Obras de Manoel Antonio Alvares de Azevedo (1862)/Fragmentos de cartas do autor/1º de março de 1850

Meu Luiz.

Rio, 1º de março de 1850.

Recebi uma carta tua, escripta lá do Rio Grande logo á tua chegada. Por uma outra que escreveste ultimamente ao meu primo, me annunciavas uma carta no correio. Lá fui, e não achei-a.

Não irás pois a S. Paulo comigo. Dous annos tive eu lá como provação; era-me o consôlo, esperança (ai! que bem pobre esperança, que assim tão leviana se foi!) viver lá comtigo...

Luiz, ha ahi não sei que no meu coração que me diz que talvez tudo esteja findo entre nós. — Será uma mentira, uma dessas gottas de fel que se embebem no cerebro como uma loucura, ou um presentimento — negro embora — verdadeiro como o primeiro pio da procellaria aos preludios do vendaval por mar alto?

Tudo talvez esteja findo. — Minha amizade, Luiz, talvez tenha de viver-se de novo daquelle meu passado de dous annos, de saudades. — Saudade — exprime a magoa da separação, o desejo de tornar a ver-se, talvez um laivo de luz de esperança de porvir mais bello, não, Luiz?

Não tenho passado ocioso estas férias, antes bem trabalhadas de leitura tenho-as levado. N’ esse pouco espaço de trez mezes escrevi um romance de duzentas e tantas paginas; dous poemas, um em cinco e o outro em dous cantos; uma analyse do Jacques Rolla de Musset; e uns estudos litterarios sobre a marcha simultanea da civilisaçào e poesia em Portugal — bastante volumosos; — um fragmento de poema em linguagem muito antiga, mais difficil de entender que as Sextilhas de Fr. Antão — n’outro gosto porém, mais ao geito do Th. Rowley de Chatterton.

A essa minha agitação de espirito sobrevem-me ás vezes um marasmo invencivel, horas daquellas que os navegantes temem, em que a calmaria descai no mar morto, e as velas cahem ao longo dos mastros. Fallei-te sempre e sempre com a mão no coração — se algum dia eu morresse moço ainda, na minha febre de ambiciosas esperanças, se — pobre imaginação de poeta — o gelo da morte me corresse no lavoso do cerebro, ha em algumas das minhas cartas a ti uma historia inteira de dous annos, uma lenda, dolorosa sim, mas verdadeira, muito verdadeira, no seu pungir de ferro, como uma autopsia de soffrimentos.

Luiz, é uma sina minha que eu amasse muito, e que ninguem me amasse. Eis a ironia que ahi me vêem no meu acabrunhar sombrio, n’ esse meu não crer do que os outros crêem — chamão-me frio, julgão que o egoismo e o orgulho m’o gelára inteiro o nectar, que se chama a alma, daquella amphora maldita que se chama a vida!

Hontem estive n’um soirée. Nada, ahi como sempre, me divertiu. Quando o tédio vem de dentro, não é o sorrir dos bailes que possa adoçal-o. Quando a magoa é funda e erma; quando o coração resiccou, não é o banho de fogo de um olhar que possa revivêl-o!

A’s vezes ainda — e hoje na minha solidão é essa minha ventura — quando a mente se me embebe no ebrioso de uma scisma, quando me passão n’alma sonhos de homem que não dorme, que se chamão poesia, eu ainda sinto reabrir-se meu peito a amores de mulher. — Parece que, se aquella belleza de olhos e cabellos negros, do largo collo em que lhe fluctuão, desatasse com seus dedos macios e finos aquellas sedas do roupão, — se eu ahi repousasse essa febre da fronte que me dóe, esse queimar de um cerebro que se me afoga, eu poderia ainda ter vida — bastante para desvivel-a ahi no voluptuoso de um espasmo, para morrer ahi na loucura de um sonho de beijos... E quando, ante uma fórma alva de loira, na limpidez de uns olhos transparentes e azues como o mar, eu leio o que vai de pureza, o que ha de areias d’oiro sob aquelle esmalte diaphano de vaga, então, como o Faust de Goethe na alcova de Margarida, ha uns effluvios magneticos que me avivão o já morto palpitar de minhas fibras — oh! então eu espero ainda...

Mas em geral, o que ás vezes ainda me aviva o pulsar mais trepido do sangue é a voluptuosidade que se me vislumbra n’uma mulher donairosa, n’uma daquellas que parecem feitas por Deus como estatuas para rezar-se-lhes ao sopé, para pedir-lhes, como á Vénus lasciva, uma hora — uma só — de gozo...

Sâo sonhos — sonhos! Luiz! E’ loucura abrir tanto as azas de anjo do coração a essas brizas enlevadas que á tarde vem tão susurrantes de enleio, tão impregnadas de aromas de beijos! E’ loucura! E comtudo quando o homem só vive delles — quando ahi todas as portas fechárâo-se ao engeitado, porque náo ir bater no só da noite ao palacio de fada das imaginações?

Ha uma unica cousa que me podesse dar hoje o alento que me morre. — Que me morre... — disse eu; não creias que minto. Todos aqui me estranhão este anno o taciturno da vida e o peso da distracção que me assombra. — O meu viver solitario, fechado só no meu quarto, o mais das vezes lendo sem ler, escrevendo sem ver o que escrevo, scismando sem saber o que scismo — talvez alguma lagrima furtiva rolou pela face de minha mãe... Pobre mãe! — não é assim, meu Luiz? Pobres (não o crês?) daquellas que vêem o filho pender e murchar pallido como a sons da musica sombria que elle só escuta!

Disse-t’o eu: ha uma unica cousa que me podesse dar o alento que me desmaia — uma mulher que eu amasse.

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Eis ahi pois tudo — amor, poesia. Só nâo te fallei na gloria. Nem te fallo. Rir-te-hias de mim e della, como eu tanbem me rio. Gloria! em nossa terra! Oh! cysnes brancos perfumados dos vapores do Céo, porque descer ao charco impuro, a nodoar os alvores, a perder os aromas? A’s aves das nuvens o céo — Aos poetas, sonhos. — Glorias da terra? Não te lembras do Dante, de Chatterton, de Byron? Não te lembras de Werner, poeta e grande tambem, morto de scepticismo e desesperança sob a sua grinalda de orgia? Glorias da terra! Os applausos da turba — enfezados louros, o mais das vezes tressuados de sangue, salpicados do lodo do insulto, e da bava da inveja.
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Adeus, meu Luiz. A belleza do espiritualismo é o amor das almas — essa afinação que as palpita unisonas par a par ainda na separação, ainda quando os sentidos que nos ligão á matéria não tactêão mais o objecto que se ama. Adeus. Assim como eu te amo, ama-me. Não esqueças entre tuas campinas do Rio Grande, ao riso de labios de rosa onde se desvelão perolas, das tuas patricias bellas

O teu amigo,

Azevedo.

Quiz reler minha carta para emendar algum erro que ahi resvalasse no andar da penna; mas achei-a tão longa que faltou-me animo. Demais a letra sabiu tão má que quasi a não entendo. Se não a entenderes tambem, atira ao fogo esse papel. Pouco — nada perderás com isso. Será um quarto de hora de menos de perdido.

No dia 1º de abril parto para S. Paulo.