A Revista do Brasil, de São Paulo, é hoje sem dúvida nenhuma publicação verdadeiramente revista, que existe no Brasil. Muitas outras há dignas de nota, corno a América Latina, que um grupo de moços de iniciativa e talento vem aqui mantendo. A primeira, porém, é algo distante, para o paladar comum, tem certas reservas diplomáticas e discertas atitudes que não de gosto do leitor comum. Não vai nisso nenhuma censura da minha parte, tanto mais que já tive a honra de ocupar suas páginas com coisa minha, como também porque tudo o que cheira a cópia, me aborrece.
A publicação de Araújo Jorge é ela mesma, muito original pelo seu programa, mesmo quando publica as proezas do almirante Caperton, que aqui esteve a exercer atos de soberania na nossa baía - coisa a que se habituara em São Domingos e a Americana nos informou.
A América Latina, de Tasso da Silveira e Andrade Murici, representa um esforço de moços, quase meninos, e os senões que se lhe podém notar, advêm disso e de mais nada, afirmando porém, vontades e energias que merecem todo o nosso aplauso. A Revista do Brasil, entretanto, é a mais equilibrada e pode e deve ser a mais popular. Tem os seus números, assuntos para os paladares de todos os leitores. Como muitas de suas congêneres estrangeiras, é fartamente ilustrada, procurando os seus editores reproduzir pela gravura quadros nacionais notáveis ou desenhos de antigas usanças e costumes do nosso país. Publicada em São Paulo, ela não se inspirou pelo espírito e pela colaboração ao Estado em que surge. Nela são tratados assuntos que interessam a todo este vasto país, como diz a canção patriótica, assim como nos seus sumários se encontram nomes de autores que nasceram ou residem nos quatro cantos dessa terra brasileira.
Com a sua atual futilidade e recente ligeireza que veio, infelizmente, a adquirir com as mágicas avenidas frontinas, o Rio de Janeiro mal a conhece - o que é uma injustiça, porquanto, pelo que acabo de dizer, e é fácil de verificar, a Revista do Brasil, entre nós é uma publicação sui-generis e digna de todo o apreço. Não me cabe dizer mais a respeito dela, pois lá escrevi e ela me imprimiu um despretensioso calhamaço.
Embora possa parecer parcialidade de minha parte, não me era possível tratar de uma bela obra, por ela editada, sem me referir aos préstimos da publicação de Monteiro Lobato.
Muitos dos meus leitores, se é que os tenho, têm visto aplicar, com ou sem propósito, o apelido de Jeca-Tatu a este ou àquele; entretanto estou certo de que poucos saberão que se trata do personagem de um conto desse mesmo Monteiro Lobato, no seu magnífico livro Urupês.
Os mais conscientes hão de se lembrar que foi o Sr. Rui Barbosa, num seu discurso, no Lírico, quem lançou à popularidade a inimitável criação de Monteiro Lobato; mas a massa nem do nome deste terá notícia, embora seu livro tenha tido excepcional tiragem, em sucessivas edições de 10.000 exemplares, talvez mais. Acontecimento sem-par no Brasil de que a obra é perfeitamente merecedora.
Editada pela Revista do Brasil, chega-me às mãos uma novela de grande mérito do Sr. Leo Vaz que sinceramente me deslumbrou. Chama-se O Professor Jeremias. É uma obra toda ela escrita com uma candura aparente, animada de um meio sorriso, constante e permanente, mas da qual se extrai uma filosofia amarga da vida e da sociedade.
Um modesto mestre-escola, a quem fizeram sonhar ou sonhou grandes posições, mas que o desenvolvimento ulterior de sua vida foi, aos poucos, levando o seu espírito para a resignação e para a indiferença por tudo o que lhe acontece e arrasta os outros, pois todos nós somos como aquele cão que aparece no fim do livro com uma lata no rabo atada, certamente por uma criança traquinas, a aconselhar o professor, como o faz, dizendo:
— Olha: começa pelas opiniões. Não tenha opiniões. Não há vida mais doce do que a de quem não tem opiniões. Quando bambeio o cordel da minha lata, é como se não tivesse: não me vexa. Restringe-se o círculo dos meus movimentos, é certo, mas fico livre, dentro de um círculo menor. Ao passo que a primeira opinião adotada, é um passo fora do círculo: é a lata a chiar atrás de mim, monótona, enervante...
— Aconselha-me, pois?...
— A bambear o cordel, justamente. Livra-te das opiniões, e ficarás imediatamente livre de uma série de coisas aborrecidas: política, filosofia, sistemas, impostos, calos, caixeiros-viajantes...
A esse quietismo singular chegou o novo Lao-Tsé do professorado paulista, depois de muita observação e transtornos de vida, inclusive o seu casamento. A mulher era birrenta, ranzinza e mais birrenta ficou quando a irmã veio a casar rica e fixar-se em Petrópolis com a sua sogra, a marquesa de Sapopemba. D. Antoninha, assim se chamava a esposa de Jeremias, era o contrário do marido, não se conformava com o seu destino de professora pública, pois também o era de um lugarejo de São Paulo. Rixas, implicâncias, interpretações, de acordo com o seu gênio birrento, de tudo o que acontecia, levaram os dois esposos a pedir o desquite, por consentimento mútuo. Jeremias escreve o livro para seu filho, o Joãozinho, que a mulher por ocasião da separação, impôs fosse com ela.
O professor não sabe onde ela anda, a sua meia mulher, nem seu filho. Espera que o acaso ponha sob os olhos do Joãozinho as reflexões que lhe ocorreram, interpretando os fatos triviais da vida de uma vila obscura do interior de São Paulo, e que por elas o filho governe o seu futuro.
Parece nada, mas nesse gênero há tanta coisa, tanta observação fina que é singular gozo ler a obra do Sr. Leo Vaz.
Não conheço absolutamente o autor, mas se o conhecesse e privasse com ele, deixá-lo-ia falar à vontade, certo de que havia de regalar-me com alguns conceitos melhores do que aqueles que o professor Jeremias emitiu no livro do Sr. Vaz.
O que não aprenderia eu com o risinho irônico do autor do Professor Jeremias, para julgar com acerto esta nossa vida tormentosa? Não sei dizer... Mas... Tenho medo de ir a São Paulo.
O Estado, Niterói, 13-2-1920.