LIVRO XIV

 

O herói, por serros e áspera azinhaga,
Segue do porto, á selva, o divo busca
Leal pastor, que lhe afirmou Tritônia
Ser dos escravos dele o mais zeloso.
Achava-se ao portal, num sítio alegre5
Onde, n’ausencia do amo, edificara,
Sem da senhora auxilio ou de Laertes,
Vistoso amplo curral de pedra ensossa;
De espinho sebe em roda, e cerca de achas
Do cerne de carvalho externa havia.10
Na área em chiqueiros doze conchegados,
Em cada qual cinqüenta, se espojavam
Prenhes porcas; dormiam fora os machos,
Poucos, pois de contínuo aos pretendentes
O mais nédio cevado remetia:15
Trezentos e sessenta eram por todos.
Ao pé jaziam quatro cães de fila,
Pelo porqueiro maioral mantidos.
Este a seus pés talhava umas sandálias
De táureo tinto coiro; três ajudas20
As varas pastorar, mandara o quarto
Conduzir constrangido um bom capado,
Que na regia a gulosos recheasse.
Ladrando os brabos cães a Ulysses correm,
Que assenta-se manhoso e o bordão larga;25

Mas vítima seria, se o porqueiro,
Cair deixando o coiro, á pressa e em gritos
Não viesse a pedradas enchotal-os.
E a elle se virou: «Meus cães, ó velho,
Quase, por meu labéo, que te espedaçam,30
E os deuses de outras penas me acabrunham:
Choro a engordar os cerdos para estranhos,
E o meu divo senhor quiçá faminto
Vaga de povo em povo, se é que vive
E goza a luz do Sol. Comida e vinho35
Terás naquela choça, e tu repleto,
Me refiras teus males e aventuras.»

Na choça introduzido, em ramas densas,
De agreste cabra com velosa pele,
Do porqueiro acamadas, pousa Ulysses,40
E lho agradece: «Abençoado amigo,
Compensem-te os Supremos o agasalho.»

Tu respondeste, Eumeu: «Ninguém desprezo,
Qualquer acolherei de ti somenos;
Jove os mendigos e hospedes protege,45
Aprova os tênues dons que a medo faço,
Pobre servo, a mancebo submetido!
O Céo de meu senhor veda o regresso,
Que tanto me queria, e, como é de uso
Para com bons escravos laboriosos,50
A envelhecer aqui, me enriquecera
Com mulher e pecúlio, pois os deuses
Têm prosperado meu serviço. Ai dele!
Pereça toda a geração de Helena,
Dano e exicio de heróis! Para essa Tróia55
Também foi meu senhor vingar o Atrida.»

E ataca mal o cinto, e dous farroupos
Trazendo, os mata e lhes chamusca pêlo,
Corta, espeta, e no espeto o assado quente
Oferece e apolvilha de farinha;60
Vinho melífluo em copo de sobreiro
Mistura, á face do hospede se assenta:
«Anda, ora come do que aos servos cabe;
Os cevados aos procos se reservam,
Que do castigo olvidam-se impiedosos.65

Néscios! os numes a violencia odeiam
E a virtude honram só. De alheias plagas
Invasores hostis, que em naus de espólios
Onustas partem pôr favor de Jove,
Temem-se do castigo; os procos, julgo,70
Voz divina informou da triste morte.
Nenhum de núpcias trata ou de ir-se embora,
Todos em voraz ocio os bens estragam:
Uma nem duas vítimas lhes bastam;
Noites e dias, quantos Jove alterna,75
Consomem carnes, ânforas esgotam.
Em Ithaca e no escuro continente,
Não há magnata que possua tanto,
Nem vinte juntos; a resenha escuta:
Pastam-lhe em terra firme doze armentos,80
E há porcadas iguais, iguais rebanhos,
Vastos cabruns encerros, com pastores
De fora ou do país; nesta ilha mesma,
Guardam fiéis cabreiros onze fatos,
E eu rejo estas pocilgas. Nós forçados,85
Pensão quotidiana, remetemos
A mais nédia cabeça a tais senhores.»

Tácito Ulysses come e ávido bebe,
Ideando a vingança; e, confortado,
A copa do porqueiro aceita plena,90
Jubiloso e veloz: «Rico era e forte
Quem te comprou, qual, hospede, o apregoas?
Morto o crês pela causa de Agamemnon:
Talvez o conhecesse eu vagamundo;
Sabe a etérea mansão, quando o nomeies,95
Se ocultar testemunho em mim depares.»

«Velho, constesta Eumeu, não mais se apoiam
Em peregrino algum a esposa e o filho:
Quanto são mentirosos os mendigos!
A senhora os socorre e asila e inquire;100
Mas incrédula geme, qual viúva
Que lamenta o marido ao longe extinto.
Urdir hoje uma fábula pretendes,
Para de capa e túnica mudares?
As entranhas cães e aves lhe tragaram,105

Ou, dos peixes roído, a vaga os ossos
Lançou-lhe á praia e os cobre densa areia.
Morreu, morreu, deixando em luto amigos,
Mormente a mim, que o não terei tão brando,
Nem que de pai e mãe voltasse á casa,110
Onde a luz vi primeiro e me criaram:
Tão saudoso os não choro e a patria amada,
Como Ulysses me lembra. Até receio,
Pois tanto me estimava e destinguia,
N’ausencia nomeal-o, irmão n’ausencia115
Mais velho o chamo, a suspirar por ele.»

E o divo herói: «Bem que emperrado o negues,
Não temerário to assevero e juro,
Ulysses vem; de alvíçaras me aprontas
Capa e túnica, inteira vestidura;120
Mas, inda que indigente, o prêmio enjeito,
Antes que elle se mostre em seu palacio:
Como do inferno as portas, abomino
Falácias da pobreza. Atesto Jove,
De teu amo o lar puro a que me encosto125
E a mesa hospitaleira, o anúncio é vero:
Neste ano e lua mesma, ou na vindoura,
Cá de retorno, punirá severo
Os ultrajes da esposa e de seu filho.»

Não ganharás alvíçaras, meu velho,130
Ajunta Eumeu; não conto mais com ele.
Bebe tranqüilo; outras lembranças volve,
Que este assunto angustia-me e contrista.
Juramentos a parte, oh! se viesse,
Qual o anelo, Penélope e Laertes,135
E o deiforme Telemacho. Esta agora
Única planta choro, que ao celeste
Bafo eu supunha igual de rei medrasse
Em garbo, esforço e mente; mas, iluso
Por imortal ou por humano, a Pilos140
Do pai foi-se em procura, e á volta os procos
O incidiam cruéis, para que arranquem
Da ilha a estirpe do divino Arcésio.
Basta; se escape ou não, toca ao destino,
E o Satúrnio o proteja. Ora me explanes145
Quem és, de que família,

de que terra,
Os infortúnios teus; que exímios nautas
E em que navio aqui te conduziram?
A Ithaca não creio a pé viesses.»

Começa Ulysses: «Narrarei sincero.150
Se de espaço a lograr teu vinho e pasto,
Incumbido o serviço a outros sendo,
Fôssemos nesta choça, inda que um giro
Decorresse anual, não me era fácil
Expor as penas que infligiu-me a sorte.155

«O Hilácides Castor, na extensa Creta.
Gerou-me numa pelice comprada,
E a par de seus legítimos criou-me
E honrava em seu palacio; é glória minha
De um pai vir dos Cretenses endeusado,160
Por opulencia e muita clara prole.
No Orco o sumiu fatal necessidade:
Meus irmãos tudo em lotes partilharam,
Escassos bens e um teto me cederam.
Casei por meu valor com rica herdeira,165
Pois fugaz, nunca fui nem vil e inerte:
Posto porém que as forças me falecem,
De tamanha miséria quebrantadas,
Pela palha avalia o que era a messe.
De Mavorte e Minerva obtive audácia:170
Hostes rompi; se, infenso e belicoso
Da emboscada elegia os camaradas,
Nunca da morte o horror se me antolhava;
Sempre avante, os contrários punha em fuga,
De lança indo alcançando os mais ronceiros:175
Tal em combates fui. Nunca me aprouve
Na família cuidar, cuidar nos filhos;
Sonhava em remos, naus, zargunchos, frechas,
Em petrechos de guerra sanguinosos:
Dos homens são diversos os prazeres;180
Um deus nesse meu ânimo cevava.
Antes de irmos a Tróia, vezes nove
Regi corsários: da escolhida presa,
Aos matalotes sorteado o resto,
Locupletou-se a casa, e entre os Cretenses185

Tive grande renome e autoridade.
Mas, decretando Jove aquela empresa
Tão matadoura, os povos me expediram
Adido a Idomeneu; sem resistirmos,
Que o público rumor nos obrigava,190
Velejamos. Nove anos pelejou-se:
Ao décimo, assolada Ílio Priaméia,
Dispersa no regresso a frota Aquiva,
Ai! guardou-me o Satúrnio outros pesares!

«Um mês único estando em meus haveres195
Com filhos e a mulher que esposei virgem,
A vogar para o Egito inclino a idéa,
E nove embarcações tripulo em breve,
Reses degolo e sagro; os divos socios
De solenes festins seis dias gozam.200
De Creta largo ao sétimo, e do puro
Bóreas ao fresco alento, qual se fosse
Veia abaixo, aportamos sem perigo,
Aos pilotos e ao vento encomendados.
Á quinta singradura o Egito enxergo,205
No rio surjo caudaloso e belo;
Exorto a se manter a bordo a gente,
E encalho as naus flutívagas, mandando
Á terra exploradores. Estes loucos,
A impulsos do apetite, agros depredam,210
Matam, mulheres e crianças roubam:
Mas, ao rumor, de madrugada acorrem
Éqüites e peões erifulgentes
Que enchem toda a campina e o Fulminante
Medo incutindo aos meus, nenhum resiste;215
Cercados, parte a bronze agudo acaba,
É reduzido o resto a cativeiro.
Mesmo o deus (mais valera que eu no Egito
Falecesse e os trabalhos atalhasse)
Isto inspirou-me: o elmo da cabeça,220
Do ombro tiro o broquel, deponho a lança;
Do rei boto-me ao coche e as plantas beijo.
Com mágoa do meu pranto, elle consigo
Dirigiu-me a seu paço; e, bem que de hastas
O sanhoso tropel me acometia,225
Contê-los

soube, atento ao Padre sumo,
Ás injurias dos hospedes avesso.

«Sete anos lá no Egito enriquei muito,
Pois muito me brindavam; mas, no oitavo,
Cadimo comilão, vezeiro e useiro,230
Induziu-me á Fenicia patria sua,
E me reteve. As estações volveram;
Para ajudal-o na descarga, á Líbia
Fingido o avaro me arrastou, vender-me
Tencionando: embarco suspeitoso.235
Creta avistamos com sereno Bóreas;
Mas, alagada a ilha, os céos e o ponto
Sós nos rodeiam; Júpiter cerúlea
Grossa nuvem desfecha, ofusca os mares,
Fuzila, toa; um raio a nau revira240
E enxofra toda; a gente cai nas ondas,
Como alcatrazes de redor flutuam,
Da volta os priva um deus; que, em tanta afronta,
No mastro me salvou. Nele abracei-me
Dias nove, e á dezena escura noite,245
Quase a morrer de frio e de fadiga,
Arrojou-me á Tesprócia um rolo d’água.
Do régio herói Fídon o amado filho,
Levantando-me, ao pai guiou-me afavel,
Que me proveu de túnica e vestidos.250

«Lá foi que ao bom monarca ouvi de Ulysses,
Hospede seu; mostrou-me os dons em cópia,
De ouro, de bronze ou trabalhado ferro,
Para dez gerações talvez sobejos:
Em depósito achavam-se no erário,255
Dês que ao Dodonio falador carvalho
Foi-se o Laércio demandar a Jove
Se, após tão largo tempo, aqui regresse
Oculta ou claramente. O rei jurou-me,
Com libações, que a nau já tinha prestes260
E a companha que á patria o conduzissem.

«Fídon, sendo teu amo inda em consulta,
Num Tesprocio navio, que a Dulíquio
Frumentária partia, remeteu-me
Á real proteção do ilustre Acasto;265

Mas, com malvado arbítrio, ao largo a gente,
Maquinando afundir-me em servil dia,
Despojam-me, e o que vês grosseiro trapo
Vestem-me e este gabão. Na tarde abordam,
Prendem-me á toste com torcida corda,270
Saltam para cear na praia amena:
Fácil os mesmos deuses me desatam;
Á cabeça o capuz, do leme ao fio
N’água deslizo, a braços remo e nado;
Inadvertido escapo, terra tomo,275
De flório carvalhal me estiro á copa.
A suspirar procuram-me, e cansados
Vogam de novo: o Céo, pois meu destino
Inda é viver, manteve-me escondido,
E a benfazejo teto encaminhou-me.»280

E Eumeu: «Tal vaguear, tanto infortúnio,
Me abalou. Só de Ulysses nada creio:
Homem cordato, como assim mentiste?
Balda esperança! Em Tróia o Céo vedou-lhe
Morte egregia ou nos braços dos amigos:285
Honrara ao filho o túmulo exalçado,
E as harpias inglório o têm roído!
Solitário entre os porcos, só me movo
Da prudente Penélope ao chamado,
Quando há qualquer noticia. Os que a ladeiam,290
Ou chorem meu senhor ou se comprazam
De gastar-lhe a fazenda, me interrogam:
Nada investigo, dês que um vago Etólio,
Neste alvergue hospedado por homizio,
Jurou que o viu na regia, estando em Creta295
As naus a reparar de uma tormenta:
Que no estio ou no outono aqui seria
Com imensa fortuna e os divos socios.
E tu, velho infeliz, que o deus me envia,
Não penses me agradar com tais embustes:300
Não te honrarei nem te amarei por eles,
Sim porque temo a Jove e hei de ti mágoa.»

Ulysses replicou: «Nem juramentos
Vencem-te a pertinácia! Ante os Supremos,
Sacro ajuste se firme: a vir teu amo,305

Segundo os meus desejos, me transportes,
Com manto novo e túnica, a Dulíquio;
Senão, de alto os ajudas me despenhem,
Para que outro mendigo não te engane.»

Logo o pastor: «Minha virtude e fama310
Agora e no porvir se manchariam.
Como! a vida arrancar-te, neste asilo
Depois de te acolher! Ao grã Tonante
Nunca mais suplicar me atreveria.
Hora é de ceia, e os socios cá não tardam,315
Para mais abundante a prepararmos.»

Chegam nisto os serventes, e as manadas
A pernoitar encerram nos chiqueiros,
Que ressoam de roncos e grunhidos.
Insta-os o maioral: «Trazei-me um porco320
Ótimo, que, immolado ao peregrino,
Regale-nos também, já que albidentes
Animais com fadiga pastoramos
E outros sem trabalhar impune os comem.»

Eis racha a bronze a lenha, e ao lar presentam325
Um quinquene cevado. Não se esquece
Dos imortaes; raspa da nuca o pêlo,
Queima em primicias, do amo a volta implora.
Um troço de carvalho não fendido
Na rês descarga; sangram-na, chamuscam,330
Desentranham, dividem; na gordura
Eumeu porções do corpo todo envolve
E ao fogo os põe de farro apolvilhadas;
As postas a preceito assam de espeto;
E, do brasido á mesa vindo as carnes,335
Alçado o justo Eumeu, conforme ao rito,
Forma sete quinhões: um vota ás nymphas
E ao que nasceu de Maia, e os mais reparte
A cada comensal; o dorso inteiro
Do albidente por honra a Ulysses coube,340
Que em júbilo exclamou: «Dileto a Jove
Tanto fosses, Eumeu, quanto me és caro.
Tu que nesta miséria assim me tratas!»

«Do que há, disse o pastor, come a teu gosto
O deus, hospede egrégio, os bens outorga,345

Ou tira a seu prazer, pois tudo pode.»
E as primicias offerta aos Sempiternos,
Liba, o copo ao turrífrago sentado
Junto ao quinhão transmite. Os pães Melausio
Distribui, que o pastor, ausente Ulysses,350
Sem sabê-lo Penélope ou Laertes,
Do seu comprara aos Táfios. Satisfeitas
Sede e fome, levanta o escravo a mesa,
E os convivas contentes vão deitar-se.

Brusca a noite, chovia sempre Jove,355
Mádido sempre o Zéfiro espirava;
Por tentar se o capote lhe conceda
Solícito o pastor, ou qualquer outro,
Um conto Ulysses tece: «Eumeu, vós todos,
Escutai-me a vanglória; pois com vinho360
Doudeja o sábio, cantarola e dança,
Ri solto, parla o que era bom calasse:
Ora desato a lingua, e nada encubro.
Oh! saúde eu tivesse e o vigor d’antes,
Ao pormo-nos em Tróia de emboscada!365
Ulysses comandava e o louro Atrida,
Sendo eu terceiro por escolha de ambos.
Ante o muro jazíamos armados,
Entre urzes e morraças pantanosas;
Bóreas esfria o tempo, geia e neva,370
Encaramela o arnez; de escudo aos ombros,
Dormindo os mais embrulham-se em capotes;
O meu tinha esquecido, não cuidoso
De que gelasse, e de broquel e banda
Nítida vim sómente. Um terço a noite375
Já decorria, os astros resvalavam;
O cotovelo do vizinho Ulysses,
Que prestes me sentiu, belisco e falo:
— Solerte herói, domado pelo inverno
Vai-se-me a vida: falta-me o capote;380
Que a túnica bastava persuadiu-me
Algum demonio, e agora é sem remédio. —

«Ele, exímio no prélio e no conselho,
Com pronto aviso em baixa voz responde:
Cal-te não te ouça a escolta. — E ao braço e punho385

Apoiando a cabeça: — Amigos, disse,
Visão divina o sono interrompeu-me;
Longe estamos da frota; alguém se apresse
A pedir a Agamemnon um reforço. —
Lesto levanta-se o Andremonio Toas,390
Larga o purpúreo manto e á frota corre;
Seu manto enfio, e durmo até que fulge
A aurora em trono de ouro. Ah! se eu tivesse
Aquela idade e força, um dos pastores
Me daria um capote, em reverencia395
Ao homem de valor; mas, roto e velho,
Pouco socorro espero e poucas honras.»
Acode Eumeu: «Foi guapa a tua história
Nem discorreste em vão, cordato amigo.
Não te faleça roupa, ou cousa alguma400
Que há mister suplicante peregrino;
Mas teus andrajos de manhã retoma;
De muda nada temos, uma andaina
De roupa há cada qual. Em vindo o filho
De Ulysses, te dará túnica e manto,405
E os meios de partir para onde queiras.»

Nisto, ao fogão lhe achega e alastra a cama,
Que de espólios cabruns e ovelhuns cobre;
Deita-lhe em cima o gabinardo espesso
Que em temporais tremendos envergava.410
O herói se estira, muito perto os moços;
Porém não pôde Eumeu longe dos porcos
Pegar no sono, e, com prazer de Ulysses
De que houvesses tal zelo em sua ausencia,
Para sair cortante espada ombreia,415
Veste albornoz ao vento impenetravel,
Mais uma pele de crescida cabra;
Contra os mastins e os malfazejos dardo
Rijo empunha, e dormir foi com seus porcos
Em caverna de Bóreas abrigada.420

 

NOTAS AO LIVRO XIV

 

21-57 — Vara de porcos, não vem em Constâncio, posto que venha em Morais, e que Lobo, na Corte na Aldeia, diga ser o mais próprio para significar a reunião destes animais. — Eumeu, com a pressa de ir buscar sustento para o hospede, aperta mal o cinto. M. Giguet diz: «Eumée relève sa tunique, qu’il passe dans sa ceinture.» Diz Pindemonte: «La tunica si strinse col cinto, et alle spalle in freta mosse.» Nem um nem outro, parece-me, exprimiu o pensamento: o essencial e o belo é ter o pastor, com o afogo de servir o seu hospede, atacado mal o cinto, para não perder tempo. Esta passagem assim entendida, como é forçoso que o seja á vista do texto, foi louvada por Chateaubriand.

182-186 — É antiquissimo o costume de não se atender ao modo por que se ganhou a fortuna: fosse por furtos, vexações, pirataria, pouco importa; há dinheiro, e basta. Não raramente, as condecorações e os títulos vêm dourar o baixo metal de que se compõem certas riquezas; e no futuro os descendentes honrar-se-ão do negro tronco donde procedem.

237 — Alagar-se a terra é frase marítima, assim como arrasar-se, para exprimir que ela com o andar do navio tem desaparecido: falta nos dicionários.

409-416 — Gabinarda, ou gabinardo como dizem Filinto e outros, é um grande capote de mangas; vem em Morais e não em Constâncio. Quanto a albornoz, capa aguadeira de capuz, eu assim o pronuncio pelas razões do mesmo Constâncio, e não albernoz, como escrevem com Filinto alguns autores.