Obras completas de Fagundes Varela (1920)/Vozes da América/Aurora
Antes de erguer-se de seu leito de ouro,
O rei dos astros o Oriente inunda
De sublime clarão;
Antes de as azas desprender no espaço,
A tempestade agita-se e fustiga
O turbilhão dos euros.
As torrentes de idéas que se cruzam,
O pensamento eterno que se move
No levante da vida,
São auras santas, arrebóes esplendidos,
Que precedem á vinda triumphante
De um sol immorredouro.
O murmurar profundo, enrouquecido,
Que do seio dos povos se levanta,
Annuncia a tormenta;
Essa tormenta salutar e grande
Que o manto roçará, prenhe de fogo,
Na face das nações.
Preparai-vos, ó turbas! Preparai-vos,
Rebatei vossos ferros e cadêas,
Algozes e tyrannos!
A hora se approxima pouco a pouco,
E o dedo do Senhor já volve a folha
Do livro do destino!
Grande ha-de ser o drama, a acção gigante,
Magestosa a lição! Luzes e trevas
Luctarão sobre os orbes!
O abysmo soltará seus tredos roncos,
E o fremito dos mares agitados
Se unirá aos das turbas.
Os reis convulsarão nos thronos frageis,
Buscando embalde sustentar nas frontes
As huidas corôas...
Debalde!... o vendaval na furia insana
Os levará com ellas, envolvidos
N’um turbilhão de pó!
Vis, abatidos, o fidalgo e o rico
Sahirão de seus paços vacillantes
Nos podres alicerces...
E errantes sobre a terra irão chorando,
Mendigar um farrapo ao vagabundo,
E um pedaço de pão!
Estranho povo surgirá da sombra
Terrível e feroz cobrindo os campos
De cruentos horrores!
O palacio e a prisão irão por terra,
E um segundo diluvio, então de sangue,
O mundo lavará!
O sabio em seu retiro, estupefacto,
Verá tombar a imagem da sciencia,
Fria estatua de argilla,
E um pallido clarão dirá que é perto
O astro divinal que ás turbas miseras
Conduz a redempção!
Como aos dias primeiros do universo,
O globo se erguerá banhado em luzes,
Reflexos de Deus;
E a raça humana sob um céo mais puro
Um hymno insigne enviará, prostrada
Aos pés do Omnipotente!
Irmãos todos serão; todos felizes;
Iguaes e bellos, sem senhor nem pêas,
Nem tyrannos e ferros!
O amor os unirá n’um laço estreito,
E o transito da vida uma romagem
Se tornará celeste!
A hora se approxima pouco a pouco;
O dedo do Senhor já volve a folha
Do livro do destino!...
Ergue-se a tela do theatro immenso,
E o mysterio infinito se desvenda
Do drama do Calvario!