Pois, senhores, deveras não sabíamos que nos nossos escritos se encerrasse a preconização da glória militar. Glória, glória militar! quem poderia imaginá-la num país que não dispõe sequer dos mais simples meios para a própria defesa? Glória quer dizer arrojo, quer dizer ambição, quer dizer resplendor, quer dizer superioridade, quer dizer força. E de todas essas qualidades a situação brasileira é a mais perfeita negativa. Se alguma coisa, a que se empreste esse fulgurante, pudéssemos almejar ao Brasil, pudéssemos almejar ao governo do Sr. Campos Sales, seria a de que se contentava aquele rei e aquele reino cantados por Béranger:
Il était un roi d’Yvetot
Peu connu dans l’histoire,
Se levant tard, se couchant tôt,
Dormant fort bien SANS GLOIRE.
O mais a que, no país e na corte de Yvetot, se pode aspirar, é a ter as portas seguras, para se entregar a gente, ao menos, em sossego às funções domésticas, e dormir à vontade. A Imprensa, quanto à defesa nacional, não tem pedido mais. Que contemos com bons guardas à soalheira de casa, para não estremunhar a desoras com a entrada de visitas pelas janelas, era quanto impetrávamos, a bem desse descanso tão caroável à nossa sesta e ao nosso sono. Querem, porém, os nossos antagonistas que de tal não exista necessidade nenhuma. Em paragens, onde não há maraus e pilhantes, a polícia está feita pela mera pacatez dos vizinhos. E entre nacionalidades, que se respeitam, não há pilhantes, nem maraus. Se o mundo, por aí além, cheirasse este tríplice extrato dos livros de Salomão, escusada seria a filantropia russa, a conferência do desarmamento e o entusiasmo da mensagem presidencial pela iniciativa do Czar.
Mas tenham ao menos uma pouca de caridade com o valor das palavras, para não confundir a prudência dos assustadiços com a audácia dos heróis. Pretender à segurança do país dentro nas suas fronteiras não é requestar as aventuras de Marte. Não conheceríamos o nosso lugar, se pretendêssemos contestar a Talleyrand o mérito de haver descoberto que a glória cria heróis e o desprezo da glória grandes homens. Basta que nesta galera não metamos a glória, para a desdenhar, ou encarecer, e nos contentemos com o sensato conselho daquele liberal inglês, Sydney Smith, nas Memórias de Lady Holland: Não busques a glória, mas foge da vergonha. Avoid shame, but do not seek glory.
O que devem ter em mente os povos sensatos, o que sobretudo são obrigados a ter em mira os povos fracos, é, sem cogitar de glória, evitar a ignomínia: a perda da sua existência e da sua honra pela de sua respeitabilidade e do seu território. Cada qual, neste mundo, mas principalmente aqueles com que não foi pródiga a natureza dos dotes da robustez, deve-se ater aos limites do seu modesto quinhão na partilha do destino.
Intra fortunam quisque debet manere suam.
Mas, para que esse mesmo se lhe não arrebate, a ele se deve aferrar com todas as energias da sua consciência, do seu interesse e da sua indignação. Há uma coisa, que a fortuna não pode roubar aos seus deserdados: a previdência. Infelizmente, é de ordinário a primeira, que, por culpa deles mesmos, se despede dos abatidos e dos desditosos.
Crede mihi: miseros prudentia prima relinquit.
Uma nação, que se abandona a si própria, é uma nação oferecida à conquista. Por isso, porque nós nos abandonamos, porque elevamos agora esse abandono à altura de sistema e de programa, somos hoje uma nação ameaçada. Temos já no nosso próprio território a brecha da absorção estrangeira, e não a sentimos, e não a queremos ver, e não somos capazes de iniciar uma reação benfazeja, que prepare, pela reconstituição do nosso organismo, a resistência normal de um povo, que se sente, que se afirma, e que se salva.
Acaso não saberemos nós, aqui n’A Imprensa, que não bastam munições, armas e soldados, para fechar ao estrangeiro uma nacionalidade a ele aberta pela sua própria decomposição? Tanto o sentimos infinitamente mais do que os nossos contraditores, que é de nós que tem partido, contra o funesto imobilismo deles, o aviso de que a nossa organização política nos conduz fatalmente, pela sua influência moral, como pelas propriedades dispersivas do seu regímen, à dissolução do país.
A revisão constitucional, não a consideramos jamais como simples salvatério para a forma republicana. Sempre a definimos como condição essencial e urgentíssima para a preservação da nacionalidade brasileira. As instituições atuais puseram a pátria nos estados. Com elas, enquanto durarem, não teremos senão o patriotismo localista, que reduz a União a um símbolo convencional sem realidade nenhuma. Do sentimento brasileiro não resta mais que a farragem do entusiasmo por subscrição nas estátuas, nos centenários e nas datas nacionais. A defesa do país está mortalmente ferida nos seus centros orgânicos pelo feudalismo da autonomia dos governadores. Um tal sistema não pode subsistir. Se se não reformar em prevenção do perigo iminente, há de cair em presença dele, com a nação sacrificada. A questão da nossa integridade liga-se à da nossa unidade, a da nossa unidade à da reorganização do nosso regímen.
Seguir-se-á daí, porém, que antes de obtida a reforma política não devamos lançar, quando menos, as primeiras bases da nossa proteção militar contra o estrangeiro? Negando-nos a revisão constitucional, os idólatras da área santa não nos permitirão sequer a defesa nacional? A imprensa não tem obrigação de observar a pragmática das chancelarias. Seu respeito pelas nações estrangeiras e pela dignidade dos seus representantes não é incompatível com o sacerdócio de ministrar ao país a verdade. Ao país é preciso dizer, pois, que o território nacional não tem, neste momento, outras garantias mais que a tradição da nossa existência, a sombra do nosso passado e a boa-fé dos nossos vizinhos.
Mas será preciso estar de mamadeira ainda na idade adulta, para ignorar que, entre as nações, não há vínculos morais, cuja estabilidade resista ao interesse. Somos hoje em dia um país, cuja armada não tem navios, nem marinheiros, e cujo exército está quase sem munições. Em quinze dias o exército argentino, que não é um nome, pode estar, com inútil resistência, no coração do Rio Grande do Sul, em pouco mais tempo nas fronteiras do Paraná e S. Paulo, cujo caminho o seu estado maior estudou cuidadosamente no rastro de Gumercindo. Por outro lado, em quinze dias a esquadra argentina, gerada nas entranhas do sentimento nacional por entre as atribulações da miséria financeira, poderá dominar toda a costa do Brasil, bombardeando ou bloqueando os nossos portos, interceptando as comunicações da capital com o Norte inteiro, e impondo ao nosso Governo uma capitulação, onde poderá não haver sangue, mas haverá ruína pecuniária e territorial.
Esta a verdade. Não nos forcem, pela chicana de certas contraditas, a acentuar o traço na demonstração. Melhor será não mexerem no assunto. Melius non tangere, clamo. No relatório do Ministério da Marinha, o mapa do material flutuante abrange duas páginas. Quem haverá, porém, entre profissionais, aqui, ou no estrangeiro, que se iluda com essa parada ridícula de cascas de noz, lanchas, rebocadores, barcos velhos e inválidas carcaças? Que vem a ser esse Teffé e esse Juruema, a esquadra a cuja custódia se confiam as regiões, onde campeia o Sr. Paravicini, e flutua a bandeira americana? Dois avisos, com um canhão de trinta e sete e duas metralhadoras de três canos cada uma. Não é de palmo a diferença entre essa e as esquadras do Alto Uruguai, de Mato Grosso, do Rio Grande. Tudo velhices flutuantes, mentiras navais, tartarugas de quilha. Somos, pois, um país marítimo, existente hoje entre os dois países marítimos, que o ladeiam só pela tolerância de ambos.
Ora, entre dois estados confiantes, rivais outrora, agora reconciliados, muito pouco faz em si, no seu melindre e na sua segurança aquele, que se deixa estar inerme junto do outro armado, não tendo por amparo contra este senão a sua generosidade. São de certo excelentes as nossas relações com a brilhante república meridional, excelentes cremos não na superfície só, mas no fundo. Das nossas quizílias do outro tempo não lhe ficou sequer reminiscência. Cessaram de todo prevenções, queixas, remoques, despeitos, antipatias. Acabamos por nos conhecer bem e nos bem-querer sinceramente. Mas que instáveis não vêm a ser sempre as amizades entre duas nações, quando não assentam no mútuo respeito do seu vigor e na certeza recíproca do perigo em se transgredirem uma à outra os seus direitos! Em todo o mapa da civilização contemporânea não há povos respeitados, senão os fortes, os protegidos pelos fortes, ou os neutros por conveniência dos fortes. Sentimentos desinteressados, gratidão, simpatia, justiça, magnanimidade, não os conhece a política internacional. Suas leis são o interesse e a força. A eqüidade e a humanidade estão no segundo plano, subordinadas àquelas duas supremacias, que se traduzem numa só: a precedência militar.
Se as condições financeiras do estado, que a possui, forem más, tanto mais razão para temer. Aos estados indefesos cabe a sorte de pagar as prodigalidades bélicas das potências armadas. Para um país, que tem no conhecimento cabal do outro a antevisão do triunfo, a guerra pode ser até a solução de uma crise financeira. Seus próprios credores poderiam entrar com ele no plano do movimento, acoroçoá-lo ao golpe, como a uma operação em que se joga pela certa, e cujo resultado pode acelerar a solução de contas atrasadas.
Dizer, pois, como outro dia nos disseram, com a solenidade dos oráculos, que melhor é não ter esquadra, quando nenhum perigo imediato surge, é proferir, neste assunto, a mais estupenda monstruosidade, que de lábios humanos poderia cair. Uma opinião destas revela a mais profunda anarquia, o mais completo vazio intelectual, quanto à matéria em debate, no cérebro que a concebeu. Fica um homem diante dela, sem atinar onde lhe estarão os pés, ou a cabeça, como em presença da objeção oposta uma vez às teorias de Darwin por certo jornalista, aliás famoso, quando perguntava triunfalmente “se Colombo, ao descobrir a América, encontrara homens caudatos”.
Bastar-nos-á então dispor de esquadra, quando for imediato o perigo? É a idéia das marinhas feitas, à espera, com as respectivas guarnições, no estaleiro dos construtores, pela hora da precisão, como um par de botas, um faqueiro, ou uma mala de viagem nas prateleiras de um armazém. Há perigo imediato? Pois é correr ao cabo submarino, em trinta dias teremos uma frota no trinque, fresca como um par de luvas novas.
Mas realmente acreditam esses senhores que a ofensiva naval de um vizinho preparado aguarde sequer trinta dias, para vir, ver, e vencer?