz isso, mas... não te metas com o abolicionismo; é a idéia que se avigora.
Talvez digas, mastigando o teu latim: — Primo vivere deinde philosophare.
Mas é porque tu és míope e os míopes não podem encarar o sol... Mas eu dou-te uns óculos, uns óculos feitos da mais fina pele dos negros que tu azorragas...
Pode ser que a influência animal da matéria excite o espírito e que tu... vejas.
Pode ser...
Há cegos de nascença que vêem... pelos olhos da alma.
E se tu és padre e se tu és metafísico... deves ter alma...
Compreendes?...
Faz-se preciso que desapareçam os Torquemadas, os Arbues, maceradores da carne, como tu, padre.
Em vez de prédicas beatíficas, em vez de reverências hipócritas, proclama antes a insurreição... Tens dentro de ti, bate-te no peito, nas palpitações da seiva, um coração que eu penso não ser um músculo oco.
Uma piedade justa, que não desdoura, que não humilha; honesta como a intenção destes pontos e vírgulas, franca como a expansibilidade do aroma.
Vibra-o pois, fibra por fibra, se não queres que os meus ditirambos e sarcasmos, quentes, inflamados, como brasas, persigam-te eternamente, por toda a parte, no fundo de tua consciência, como uns outros medonhos Camilos de Zola; vibra-o se não queres que eu te estoure na cabeça um conto sinistro, negro, a Edgar Poe.
É tempo de zurzirmos os escravocratas no tronco do direito, a vergastadas de luz...
Sejam-te as virtudes teologais, padre, — a liberdade, a igualdade e a fraternidade — maravilhosa trilogia do amor.
Unge-te nas claridões modernas e expansivas dessas três veias — artérias da verdadeira Filosofia Universal.