Em casa de SIQUEIRA em Petrópolis. Sala interior.

CENA PRIMEIRA

editar

SIQUEIRA, RITA e IAIÁ

(Iaiá brinca no jardim acompanhada de RITA. SIQUEIRA aparece como quem vai a passeio.)

RITA – A bênção?

SIQUEIRA – Não me dirás o que há de novo nesta casa, desde ontem à noite?

RITA – Nada, não, Senhor. (A IAIÁ) Tome a bênção a vovô.

SIQUEIRA – Ora! Há aqui alguma cousa necessariamente. Clarinha e Henrique fogem um do outro. Bela não aparece; e Augusto, esse não diz palavra.

RITA – Nhanhã D. Clarinha está zangada com Senhor moço Henrique, porque ele ficou muito tempo caçando!

SIQUEIRA – Arrufos de namorados! Bem, disso já sabia eu. E os outros?

RITA – Meu Senhor?... Esse já veio maçado ontem da cidade.

SIQUEIRA – E tua Senhora?

RITA – Vosmecê não sabe que Sinhá não anda boa? Esta noite passou muito mal; não dormiu.

SIQUEIRA – E foi ela só? Creio que ainda ninguém dormiu nesta casa. Toda a noite ouvi Augusto passear nesta sala. Clarinha às duas horas ainda estava no piano fazendo um concerto com os cães que ladravam desesperadamente; Henrique, esse deu-lhe a vontade de passear de madrugada com a chuva. Parece que estava morrendo de calor. Já voltaria?

RITA – Ainda não vi ele hoje, não Senhor.

SIQUEIRA – Talvez tenha armado outra caçada. É muito capaz, só para fazer pirraça à mulher.

CENA II

editar

ISABEL e SIQUEIRA

(RITA e IAIÁ no jardim; às vezes aparecem.)

ISABEL – Bom-dia, meu pai.

SIQUEIRA – Passou mal a noite; já sei.

ISABEL – Perdi o sono, não sei porquê.

SIQUEIRA – Também eu. Com o rebuliço que havia nesta casa, não é de admirar. Que tem Augusto? Acho-o triste.

ISABEL – Uma contrariedade... os seus negócios. Ele contou-me ontem quando chegou. Talvez seja obrigado a voltar amanhã.

SIQUEIRA – Amanhã, domingo?

ISABEL – Quis ir hoje; mas creio que Joaquim já não achou bilhete.

SIQUEIRA – Para isso não valia a pena ter vindo. – Quer dar um passeio? A manhã está tão bonita! ISABEL – Não posso, não, meu pai.

SIQUEIRA – Vamos até a Vila Teresa; em caminho tomas um copo de leite; há de fazer-te bem. Não me desacredites os ares de Petrópolis. Andas tão pálida, e eu quero que voltes corada para a corte. Rita, vai ver o chapéu de tua Senhora.

ISABEL (a RITA) – Deixa estar. (A SIQUEIRA) Desculpe-me, não tenho disposição. Depois, quando o sol abrir. (Toma IAIÁ.)

SIQUEIRA – Fica muito tarde; mas eu posso esperar.

ISABEL – Não, Senhor, vá, meu pai. Se me dispuser, eu irei com Clarinha. (RITA afasta-se.)

CENA III

editar

ISABEL, IAIÁ e MIRANDA

ISABEL – Minha filha!... Onde esteve?... Já viu Papai?... Ele beijou Iaiá hoje?... Beijou: onde? aqui! (Beija com efusão a face da menina.) Iaiá vai ficar sem sua Mamãe... Vai... Ela não pode viver muito tempo não!... Já lhe faltam as forças. (Pausa.) Quando Mamãe morrer, Iaiá chora?... Não?... Inocente. (Entra MIRANDA) Não sabes, não saberás nunca, o que tua mãe sofreu neste mundo, minha filha! Por que Deus consentiu que me salvasses a vida, naquela noite fatal?...

MIRANDA – Por que, Senhora? Eu respondo por ela.

ISABEL – Não o tinha visto; desculpe-me, Senhor.

MIRANDA – Deus, salvando-nos a vida naquela noite, queria que aqueles que já não podiam viver um para o outro, vivessem ao menos para esta menina inocente; que a mãe respeitasse a pureza de sua filha, já que a mulher não tinha respeitado o nome de seu marido. Mas assim não aconteceu.

ISABEL – É preciso, meu Deus, que eu tenha descido muito para que o meu juramento, as minhas lágrimas, os meus protestos, tudo, até o meu suplício não possa destruir uma simples suspeita. (Deixa IAIÁ.)

MIRANDA – O que eu vi há um ano, o que tornei a ver ontem é uma simples suspeita, Senhora?

ISABEL – Viu aquele homem?... Não, não é possível. Viu uma flor que ele deixara cair por acaso, quando ali estávamos todos; uma flor que Clarinha atirara ao chão gracejando. Ah! eu não podia pressentir que espinhos tinha aquela rosa para minha alma. É a prova que. me condena; e eu não posso dizer contra ela, uma palavra, sem mentir!

MIRANDA – Mas, ali, naquela noite, estava um homem. Vi-o, desta vez não é uma suspeita; vi-o saltar da janela; não ouvi as palavras que lhe disse; creio, porém, que lhe apertou a mão, e a Senhora tinha lágrimas nos olhos. Aquele homem não era o fátuo desprezível..

ISABEL – Pelo que há...

MIRANDA – O fátuo que apesar de a haver esquecido, a Senhora quis ontem salvar com risco de sua vida?...

ISABEL Pelo que há de mais sagrado para mim neste mundo, por sua honra, e por minha filha, Senhor... Aquele homem não era o Sales.

MIRANDA – Quem era ele então?... Quem?... (Pausa.) Não responde!... É a terceira vez que lhe pergunto, que lhe peço... E sempre a mesma mudez. O nome desse homem, Senhora?

ISABEL – Não exija isto de mim. Esse nome, nunca, nunca o ouvirá de minha boca. Prefiro morrer julgando-me o Senhor culpada, a defender-me por tal preço.

MIRANDA – E quer que a acredite?... Meu espírito não pode compreender semelhante enigma. A Senhora é inocente: o que eu vi foi apenas ilusão, uma aparência, um fato sem significação. Que motivo pode haver para ocultar o nome desse homem? Para que esse mistério? (Pausa.) Não mo diz? Fale! Convença-me, Senhora!... Não desejo, não peço outra cousa; arranque-me esta suspeita! Eu lhe suplico! Por piedade!... Invente um pretexto, engane-me se for preciso! Talvez eu possa iludir-me! (Pausa.) Bem sei que tenho razão quando quero, e não posso crer. Sua alma é nobre, revolta-se contra a falsidade: não pode, nem mesmo sabe mentir!

ISABEL – E por que não me julga assim, quando lhe juro por minha alma que nunca traí meus deveres? É justo isso? Diga, Senhor!

MIRANDA – Mas por que razão se obstina em guardar silêncio?... Teme acaso que eu assassine esse homem? Que perpetre um crime?... Já o teria feito há muito!... nesse miserável que eu suspeito?... Outro motivo... Qual pode ser?... Não posso atinar! Encerra porventura esse nome algum segredo terrível para mim?

ISABEL – Oh! não procure adivinhar!...

MIRANDA – Explique-se, Senhora. Eu lhe imploro! Uma palavra ao menos, uma só... Não por mim. A tranquilidade de uma família vale bem esse sacrifício.

ISABEL – Quer saber?... Quer saber, Senhor, a razão por que não lhe revelo esse nome?... É porque tenho medo... Sim, tenho medo! Em face do outro... daquele que o Senhor viu, não poderia sofrer o seu desprezo, como teria forças para o suportar diante desse... desse que o Senhor supõe e não é não, eu o juro!... O suplício seria mais cruel ainda! Sinto que não resistiria, não, meu Deus!... É esta a razão. Está vendo; não há segredo, nem mistério algum... Fraqueza minha...

MIRANDA – Então?... Esse outro... Verdadeiro, cujo nome oculta... Esse... a Senhora ama-o?

ISABEL – Eu?...

MIRANDA – Não acaba de confessá-lo?

ISABEL – Eu, Senhor! Tenho eu mais o direito de amar alguém? Meu amor não seria um insulto para o único homem que mo poderia inspirar?... Amo minha filha, é verdade! Única afeição para que a mulher, a mais vil, nunca se torna indigna.

MIRANDA – Basta, Senhora; sei o que resta fazer.

ISABEL – O que lhe peço, Senhor, é que ao menos de hoje em diante perca essa ideia cruel que o tortura e que me esmaga. Não suponha que o engano, não! Para que, meu Deus?... Acredita que fui culpada uma vez; um instante; não me posso defender; é a minha desgraça! Teria razão para acusar-me se fosse verdade, mas para desprezar-me assim, não!... Pode-se ter caído numa falta, e conservar-se ainda um resto de pudor... Ao menos um pouco de orgulho para não mentir.

MIRANDA – É preciso que isto tenha um termo. (Entra CLARINHA) Depois lhe comunicarei a minha resolução.

CENA IV

editar

Os mesmos e CLARINHA

CLARINHA – Já sei que os incomodei esta noite! (Beija ISABEL.) Não tinha sono, e estava tão nervosa. (Aperta a mão de MIRANDA.)

MIRANDA – Bom-dia.

CLARINHA (a ISABEL) – Tu sabes que o piano é que sofreu com os meus nervos. Lembras-te do teu? Quebrei esta noite não sei quantas cordas... É um prazer que sinto; aquele estalo faz-me o efeito de um choque elétrico!... Mas vejo que era preciso que eu aparecesse por aqui. Sua Excelência está carrancudo, como um ministro demitido; e tu nem me ouves! Estás descorada, que metes medo!

ISABEL – Não passei bem.

CLARINHA – Com aquele susto, tu que já não andas boa! (A MIRANDA) Meu tio, faça-me o favor de ralhar com o Senhor seu sobrinho para ver se ele toma algum jeito de homem sério. Eu já cansei. MIRANDA – Acho-a muito alegre esta manhã.

CLARINHA – E não se engana. Estou saltando de contente; acordei cantando, faça ideia! E também vou já prevenindo-o; não consinto que ninguém hoje esteja triste nesta casa. A sua respeitável personagem pode ir já começando a desenrugar a testa.

MIRANDA – Suponho que não há motivo para tanta alegria; ao contrário, parece-me que Henrique tem alguma cousa que o aflige profundamente.

CLARINHA – Deveras, meu tio já reparou? E eu ainda nem dei por isso. Mas deixá-lo; são venetas; passam depressa; não lhe dê cuidado. (A ISABEL) Vai fazer o teu toilette; quero que fiques ainda mais bonita, para ver se teu marido torna-se amável. (A MIRANDA) Não me agradece?

MIRANDA – Desculpe-me; tenho que escrever. (Vai a mesa.)

CLARINHA – Ninguém o impede; mas olhe que a política não me entra daquela porta para dentro. Já não é pouco que a mania de caçar se tenha feito dona da casa, para ainda em cima receber hóspedes tão desenxabidos como a tal Senhora, que traz a cabeça dos Senhores todos a juros.

MIRANDA – E é só a política o mau hóspede que a frequenta?

CLARINHA – Qual é o outro? Diga!

MIRANDA – Foi apenas uma pergunta. Nada sei, nada devo saber.

CLARINHA – Pois eu sei, meu Senhor, e não faço mistério. É o pouco caso dos maridos, por suas mulheres. Mas, não há de durar muito, eu lhe prometo.

MIRANDA – Não há de durar, não; diz bem.

CLARINHA – Explique-se. (MIRANDA prepara-se para escrever; arrepende-se e sai no começo da cena seguinte.)

CENA V

editar

CLARINHA e ISABEL

CLARINHA (corre a ISABEL e dá-lhe dois beijos na face) – Não sabes por que estou contente, tão contente, não? Pois não adivinhas?... Henrique está desesperado de ciúmes!

ISABEL – E tem razão, Clarinha.

CLARINHA – Que é isso? Ele te contou?... Está furioso, não é verdade? Passou a noite a fumar e a arrancar os cabelos, e eu morrendo com vontade de rir-me às gargalhadas! Mas depois tive uma pena!... Saiu com toda aquela chuva, e de madrugada: agora é que voltou.

ISABEL – Mas que fizeste tu, Clarinha?... Não te entendo!

CLARINHA – Pois ele não te contou!... O bilhete daquele bobo do Sales, que eu deixei cair de propósito...

ISABEL – De propósito?...

CLARINHA – Sim!... Para fazer cócegas a Henrique; e mostrar ao Senhor meu marido a quanto fica sujeita sua mulherzinha, que ele abandona para andar se divertindo.

ISABEL – Então tudo isto foi um gracejo da tua parte?

CLARINHA – Oh! Bela! Esta não esperava! Fizeste semelhante ideia de mim!

ISABEL – Perdoa-me, Clarinha. Perdoa-me! mas, se tu soubesses...

CLARINHA – O quê?... Dize-me... O que sucedeu?

ISABEL – O bilhete...

CLARINHA – Sim.

ISABEL – Henrique acreditou que você o perdera por acaso!

CLARINHA – O ingrato! (Rindo) Mas era justamente o que eu queria.

ISABEL – Conheço a letra...

CLARINHA – Isso sabia eu.

ISABEL – Mostrou-o a Augusto...

CLARINHA – Ah! Por isso meu tio há pouco estava tão sério.

ISABEL – Deixa-me acabar. Ouvi o nome desse homem que nunca devera ter entrado em nossa casa: não pensei, não refleti... Lembrei-me da tua perturbação!...

CLARINHA – Receava que adivinhasses o meu projeto. Não consentirias nele.

ISABEL – Tinha-te visto guardar a chave da cabana... Esse cuidado, a conversa com o Sales, tantas circunstâncias... Já te pedi perdão, mas tive medo de ti.

CLARINHA – É engraçado! Quando eu te explicar!...

ISABEL – Não me preveni... Corri a casa, procurei tudo e não te encontrando...

CLARINHA – Estava passeando com meu tio para dar tempo a Henrique de ter ciúmes. Se o visse naquele momento não me poderia conter; ria-me por força.

ISABEL – Quanta circunstância! Vês... Não te achando, pensei: "Já escureceu! Estará ela na cabana?" Corro como uma louca. Augusto também ia salvar-te; viu-me, julgou que eras tu... E foi então...

CLARINHA –. Foi então que tiveste aquele susto. Mas... Bela, aquele tiro foi realmente a espingarda que disparou por acaso?

ISABEL – Tu acreditas, Clarinha?

CLARINHA – Ias morrendo, meu Deus; e eu era a causa!

ISABEL – Augusto salvou-me, a morte não me quer. Está passado, não te agonies por isso, nem mesmo dês a entender que o sabes. Se te revelei este horrível segredo, foi para que toda a tua vida te lembres da noite de ontem, e das consequências que podia ter esse gracejo.

CLARINHA – E podia eu supor, Bela, que Henrique tivesse por mim essa paixão furiosa! Lembrar-se de matar-me como um passarinho!... Já se viu que extravagância! Só um marido caçador tem destas ideias! E por quê? Por uma brincadeira.

ISABEL – Com a tua virtude e a honra de teu marido não brinques nunca. São cousas tão santas e tão delicadas... Um sopro pode destruir para sempre a tua felicidade! (HENRIQUE entra.)

CLARINHA – Fiz mal, confesso; mas, ele não foi um monstro de ingratidão em acreditar logo e sem dificuldade, que. eu lhe era infiel?... Oh! verás como me hei de vingar. (Sem voltar-se) É ele? Deixa-o vir.

ISABEL – Fala-lhe e conta-lhe tudo.

CENA VI

editar

As mesmas e HENRIQUE

CLARINHA – Deixa-me gozar primeiro deste prazer. É tão bom a gente sentir-se amada e com paixão... Queres que te diga! Eu o acho tão bonito assim! Agora só pensa em mim; só se ocupa comigo.

ISABEL – Eu te compreendo: deve ser realmente um gozo imenso depois da indiferença e do abandono. Mas, ele já sofreu muito.

CLARINHA – Não faz mal; que sofra mais um instante! Eu não tenho sofrido dias inteiros? É moléstia que não mata, o ciúme. Demais eu tenho o remédio infalível.

ISABEL – Não abuses, Clarinha. Sabes o que é uma desconfiança que se agarra ao espírito e o rói sem cessar? Tranquiliza-o hoje.

CLARINHA – É bom que ele sinta o que custa o desprezo.

ISABEL – Se não lhe disseres já, eu falo.

CLARINHA – Tu nada sabes! No momento em que disseres uma palavra, fico muda.

ISABEL – Ao menos não o deixes sair daqui sem confessar-lhe.

CLARINHA – Isso te prometo. (A HENRIQUE) Melhor cara nos traga o dia de amanhã. Já acabou de descarregar as suas espingardas, meu Senhor?

HENRIQUE – Preciso falar-lhe.

CLARINHA – Estou às suas ordens. Uma conversa íntima com meu marido!... É honra que há muito tempo não recebo.

HENRIQUE – Desejo falar à Senhora só. (BELA ergue-se.)

CLARINHA (a ISABEL) – Espera. (A HENRIQUE) Bela sabe todos os meus segredos, os passados, os presentes e também os futuros. Ela me conhece! Portanto o Senhor pode falar com toda a liberdade. (Baixo a ISABEL) Estou com uma vontade de rir-me.

ISABEL (idem) – Tem pena dele!

HENRIQUE – Não há segredo para Bela, no que vou dizer-lhe; mas, talvez a Senhora se acanhe de responder-me diante dela. Queria poupar-lhe o vexame de corar em presença da virtude.

CLARINHA – Neste caso, fica, Bela. Toma papel e tinta; bem vês que é um interrogatório em regra. HENRIQUE – A ocasião não é própria para gracejos, Senhora!

ISABEL – Mas, não está vendo, Henrique, que tudo foi um gracejo?

HENRIQUE – Nas almas puras como a sua, Bela, custa a entrar uma suspeita; mas eu tenho provas. (A CLARINHA) E a Senhora devia saber que as suas zombarias neste momento são mal cabidas.

CLARINHA – Oh! Reconheço que a situação é grave... gravíssima! (Ri-se) Perdão! não é culpa minha! Posso conservar-me séria, vendo-o com esses ares de João Caetano no Otelo?...

HENRIQUE – Que significa isto, Senhora?...

ISABEL – Isto significa que quando eu voltar, as pazes estarão feitas.

CENA VII

editar

HENRIQUE e CLARINHA

CLARINHA – Estou à espera, meu Senhor.

HENRIQUE – Se isto é uma comédia, acho-a de mau gosto.

CLARINHA – Não se trata de comédia: estou na presença de meu juiz, se não me engano isto se chama um processo.

HENRIQUE – Acabemos de uma vez. Este papel...

CLARINHA – Estou vendo: é um bilhete do Senhor Sales.

HENRIQUE – Que esteve tão amável estes dois dias...

CLARINHA – Como se lembra do que lhe disse!... E fiz-lhe a injustiça de supor que a minha conversação o aborrecia!

HENRIQUE – A Senhora sabe a quem escreveu esse... homem?

CLARINHA – Se não é muita fatuidade de minha parte, creio que foi a esta sua criada.

HENRIQUE – Ainda o confessa?...

CLARINHA – Suponho que o Senhor deseja saber a verdade; se quer que o engane é escusado perguntar.

HENRIQUE – Como veio este papel parar às suas mãos?

CLARINHA – Achei-o ontem dentro do meu chapéu num ramo de flores. Não está mal escrito, não?

HENRIQUE – Senhora!... Não me faça perder a calma de que tanto preciso nesta ocasião. Não brinque com a desgraça de uma família inteira!... Sabe de que excessos é capaz um homem de brio para vingar a sua honra ultrajada?...

CLARINHA – Já esperava por isso. É o discurso de rigor! Sei de que é capaz, meu Senhor; sei que me quis matar ontem...

HENRIQUE – Quem lho disse?

CLARINHA – Talvez ainda lhe venham tentações de o fazer. Mas pensa que tenho medo de seus tiros e de seus furores?... Não! Do que eu tenho medo... E o Senhor não o merece!... Do que eu tenho medo é de que se esqueça de mim e deixe de querer-me bem.

HENRIQUE – Eu lhe suplico! Seja franca; diga-me toda a verdade, Clarinha.

CLARINHA – Muito bem! Eis uma palavra que muda as posições: já não está aqui o juiz; é meu marido! Agora, sim Senhor, tenha a bondade de ouvir-me. Eu podia punir como toda a Senhora honesta deve fazer, a insolência daquele homem, sem que o Senhor o soubesse; mas quis que aprendesse à sua custa. O Sales não teria a audácia de escrever-me se visse que meu marido me amava e que eu vivia feliz.

HENRIQUE – Eu não te amo, Clarinha?... Podes duvidar?

CLARINHA – Há quanto tempo não mo dizias?... É uma palavra que nunca se repete demais à sua mulher...

HENRIQUE – E para isso era preciso me fazeres sofrer tanto? Ainda tremo!

CLARINHA – Oh! Já me arrependi! Confesso que foi uma imprudência. Que desgraça não ia acontecendo; a desgraça de minha vida inteira! Se Bela morresse!...

HENRIQUE – E tu, Clarinha!

CLARINHA – Eu?... Pouco se perdia; o Senhor depressa se consolaria.

HENRIQUE – Ingrata!

CLARINHA Quem me chama! Quem acreditou que eu o enganava, e me quis matar!

HENRIQUE – Não me lembres mais essa loucura, eu te peço.

CLARINHA – Por que razão?... Se não a tivesse feito, creio que não te quereria tanto, como te quero agora.

HENRIQUE – Mas, era um crime, Clarinha.

CLARINHA – Um crime por muito amor! Que mulher não o perdoa!

CENA VIII

editar

Os mesmos e JOAQUIM

JOAQUIM – Está aí o Sr. Sales.

HENRIQUE – Ah!... tão cedo.

JOAQUIM – Ele disse que Nhanhã D. Clarinha pediu para passar hoje por aqui.

CLARINHA – É verdade.

HENRIQUE (a meia voz) – A farsa é divertida; mas não estou disposto a representar nela o jocoso papel que me destina. Ouviu, Senhora?

CLARINHA (a meia voz) – Ouvi, Senhor, e já lhe respondo. (Alto) Joaquim, vai buscar o ramo de violetas que achaste no jardim. (Baixo a HENRIQUE) Não quer que lhe traga também a espingarda?... É prudente; talvez esteja carregada! (JOAQUIM tem saído.)

HENRIQUE – Basta de zombarias.

CLARINHA – Perdão; o gracejo terminou; agora sou eu que lhe falo seriamente. Se a minha palavra não lhe basta e é preciso que eu desça a explicações, vou satisfaze-lo já. Porem acredite!... É a sua honra unicamente que eu justificarei; a minha não existe desde o momento que duvidou dela.

HENRIQUE – Não duvido, Clarinha, mas quando tudo parece combinar-se de propósito para me iludir, o que posso eu fazer?

CLARINHA – Usar do seu direito; exigir que me justifique.

HENRIQUE – Não supunha que te amava tanto! A menor cousa me faz tremer agora pela minha felicidade. CLARINHA – Finalmente!... Pois agora sou eu que as quero dar; tu as mereces. Que fizeste da chave que te dei ontem a guardar? Era a chave da cabana.

HENRIQUE – Má! Não me podias ter dito logo! (Entra JOAQUIM.)

CLARINHA (faz gesto a JOAQUIM para deitar o ramo num vaso dos consolos) – Outra prova.

HENRIQUE – Não preciso de mais, não precisava nenhuma.

CLARINHA (a JOAQUIM) – Esqueci-me de te perguntar. Rondaste ontem ao escurecer pela grade do jardim? Viste quem me roubava as flores?

JOAQUIM – Não vi ninguém, não Senhora. (HENRIQUE aperta a mão de CLARINHA.)

CLARINHA – Está bem; manda o Senhor Sales entrar para aqui mesmo. (JOAQUIM sai.)

HENRIQUE – Não! Eu vou encontrá-lo.

CLARINHA – Ainda! (Introduz o bilhete do SALES no ramo.)

HENRIQUE – Não desconfio de ti, Clarinha! Quero punir este miserável.

CLARINHA – Isto é apenas uma questão de amor-próprio para mim. Deixe-me o prazer de corrigir essa criançada.

HENRIQUE – Não me poderei conter.

CLARINHA – Quer fazer ao Sales a honra de suspeitá-lo? Reflita. Seria uma injúria à sua mulher! Nem dê a perceber que sabe cousa alguma. Promete-me.

HENRIQUE – Tu o queres!

CENA IX

editar

HENRIQUE, CLARINHA e SALES

SALES (a HENRIQUE) – Ah! Não sabia que já tinha voltado! Como lhe foi de caçada?

HENRIQUE – Viva, Senhor.

SALES – D. Clarinha! (Estende a mão.)

CLARINHA (disfarçando, recusa a mão) – Não repare, Senhor Sales. Henrique está maçado porque eu lhe acabei de provar que lhe queria mais bem a ele, do que ele a mim. O Senhor tem sido testemunha; quando ele não está em casa fico tão aborrecida que não dou fé de cousa alguma.

SALES – É verdade, tenho observado isso.

HENRIQUE – Também eu de agora em diante pretendo observar, Senhor Sales.

CLARINHA – E a minha aposta? Quantas janelas tem o hotel?

SALES – Contei quinze, se não me engano, D. Clarinha.

CLARINHA – Bravo!... (A HENRIQUE.) Perdeu, meu Senhor! Não se lembra? (A SALES) Foi uma aposta muito interessante. Se eu ganhasse, Henrique ficava obrigado a viver um ano inteiro unicamente para mim, não receberíamos visitas; não sairíamos senão juntos.

SALES – E quando ele sair para negócios?

CLARINHA – Oh! Fique descansado, Senhor Sales! Durante este ano ele não tem negócios. (A HENRIQUE) Está disposto a cumprir?

HENRIQUE – Como! Ainda que eu não perdesse. Era minha intenção.

CLARINHA – Que fineza que lhe devo, Senhor Sales!

SALES – Nem por isso, minha Senhora.

CLARINHA – O Senhor não faz ideia! Vou passar o ano mais feliz da minha vida! Viver só para meu marido... Quando Henrique quiser trabalhar, irei cuidar dos arranjos da minha casa, do jardim. Ah! por falar em jardim... O Senhor esqueceu ontem um ramo de flores.

SALES – Um ramo de flores?... Não, Senhora; não me recordo!...

CLARINHA (toca a campainha) – Joaquim o achou esta manha no jardim. (Entra um escravo) Chama Joaquim. (A SALES) A pessoa a quem o Senhor o destinava não lhe há de perdoar semelhante esquecimento.

SALES – Não o destinava a ninguém. Deram-me e não tinha nem um apreço para mim.

CLARINHA (a JOAQUIM) – Entrega o ramo do Senhor Sales.

SALES – Não precisa. (JOAQUIM entrega.)

CLARINHA – Inda pode aproveitá-lo. É bom guardar! (JOAQUIM sai.) O Senhor não sabe que desgraça ia causando esse ramo inocente.

HENRIQUE (a meia voz) – Clarinha!

CLARINHA – O Senhor Sales é de segredo. (A SALES) Eu lhe conto. Henrique chegou da caça e estava no jardim conversando, quando não sei como tropeçou no seu ramo. A espingarda embaraçou-se no bolso do paletó e disparou!

SALES – Estava carregada?

HENRIQUE – E com um quarto de bala, Senhor Sales.

CLARINHA – É verdade! Foi um estrondo. A bala atravessou de banda a banda a cabana... Aquela, o Senhor sabe, que há no jardim. Se estivesse dentro alguma pessoa, morria decerto.

HENRIQUE – Quando o Senhor sair examine por fora que há de ver o rombo.

SALES – Acredito, não é necessário.

CLARINHA – Foi uma felicidade ter eu fechado a cabana logo que o Senhor saiu, e dado a chave a Henrique, senão podia alguém entrar e acontecer uma desgraça.

SALES – Que perigo!... A Senhora me dá licença?

CLARINHA – Pois não!.... Mas agora é que reparo; o Senhor está hoje tão pálido, Senhor Sales.

SALES – Não é nada, minha Senhora. É o meu natural.

CLARINHA – Não; o Senhor anda doente. Aconselho-lhe que faça outra viagem à Europa.

SALES – Agradeço muito o conselho, D. Clarinha.

CLARINHA – E desta vez, demore-se uns cinco anos pelo menos. Com a saúde não se brinca.

SALES – Passe muito bem, minha Senhora. Senhor Henrique.

HENRIQUE – Então até a volta da Europa.

SALES – Se for eu virei despedir-me.

CLARINHA – Mas ele já não pode receber visitas, Senhor Sales; perdeu a aposta.

HENRIQUE (rindo) – Que tirania!

CENA X

editar

Os mesmos e MIRANDA

HENRIQUE – E era disto que querias que eu tivesse ciúmes?

CLARINHA – Então!... Se fosses a esperar por um que te valesse, nunca terias. (Entra MIRANDA.)

HENRIQUE (a AUGUSTO) – Está vendo como se zomba de um marido!

CLARINHA – Aqui o Senhor, também acreditou! Estou-lhe muito obrigada!

HENRIQUE – Divertiu-se à nossa custa! Vingou-se dos dois dias que passei fora de casa.

MIRANDA – Assim estás completamente dissuadido? Esse bilhete não era para Clarinha?

HENRIQUE – Esse bilhete foi uma insolência daquele tolo, e a Senhora sem dó, nem compaixão, aproveitou-se dele para zombar de mim!... Diga-lhe o que eu sofri.

CLARINHA – Chamou-me de pérfida, cruel, perjura e indigna!... Acusou-me de ter traído o seu amor, de não ter respeitado a sua honra... Não foi?...

MIRANDA – Ainda bem que não passou de um gracejo. Compraste, com algumas horas de inquietação, o que muitos não conseguem com anos de experiência e sofrimento... Visto como todo o teu futuro podia ter sido devorado por um momento de alucinação!... Vela sobre a tua felicidade, Henrique. Ela vale bem a pena.

CLARINHA – Mas, por isso não precisa ficar triste! Ralhe comigo que fui a causa de tudo; porém tenha dó de Bela.

HENRIQUE – Realmente, acho-o abatido, meu tio!

MIRANDA – Trabalhei muito esta noite; sinto-me fatigado.

HENRIQUE – Talvez a emoção que ontem sentiu.

CLARINHA – Vamos dar um passeio pelo jardim. O ar da manhã lhe fará bem.

MIRANDA – Não; preciso estar só. (Toca a campainha.)

HENRIQUE (a meia voz) – Diga-me, meu tio, diga-me com franqueza... Nada o aflige, neste momento?

MIRANDA – Não faças caso disto. É fadiga apenas.

CLARINHA (a HENRIQUE) – Vamos ver Bela; também não a acho boa hoje! Aquele susto...

HENRIQUE (baixo) – E pensas que fosse somente o susto...

CLARINHA – Sabes de alguma cousa?

HENRIQUE – Não, não sei nada.

CENA XI

editar

MIRANDA e JOAQUIM

MIRANDA – Compraste os bilhetes para amanhã?

JOAQUIM – Sim, Senhor. (Entrega.)

MIRANDA – Bem: vai arrumar tudo o que me pertence na mala. Hás de levá-la daqui a pouco à Estação.

JOAQUIM – Meu Senhor não volta mais a Petrópolis?

MIRANDA – Não sei... Preciso do que é meu na cidade... Talvez volte; porém mais tarde.

JOAQUIM – Minha Senhora viu os bilhetes, e disse que não queria ficar aqui.

MIRANDA – Tua Senhora precisa ficar por causa de sua saúde; os médicos aconselham. Não quero que em casa saibam de minha resolução.

JOAQUIM – Sim, meu Senhor.

MIRANDA – Dize a tua Senhora que eu desejo falar-lhe. Dize-lhe baixo que D. Clarinha não ouça. (MIRANDA fecha uma porta lateral da Esq., escreve o sobrescrito e vai lacrar quando ISABEL aparece.)

CENA XII

editar

MIRANDA e ISABEL

ISABEL – Mandou-me chamar, Senhor?

MIRANDA – Disse-lhe há pouco que mais tarde lhe comunicaria minha resolução... Já a tomei: é necessário que nos separemos, Senhora.

ISABEL – Para que, Senhor?... Essa separação não tardará muito. Eu lhe prometo que breve, mais breve do que pensa, ficará livre de mim.

MIRANDA – Já confessei que a tenho feito sofrer muito. Perdoe-me esta vez que é a última que lhe falo!... Com a tranquilidade e o sossego que trará a nossa separação, há de restabelecer-se. O que a estava matando era esse suplício de todas as horas, esse martírio causado pela presença constante de uma pessoa odiada.

ISABEL – Causado pelo receio de ofendê-la e só com a minha presença!... Foi um martírio, foi; mas também era a única alegria que Deus me permitia neste mundo, acompanhá-lo, servi-lo e estimá-lo, apesar de seu desprezo. Eu lhe suplico, Senhor! Deixe-me esse martírio até o último sopro de vida. Quero morrer a seu lado, não para amargurá-lo; a agonia será curta; mas, para que possa dizer-lhe a minha última palavra.

MIRANDA – Não se aflija, Senhora. Esta separação lhe pesa porque receia talvez pela sua reputação. Ela não sofrerá, eu lhe juro.

ISABEL – Que vale a minha reputação desde que a perdi para o Senhor?... Eu já não vivo neste mundo; que me importa o que se passa nele?

MIRANDA – Uma Senhora precisa sempre de sua reputação; quando não seja para si ou para o seu marido, será para sua família, para sua filha. Fique descansada, porém eu preciso fazer uma viagem à Europa; a Senhora não pode naturalmente acompanhar-me por causa de sua filha; fica em sua casa, ou na fazenda com seu pai...

ISABEL – Quando parte, Senhor?

MIRANDA – No próximo paquete.

ISABEL – Depois de amanhã?

MIRANDA – Desejava, mas já não é possível. Será no seguinte.

ISABEL – Daqui a um mês!... Antes disso terei eu partido, e para mais longe!... É inútil a sua viagem.

MIRANDA – Deixe estas ideias tristes! Prometo-lhe que não voltarei!... Um dia chega-lhe a notícia de que está livre, viúva; pode ainda ser tão feliz! Neste momento, só lhe peço que me perdoe e me acredite. Aceitando a sua mão, pensei que poderia fazer-lhe a sua felicidade!...

CENA XIII

editar

Os mesmos e SIQUEIRA

SIQUEIRA – Que é isto? Continua a cena de ontem? De que estás chorando, Bela?

MIRANDA – As Senhoras choram por qualquer motivo. Comuniquei-lhe o meu projeto de ir à Europa...

SIQUEIRA – Ah! Mas é cousa nova!

MIRANDA – Resolvi agora na cidade. A minha saúde, a minha carreira mesmo, exigem esta viagem.

SIQUEIRA – Acho-a fora de propósito. É mau tempo, deve deixar para maio.

MIRANDA – E a Câmara?... Por esse tempo pretendo estar de volta. Quero aproveitar o intervalo da sessão: será uma viagem precipitada, e muito incômoda para Bela.

SIQUEIRA (a ISABEL) – Então já está chorando de saudades?... É uma ausência de sete meses apenas.

ISABEL – De sete meses!... E que fosse, para quem nunca se separou, mais do que alguns dias!...

MIRANDA – Convém habituarmo-nos; ninguém sabe quando chega o momento da separação eterna.

SIQUEIRA – Deixemos isso; a viagem não é agora.

ISABEL – É no próximo vapor.

SIQUEIRA – Havemos de ver.

MIRANDÂ – Em todo caso é cedo para afligir-se, não é verdade, meu sogro?

SIQUEIRA – Decerto. (A ISABEL) Não te agonies; no fim das contas isso não passa de projeto.

MIRANDA (saindo) – Já volto.

ISABEL – Peça-lhe que não faça esta viagem; mas como cousa sua!... Augusto lhe quer bem: há de atendê-lo.

SIQUEIRA – Eu te prometo falar com ele. Fique descansada.

ISABEL – Mas não lhe fale hoje, não; depois outro qualquer dia. Oh! Eu sinto que essa viagem me mataria.

HENRIQUE (entrando) – Senhor Siqueira, preciso falar a Bela. Me dê licença.

SIQUEIRA – Outro!... Veja se também a faz chorar como seu tio.

CENA XIV

editar

ISABEL e HENRIQUE

HENRIQUE – Chorava?... E foi ele que a fez chorar? Já sei o que isto quer dizer.

ISABEL – É um capricho meu, uma sem-razão.

HENRIQUE – Há um ano é esta a primeira vez que nos achamos sós, Bela. O amor de Clarinha curou a minha loucura; e contudo evitei sempre essas ocasiões pelo respeito que lhe tenho. Hoje, porém, é necessário que lhe fale.

ISABEL – Estou agora tão agoniada.

HENRIQUE – Por isso mesmo!... Que adivinho o motivo. (Grave) Bela, o que se passou naquela noite... Na noite em que eu cometi a imprudência...

ISABEL – Nada, Henrique, nada.

HENRIQUE – Responda-me a verdade.

ISABEL – Já lhe disse. Que ideia é essa?.

HENRIQUE – Dá-me sua palavra de que nada se passou com seu marido? (Pausa.) Não pode dá-la. Eu suspeito, eu sei tudo, Bela!

ISABEL – É impossível! Quem lho diria?

HENRIQUE – Então o segredo existe? Bem vê que não o pode ocultar.

ISABEL – Cale-se, Henrique! Podem ouvir-nos! Senti empurrarem aquela porta!

HENRIQUE – Foi engano seu; está fechada. Ontem, Bela, quando me supus traído por Clarinha, tinha uma arma na mão e meu primeiro movimento foi um crime! Meu tio quis chamar-me à razão e eu não o atendi. Enfim, impelido por uma recordação funesta, contou-me ele uma história; a história de um amigo que como eu se julgava desonrado, e como eu ia matar sua mulher, quando o grito de sua filha...

ISABEL – Que tem esta história comigo, Henrique?

HENRIQUE – Ele falava de si, Bela!

ISABEL – Como!... Pode supor?...

HENRIQUE – Duas vezes traiu-se; a palavra saiu-lhe sem querer. Disfarçou!... Mas ontem eu apenas o ouvia; a minha alma estava absorvida numa só ideia. Depois, esta noite, tudo o que ele me disse me voltou ao espírito, lembrei-me de sua emoção quando me falava... Inda há pouco as palavras lhe ouvi!... Não me resta a menor dúvida.

ISABEL – De que, Henrique?

HENRIQUE – Seu marido entrando naquela noite viu-me saltar pela janela. Não me conheceu e tomou-me por outro. Ambos iam morrer. Iaiá os salvou; mas desde então vivem como estranhos, vítimas de meu erro, condenados a um suplício horrível! Aquela febre repentina que nos fez temer por sua vida e que me privou de partir para Montevidéu foi consequência dessa emoção violenta! Diga-me! Não é essa a verdade?

ISABEL – Não o compreendo, Henrique. Já observou a mínima desinteligência entre mim e meu marido? (MIRANDA bate na porta envidraçada, ouve-se a voz de IAIÁ.) É Iaiá. (Quer abrir, HENRIQUE a retém.) HENRIQUE – Oh! Quantas circunstâncias que passaram desapercebidas, e das quais agora me recordo! Porém é escusado negar! Se não me refere o que se passou, Bela, juro-lhe que vou ter imediatamente com meu tio e confesso-lhe tudo. Dir-lhe-ei a verdade; que eu fui um louco; que tive a infâmia de conceber uma paixão insensata, à qual sua mulher repeliu sempre com indignação! Dir-lhe-ei que naquela noite, resolvido a abandonar tudo, e ir morrer longe daqui para me punir do meu crime, e não ofender, nem por pensamento sua honra e sua felicidade... Que naquela noite tive a audácia de voltar a sua casa e de surpreendê-la para dizer-lhe o último adeus!... Confessarei tudo... Ele não me perdoará, estou certo! Mas, conhecerá a alma nobre de que teve a desgraça de suspeitar!

ISABEL – Pois bem. Já que não lhe posso arrancar essa convicção, é necessário que saiba o segredo que eu contava levar comigo. E tudo verdade, Henrique; Augusto me julga culpada. Viu-o naquela noite e tomou-o por outro homem.

HENRIQUE – Quem?... Não me ocultes!

ISABEL – O Sales!

HENRIQUE – Ah! por isso ele ontem duvidou! E não lhe bastava uma palavra, Bela, para destruir uma suspeita?

ISABEL – Essa palavra era o seu nome.

HENRIQUE – Assim, por causa da afeição que ele me tinha, e de que eu era indigno, não lhe importou sacrificar a sua felicidade, a de sua filha e de seu marido!... Sim! Porque meu tio quer-lhe mais, mil vezes mais do que a mim.

ISABEL – Ele me despreza... E tem razão!

HENRIQUE – Ele a ama, com paixão, como nunca a amou. Confessou-me ontem!

ISABEL – Será possível, meu Deus! Oh! Não me engane, Henrique!

HENRIQUE – Bela, é necessário que meu tio saiba tudo.

ISABEL – Nem uma palavra! Foi uma fatalidade que passou sobre mim; já não há remédio neste mundo.

HENRIQUE – Então, porque eu cometi uma imprudência fugindo pela vergonha de me achar em face de meu tio, sua mulher, um anjo de virtude, há de sofrer semelhante tortura?... E eu a causa dessa desgraça, cuida que consentirei nela? Nunca!

ISABEL – Se conhecesse como eu o caráter de seu tio!... Quantas vezes não estive a ponto de cair aos pés de Augusto e confessar-lhe tudo!... Porque, deixe dizer-lhe, Henrique, depois que meu marido me despreza, é que eu senti toda, a força do amor que eu lhe tinha. Esse mesmo desprezo com que ele me esmagava vinha cheio de tanta nobreza, de tanta paixão, que o revelavam a meus olhos bem diferente daquele que eu via através da indiferença e do abandono. Nunca amei meu marido com tanto respeito e admiração, como nesse ano que se acaba de passar!... É verdade!... E quando ele estava possuído da ideia de que eu amava outro homem... Meu Deus! Não teria coragem de resistir, se não me lembrasse...

HENRIQUE – De quê?... Da amizade que ele me tem?

ISABEL – Augusto, como todos os homens de grande inteligência e de caráter enérgico, é inflexível em suas convicções. O coração pode querer o contrário; a razão não cede. Ele duvida de mim; se eu pronunciasse o seu nome e revelasse enfim todo o segredo, pensa que ele acreditaria na minha inocência?...

HENRIQUE – Por que não, desde que eu mesmo me acusasse?

ISABEL – Não se iluda! Ele perderia a sua afeição e seria mais desgraçado ainda; porque se julgaria desonrado pelo homem a quem amou sempre, e ainda ama como um filho. Essa desconfiança seria horrível; e eu duvido que sua alma pudesse resistir a esse golpe. Oh! meu silêncio mata-me, é verdade, mas a mim somente; e eu devo morrer!

HENRIQUE – Desonrada por mim! Não profira esta palavra!... Por mim que se tivesse outrora a infâmia de conceber uma esperança, me teria punido desse crime! Por mim que seria o primeiro a odiá-la, Bela, se a sua justa severidade não me repelisse!

ISABEL – Podemos nós, Henrique, dar provas disso?... Provas que convençam Augusto e afastem de seu espírito toda a suspeita?

HENRIQUE – Que maior prova do que a minha felicidade de hoje? Quem foi que, para nos salvar de uma paixão criminosa, me fez amar Clarinha? Quem nos inspirou a ambos com uma bondade angélica esse amor puro?... Entre todos que a amam e veneram, só ele, só aquele nobre coração não reconhecerá o anjo que Deus lhe deu por mulher? (CLARINHA abre a porta da direita com estrépito.)

CENA XV

editar

Os mesmos, CLARINHA e SIQUEIRA

CLARINHA – Bela, que dê o Miranda?

ISABEL – Não sei, por quê?

CLARINHA – O Senhor Siqueira me disse que ele ia amanhã para a cidade; e que Joaquim já levou a mala para a Estação!

ISABEL – Mas há pouco Augusto saiu daqui.

SIQUEIRA – Esteve na varanda conversando conosco; e deixou-nos para vir buscar uma carta que esquecera.

ISABEL – E verdade, quando cheguei vi-o escrevendo. HENRIQUE (correndo à mesa, acha uma carta lacrada) – Uma carta para mim? Que quer dizer isto? (Batem na porta da esquerda que MIRANDA tem fechado.)

SIQUEIRA – Abre!...

HENRIQUE (lendo) – "Henrique... Há muito tempo... resolvi esta viagem... (ISABEL lê igualmente) para não..."

CLARINHA (simultâneo com a leitura) – Que viagem?

SIQUEIRA – Uma viagem à Europa. (Batem de novo.)

HENRIQUE – "Para não agoniar Bela, tenho ocultado esse projeto; direi que pretendo partir no seguinte paquete... mas quando leres esta terás recebido... as minhas despedidas..." (Esta leitura é rápida.)

ISABEL – Meu Deus!... Não o verei mais? (SIQUEIRA ouvindo bater terceira vez, dirige-se à porta.)

CLARINHA – Não é possível!

HENRIQUE – Clarinha tem razão: tranquilize-se, Bela. (SIQUEIRA tem aberto a porta de vidraça à esquerda, MIRANDA aparece.)

SIQUEIRA – Ora aqui está o Miranda!...

CENA XVI

editar

Os mesmos e MIRANDA

ISABEL (vendo MIRANDA) – Ah!..

MIRANDA (comovido, HENRIQUE tem o papel na mão) – Esta carta só te devia ser entregue amanhã. Vinha buscá-la e achei a porta fechada. (Apertando-lhe a mão) Tudo ouvi, Henrique!

CLARINHA – Tudo o quê?

MIRANDA (cingindo com o braço a cintura de ISABEL, a meia voz) – Bela!... Me perdoarás tu algum dia? (ISABEL reclina a cabeça sobre o peito de MIRANDA e quase desmaia; MIRANDA beija-a na fronte.)

CLARINHA – Bravo! (A HENRIQUE) Não tens inveja? Abraça-me, eu dou licença!

HENRIQUE – Com muito prazer; em paga da alegria que fizeste entrar hoje nesta casa!

MIRANDA (apresentando IAIÁ pela mão) – Nossa filha, Bela. (Conhece que está desmaiando.)

SIQUEIRA – Uma vertigem!...

HENRIQUE – Já passou.

MIRANDA (aflito) – Bela!

ISABEL – Ah!...

CLARINHA – Que tens?

ISABEL – Não sei... A felicidade!...


FIM DE

"O QUE É O CASAMENTO?"