Não se pode saber com certeza, — com a certeza necessária a uma afirmação que tem de correr mundo, — se a primeira estrofe do Romualdo foi anterior ao primeiro amor, ou se este precedeu a poesia. Suponhamos que foram contemporâneos. Não é inverossímil, porque se a primeira paixão foi uma pessoa vulgar e sem graça, a primeira composição poética era um lugar-comum.
Em 1858, data da estréia literária, existia ainda uma folha, que veio a morrer antes de 1870, o Correio Mercantil. Foi por aí que o nosso Romualdo declarou ao mundo que o século era enorme, que as barreiras todas estavam por terra, que, enfim, era preciso dar ao homem a coroa imortal que lhe competia. Eram trinta ou quarenta versos, feitos com ímpeto, broslados de adjetivos e imprecações, muitos sóis, basto condor, inúmeras coisas robustas e esplêndidas. Romualdo dormiu mal a noite; apesar disso, acordou cedo, vestiu-se, saiu; foi comprar o Correio Mercantil. Leu a poesia à porta mesmo da tipografia, à Rua da Quitanda; depois dobrou cautelosamente o jornal, e foi tomar café. No trajeto da tipografia ao botequim não fez mais do que recitar mentalmente os versos; só assim se explicam dois ou três encontrões que deu em outras pessoas. Em todo caso, no botequim, uma vez sentado, desdobrou a folha e releu os versos, lentamente, umas quatro vezes seguidas; com uma que leu depois de pagar a xícara de café, e a que já lera à porta da tipografia, foram nada menos de seis leituras, no curto espaço de meia hora; fato tanto mais de espantar quanto que ele tinha a poesia de cor. Mas o espanto desaparece desde que se adverte na diferença que vai do manuscrito ou decorado ao impresso. Romualdo lera, é certo, a poesia manuscrita; e, à força de a ler, tinha-a “impressa na alma”, para falar a linguagem dele mesmo. Mas o manuscrito é vago, derramado; e o decorado assemelha-se a histórias velhas, sem data, nem autor, ouvidas em criança; não há por onde se lhe pegue, nem mesmo a túnica flutuante e cambiante do manuscrito. Tudo muda com o impresso. O impresso fixa. Aos olhos de Romualdo era como um edifício levantado para desafiar os tempos; a igualdade das letras, a reprodução dos mesmos contornos, davam aos versos um aspecto definitivo e acabado. Ele mesmo descobriu-lhes belezas não premeditadas; em compensação, deu com uma vírgula mal posta, que o desconsolou.
No fim daquele ano tinha o Romualdo escrito e publicado algumas vinte composições diversas sobre os mais variados assuntos. Congregou alguns amigos, — da mesma idade, — persuadiu a um tipógrafo, distribuiu listas de assinaturas, recolheu algumas, e fundou um periódico literário, o Mosaico, em que fez as suas primeiras armas da prosa. A idéia secreta do Romualdo era criar alguma coisa semelhante à Revista dos Dous Mundos, que ele via em casa do advogado, de quem era amanuense. Não lia nunca a Revista, mas ouvira dizer que era uma das mais importantes da Europa, e entendeu fazer coisa igual na América.
Posto que esse brilhante sonho fenecesse com o mês de maio de 1859, não acabaram com ele as labutações literárias. O mesmo ano de 1859 viu o primeiro tomo das Verdades e Quimeras. Digo o primeiro tomo, porque tais eram a indicação tipográfica, e o plano do Romualdo. Que é a poesia, dizia ele, senão uma mistura de quimera e verdade? O Goethe, chamando às suas memórias Verdade e Poesia, cometeu um pleonasmo ridículo: o segundo vocábulo bastava a exprimir os dois sentidos do autor. Portanto, quaisquer que tivessem de ser as fases do seu espírito, era certo que a poesia traria em todos os tempos os mesmos caracteres essenciais: logo podia intitular Verdades e Quimeras as futuras obras poéticas. Daí a indicação de primeiro tomo dada ao volume de versos com que o Romualdo brindou as letras no mês de dezembro de 1859. Esse mês foi para ele ainda mais brilhante e delicioso que o da estréia no Correio Mercantil. — Sou autor impresso, dizia rindo, quando recebeu os primeiros exemplares da obra. E abria um e outro, folheava de diante para trás e de trás para diante, corria os olhos pelo índice, lia três, quatro vezes o prólogo, etc. Verdades e Quimeras! Via esse título nos periódicos, nos catálogos, nas citações, nos florilégios de poesia nacional; enfim, clássico. Via citados também os outros tomos, com a designação numérica de cada um, em caracteres romanos, t. II, t. III, t. IV, t. IX. Que podiam escrever um dia as folhas públicas senão um estribilho? “Cada ano que passa pode-se dizer que este distinto e infatigável poeta nos dá um volume das suas admiráveis Verdades e Quimeras; foi em 1859 que encetou essa coleção, e o efeito não podia ser mais lisonjeiro para um estreante, que etc., etc.”
Lisonjeiro, na verdade. Toda a imprensa saudou com benevolência o primeiro livro de Romualdo; dois amigos disseram mesmo que ele era o Gonzaga do Romantismo. Em suma, um sucesso.