LIVRO XIX

 

A meditar com Palas na matança
Fica o divo Laércio, e diz: «Meu filho,
Agora as armas recolher te cumpre;
E caso algum o estranhe, assim te escuses:
Quais as deixou meu pai, já não luziam;5
Do vapor do fogão fui preservá-las.
E outro medo o Satúrnio suscitou-me:
Entre os copos ferir-vos poderíeis,
Nosso convívio e os esponsais manchando;
Pois a força do ferro atrai o homem.»10

Telemacho obedece ao pai querido,
Chama Euricléia á parte: «Eia, as mulheres
Retém, ama, lá dentro, enquanto acima
Reponho as pulcras armas, desprezadas
E do vapor do fogo denegridas15
Na ausencia de meu pai. Menino eu dantes,
Ora quero do fumo preservá-las.»

A ama logo: «Oxalá com tal prudencia
A casa rejas! Mas diante, filho,
Quem te há de alumiar, senão as servas?»20
«Este hospede, responde acautelado;
Que do meu coma ocioso, não tolero.»

Ordem fútil não foi, porque os batentes
Fecha Euricléia. Á pressa ambos carregam
Elmos, cavos broquéis e agudas lanças;25

Precede-os Palas de lanterna de ouro.
«Meu pai, observa o moço, que milagre!
As paredes, as traves abietinas,
As grossas vigas, as colunas altas,
Em lume vivo aos olhos me lampejam:30
Um deus parece dentro esclarecê-las.»

«Tá! não tujas, o atalha o sábio Ulysses:
Os íncolas do Olympo assim costumam.
Deita-te: á espreita eu fico das criadas;
Esperarei que em pranto me interrogue35
Tua mãe.» — Ei-lo busca a própria alcova
No meio do esplendor, e em brando sono
Pega até que desponte a diva aurora;
Mas o herói permanece com Minerva,
A pensar no horroroso morticínio.40

Sai, qual Diana casta ou loura Vênus,
Penélope do tálamo, e lhe achegam
Ao lar o usado assento, obra de argênteas
E ebúrneas orlas, do famoso Icmálio,
De apto escabelo e forro de pelame.45
As cativas gentis ali vieram
Erguer das mesas muito pão restante,
E a copa que servira aos convidados;
Em terra as brasas dos fogões depondo,
Lenha renovam, que ilumine e aqueça.50
Doesta a Ulysses outra vez Melântia:
«Á noite, malandrino, inda importunas?
Espias as mulheres? Farto e impando,
Fora, fora; ao contrário, atiçoadas
Eu te farei mais presto escafeder-te.»55

Averso a encara: «Insultas-me, demonio,
Por que, em vez de luzir, mesquinho e roto
A mendigar meu pão sou constrangido?
É de errabundos sina. Eu já palacio
Tive e escravos, e o mais que adita os homens,60
E a quaisquer indigentes socorria:
Ora o querer de Jove arruninou-me!
Também murchar-te a formosura pode,
Que entre as servas te exorna; pode irada
Reprimir-te a rainha, e mesmo aquele65

Que inda esperar se deve. Mas, se Ulysses
Perdeu-se enfim, outro elle e não criança,
De Apolo por favor, conhece o filho
Quantas mulheres esta casa infetam.»

Ouve-a e grita a rainha: «Descarada,70
Em ti recairá tanta ousadia.
De mim triste soubeste que informar-me
Do esposo vem.» A Eurínoma virou-se;
«Traze-me, ecônoma, um forrado escano;
Em repouso, comigo elle converse.»75

Á pressa o escano de tosões coberto,
Lhe trouxe a velha; ao divo herói sentado
Penélope interroga: «Hospede, vamos
Quem és; de que família? de que patria?»
E o circunspecto: «No orbe, alta senhora,80
Ninguém te vitupera, e a glória tua
Penetra o céo; qual a de um rei sem pecha,
Que é pio e seus magnatas justo enfreia,
A quem do fruto as árvores se vergam,
O agro viça e engradece, a quem produzem85
Greis e armentios, ferve o mar com peixes,
E cujos povos a bondade exercem.
De outra cousa me inquiras, não da patria,
Não da família; ao recordá-las, custa
Gemer em casa alheia. Enfada o choro:90
De alguma serva o escárneo atrairia,
Se o teu não fosse, e pode ser que ao vinho
Meu luto lagrimoso atribuíssem.»

E ela: «O Céo me tirou beleza e forças,
Desde que a Tróia Ulysses me levaram.95
Venha, mande-me e reja, e a minha glória
Mais resplendeceria: hoje um demonio
Me entristece e comprime. A flor dos Gregos
De Dulíquio, Zacinto, Ithaca e Same,
Requestando-me invita, os bens me estragam.100
Já nos pobres nem hospedes provejo,
Ou nos arautos, público ministros:
Saudosa a prantear consumo a vida;
Urgem-me os procos, e eu maquino enganos.
Um gênio me inspirou tramar imensa105

Larga teia delgada, e assim lhes disse:
— Amantes meus depois de morto Ulysses,
Vós não me insteis, o meu lavor perdendo,
Sem que do herói Laertes a mortalha
Toda seja tecida, para quando110
No sono longo o sopitar o fado:
Nenhuma Argiva exprobre-me um funéreo
Manto rico não ter quem teve tanto. —
A diurna obra desfazia á noite,
E os entretive ilusos por três anos;115
Mas, gastas luas e horas, veio o quarto,
E então, por traça de impudentes servas
Apanhando-me, encheram-me de afrontas,
E a concluir a teia me forçaram.
Nem mais efúgio nem recurso tenho:120
Muito a casar instigam-me os parentes;
Leva meu filho o mal que os bens lhe comam,
Pois, homem já, da casa tratar pode,
Como os que de honras Júpiter cumula.
Dize-me assim quem és; tu não das penhas,125
Não do robre nascestes fabuloso.»

E elle cortês: «Mulher de Ulysses digna,
Já que insistes, conhece-me a linhagem;
E, bem que obedecendo agrave as penas,
Inerentes aos tristes que erradios130
Têm andado, como eu, de povo em povo,
Satisfazer-te vou. — De escuras vagas
Circúnflua jaz recunda e linda Creta,
Com cidades noventa e infindos homens
De lingua mista: Aqueus, Cídones, Cressos135
Indígenas de prol, divos Pelasgos,
Dórios cristados. Na ampla Gnosso Minos,
Cada nove anos comensal de Jove,
Pai de meu pai Deucalião brioso,
Os governava. Éton me chamam todos.140
Meu régio irmão Idomeneu de Tróia
Foi-se á guerra, mais velho e mais valente.
Na mesma empresa, á força de procelas
Do Maleia a Creta Ulysses impelido,
Surgiu do Aniso num difícil porto,145

Onde é das Ilitias, a espelunca.
Apenas salvo, a Idomeneu procura,
Que hospedes seu dizia venerando;
Mas este era partido em naus rostadas,
Uns onze sóis talvez. Do porto a Ulysses150
Escoltei mesmo, e na abundante casa
Amigo o recebi. Do povo obtidos,
Bois, pães e vinhos dei, por doze dias
Os seus provi de tudo, porque o Bóreas,
De um sevo deus movido, não deixava155
Em pé ter-se ninguém; mas no trezeno,
Calmado o vento, o pano desferiram.»

Assim fingia verossímeis contos,
E ela a chorar de ouví-lo definhava:
Qual, por Zéfiro a neve amolecida,160
Liquesce do Euro ao sopro em celsos cumes,
Desata-se em arroios e incha os rios;
Tal inundava as rubicundas faces,
Anelando o marido ali sentado.
Compunge a Ulysses da consorte o pranto;165
Mas, como ou ferro ou corno, firme e seco,
Por não trair-se, as pálpebras continha.

De lágrimas saciada, continua:
«Quero, hospede, sondar se na verdade
A Ulysses recolheste: qual seu trajo,170
Qual seu porte, quais eram seus guerreiros?»

O marido prossegue: «Árduo é, senhora,
Indo em vinte anos que saiu de Creta,
Exato ser; mas ouve o que me lembra.
De áureo firmal e duplo anel, seu manto175
Era encorpado e mórbido e púrpureo,
De alto lavor: nas anteriores patas
Um cão tinha tremente corçozinho,
E ávido o sufocava; elle a escapar-se
Com palpitantes pés se debatia:180
Foi pasmo a todos o recamo e a tela.
Notei-lhe ao corpo a túnica lustrosa,
Fina qual seca tona de cebola,
Alva imitante ao Sol, macia e leve,
Que espantava as melhores tecedeiras.185

Toma sentido, ignoro se tais vestes
Houve-as de casa, ou deu-lhas em viagem
Hospede ou matalote; pois de muitos
Era benquisto, e poucos o igualavam.
Eu doei-lhe ênea espada, roxo e duplo190
Manto e roupa talar, e á despedida
Á tabulada nau fui respeitoso.
Do arauto seu, mais velho alguma cousa,
Eu me recordo: Euríbato giboso
Era e trigueiro e de cabelo crespo;195
Ulysses entre os socios o estimava,
Por atinado concordar com ele.»

A tão veros sinais, dobrou de pranto;
Mas acalmada: «Se eras um pedinte,
Ês, hospede, hoje o amigo desta casa.200
Trouxe eu mesma da câmara essas vestes,
Eu mesma do firmal ornei luzente.
Ah! não mais torna á patria o caro esposo!
Fatal partida para a ymphame Tróia!»

«Bem que a dor justa seja, o herói contesta,205
Real consorte, o corpo não maceres:
Nunca chorou mulher perdido um jovem
Pai amoroso de seus doces filhos
Melhor que Ulysses, comparado aos numes;
Porém sossega e atende, eu serei franco.210
Tesprotes opulentos me contaram
Que, de riquezas o Laércio onusto,
Na praia ali sozinho aparecera;
Pois, ao vir da Trinácria, irado Jove
E o Sol, do armento seu pela matança,215
No undoso ponto os socios afundaram;
E ele, agarrado á quilha, enfim surgindo
Na Esquéria, aceito foi dos bons Feaces
Como um deus, e de offertas carregado
Quiseram transportal-o. Há muito Ulysses220
Ileso fora aqui, se em outros climas
Não preferisse cumular tesouros;
Para o que ninguém há de astúcia tanta.
Fídon rei dos Tesprotes me jurava,
Com libações, que a nau já tinha prestes225

Para o trazer, e num baixel mercante
Remeteu-me a Dulíquio frumentária;
Mas primeiro mostrou-me hospitais brindes,
A uma dez gerações talvez sobejos,
Postos no erário, enquanto ia o Laércio230
Ao de Dodona falador carvalho,
A indagar dos oráculos de Jove
Se, após tão largo tempo, cá regresse
Oculta ou claramente. Ele é pois salvo,
Nem da casa está longe; eu vou jurar-to:235
Atesto o Padre sumo e o lar de Ulysses.
Onde me asilo, aqui virás sem falta,
Mesmo este ano, esta lua ou na seguinte.»

«Oxalá, diz Penólope! Eu faria
Liberal que ditoso te aclamassem.240
Mas temo, hospede meu; nem elle volta,
Nem tu conseguirás daqui passagem.
Outro Ulysses não tenho (oh! se o tivesse!)
Que afague e expeça honrados forasteiros.
Depois de um pedilúvio, em cama, ó servas,245
De mantas bem se aqueça e belas colchas;
E, assim que a manhã brilhe em trono de ouro,
Banhado e ungido com meu filho coma.
Ai do que ouse ofendê-lo petulante!
Sem trabalhar descanse, inda que raivem.250
De sisuda mulher me louvarias,
A estares mal vestido á nossa mesa?
Duram breve os mortaes: o iníquo e fero,
Sempre de imprecações coberto em vivo,
Maldizem-no defunto; o afetuoso255
E de alma nobre, os hospedes lhe estendem
A glória e fama, e todos o abençoam.»

Opõe-se o herói: «De Ulysses digna esposa,
Mantas e moles colchas aborreço,
Dês que em remada nau de Creta os cimos260
Deixei nevosos: deito-me, como antes
Noites passava insones, e outras muitas,
Á espera da alva aurora, adormecia
No duro chão. De banhos eu prescindo,
Nem me toque nos pés, senão prudente265

Anciã no mal provada e oficiosa.»

E ela: «Nunca de amaveis peregrinos
Tive outrem como tu: quanto proferes
Siso respira. No infeliz conservo
A ama discreta, que, nascido apenas,270
Da mãe o recebera e amamentara:
Inda que fraca, os pés lavar-te pode.
Anda, Euricléia, este coevo banha
De teu senhor: talvez que elle tal seja
E dos pés e das mãos; pois no infortúnio275
Rapidamente os homens envelhecem.»

Tapa a nutriz o lagrimoso rosto
A soluçar: «Ai filho, em vão te anseio!
Pio embora, és de Jove o detestado!
Ninguém tantas queimou sucosas coxas,280
Nem lhe deu mais solenes hecatombes,
Viver quando rogava longa vida
E teu filho educar; mas o Tonante
Sumiu-te a luz da volta! Alhures, zombam
Ah! dele, amigo, em pórticos soberbos,285
Outras como as que foges despejadas.
Lavo-te os pés, não só porque mo ordena
De Icário a boa filha, mas de grado,
Por mera compaixão. Têm vindo muitos
Peregrinantes cá; nenhum, te afirmo,290
A Ulysses como tu se assemelhava,
No meneio e no andar, em voz e em gesto.»

Cauteloso a atalhou: «Sim, todos eram
Desse teu mesmo aviso.» Reluzente
Bacia a velha toma, onde água fresca295
Vaza e a fervente em cima. Ao lar no escuro
Senta-se vôlto Ulysses, receoso
Que a cicatriz o arcano revelasse.
Ela, o senhor banhando, essa conhece
Marca do alvo colmilho de um javardo,300
Quando ao Parnaso visitou seus tios
E avô materno Autólico, entre os homens
No pilhar e jurar manhoso e mestre;
Por Mercurio assistido, a quem de chibos
E anhos queimava as agradaveis coxas.305


Veio Autólico a Ithaca ubertosa
De seu neto ao nascer; e, mal cearam,
Põe-lhe o ymphante aos joelhos Euricléia:
«Tu o almejavas tanto, agora inventa
Um nome ao filho da querida filha.»310

Disse o avô: «Genro meu, minha Anticléia,
Eu ressentido contra muitos venho
De um e outro sexo na selvosa terra;
Um nome lhe imporei, chame-se Ulysses.
Crescido, a casa a visitar materna,315
Vindo ao Parnaso, onde as riquezas tenho,
Hei de brindal-o e despedir contente.»

Foi-se do prometido em busca Ulysses:
Antólico e família o abraçam ternos;
Carinhosa Anfitéia avó beijou-lhe320
A testa e olhos gentis. Ao patrio mando,
Para o banquete opíparo, a preceito,
Qüinquene touro os príncipes esfolam,
Picam-no, assam de espeto, e em roda servem;
E, o dia inteiro á grande regalados,325
Liga-os a noite opaca em brando sono.

Ulysses, no arrebol, em montearia
Trilhando as selvas do íngreme Parnaso,
A ventosas fraguras segue os tios;
E, no arraiar o Sol do mudo Oceano,330
Precedendo a matilha farejante,
Vibra o dardo num vale o divo moço.
Em brenha oculto um javali jazia,
Brenha á diurna torreira impenetravel,
Ao sopro aquoso, á desatada chuva,335
Pleno o covil de bastas secas folhas:
Ao latir e ao tropel, sanhuda a fera
Sai, de eriçado pêlo e a vista em brasa,
Tem-se de perto; Ulysses o primeiro
Com forte ávida mão levanta o pinque;340
Prevenindo-lhe o golpe, o dente o cerdo
Lhe aferra no joelho, mas oblíquo,
Sem osso lhe ofender, na carne o embebe:
De ênea cúspide o herói na destra espádua
O atravessa; ei-lo grunhe e tomba e morre.345
Expertos a ferida

ao bravo pensam,
Vedam-lhe por encantos o atro sangue;
Curam-no em casa, e dele satisfeitos,
Ledo com riscos dons á patria o mandam.
Laertes e Antícléia, jubilosos,350
Da cicatriz a causa e tudo inquirem;
No Parnaso elle conta que o mordera,
Junto a seus tios, javali terrível.

Palpando, a cicatriz conhece a velha,
Nem pode o pé suster; cai dentro a perna,355
E a bacia retine e se derrama.
Dor a assalta e prazer; nos olhos água,
Presa ás fauces a voz, lhe afaga o mento,
E balbucia enfim: «Tu és, meu filho,
És Ulysses; depois que te hei palpado,360
Ora por meu senhor te reconheço.»

E olhou para Penélope, o dileto
Marido a lhe indicar; mas, por Minerva
Distraída, a senhora o não percebe.
Da destra elle sustendo-lhe a garganta,365
A si da esquerda a puxa: «Ama, a teus peitos
Amamentado, queres tu perder-me?
Volto ao vigésimo ano, após mil transes;
Mas, já que um nume to mostrou, silêncio,
A ninguém me delates. No imo o estampes:370
Se me der Jove debelar soberbos,
Não pouparei culpada a nutriz mesma,
Furioso a todas que o palacio ymphamem.»

«Filho, acode Euricléia, que proferes
Do encerro desses dentes? Inflexível375
Tu bem sabes que sou, qual pedra ou ferro.
Toma sentido: a permittir-te Jove
Soberbos debelar, as que te mancham
A casa apontarei.» — De pronto Ulysses:
«Ama, nem é mister, nem te isso cabe;380
Toca-me descobri-las e julgá-las.
Guarda o segredo, e o mais aos deuses fique.»

Sendo o primeiro banho extravasado,
Sai pela sala a velha em busca de outro,
E o lava e unge; o herói senta-se ao fogo385

Se aquece e cobre a cicatriz com panos.

Ata a rainha a prática: «Inda um pouco,
Hospede meu, que a hora se apropinqua
Do meigo sono, alívio dos cuidados,
Menos dos que um demonio me pródiga.390
Sequer de dia em choro desabafo,
Inspecionando as servas; mas de noite,
Ao reinar o sossego, eu só no leito
Sou de pungentes mágoas salteada.
A Pandareida verde Filomela,395
Na doce quadra amena, entre a folhagem
Flébeis queixumes sonorosa trina
Pelo dela e de Zeto amado filho
Itilo, a quem matou por erro ymphando:
Assim lamento, a revolver incerta400
Se ao pé do meu conserve, respeitosa
Ao toro conjugal e á voz do povo,
Servas, paço e riqueza; ou, bem dotada,
Siga o melhor de assíduos pretendentes.
Enquanto o meu Telemacho era débil,405
Não quis largar a marital vivenda;
Mas, púbere hoje, me insta que lha deixe,
Contra os vorazes procos irritado.

«Explica-me ora um sonho. Gansos vinte
Folgo de ver comendo os grãos no pátio;410
Porém de bico adunco montês águia
Sonhei que, tendo lhes quebrado os colos,
Amontoado no terreiro os mortos,
Pelo ar divino alou-se; e eu grito e choro,
E emadeixadas Gregas me circundam415
Na minha dor, ao tempo que, voltando,
A águia fala da grimpa em voz humana:
— Ânimo, ó filha do pujante Icário!
Não é sonho, é visão realizavel:
Gansos os procos são; eu, antes águia,420
Sou teu marido, e castigal-os venho.
Nisto, acordo, olho em torno, e como é de uso,
Vejo os gansos na praia a comer trigo.»

Pausado o herói: «Interpretar o sonho
De outro modo que Ulysses me é defeso:425
Iminente é

dos príncipes a perda;
Nenhum tem de esquivar-se á morte escura.»

Ela acrescenta: «Os sonhos são difíceis;
Muitos, hospede, nunca se efetuam.
Têm eles dous portões, ebúrneo e córneo:430
Os do ebúrneo, falazes, mentem sempre;
Nunca os do córneo falham. Que o meu, deste
Vindo, a mim e a Telemacho aproveite,
Não me lisonjo. Agora sê-me atento.
O albor nefasto aponta em que dos paços435
Me apartarei de Ulysses, e um certame
Vou propor. Inda em casa há meu marido
Secures doze, que erigia em hastes,
E por seus olhos doze em direitura
De longe a frecha rápida enfiava:440
Seguirei quem mais fácil o arco estenda
E as secures traspasse, abandonando
Ah! tão saudosa e farta e bela estância,
Da qual me lembrarei té nos meus sonhos.»

E Ulysses: «Do Laércio augusta esposa,445
Não retardes a prova. Hás de o consorte
Aqui ter, antes que eles o arco verguem
E, tesa a corda, os ferros atravessem.»

Inda Penélope: «Hospede, a quereres
Junto a mim conversar, de ouvir-te o gosto450
Me estancaria o sono; mas não devem
Os mortaes velar sempre, e na alma terra
Lei sobre tudo os numes impuseram.
Subo a deitar-me enfim no amargo leito
Que de contínuas lágrimas ensopo,455
Dês que Ulysses partiu para essa Tróia
De execranda memória. Tu repousa
A teu prazer, no solho ou numa cama
Que se te aprestará»: Disse, e montando
Não só, com duas fâmulas, na excelsa460
Maravilhosa câmara pranteia
Seu caro esposo, até que amigo sono
Lhe infunde pelas pálpebras Minerva.

 

NOTAS AO LIVRO XIX

 

94-98 — Não me atrevo a suprimir esta passagem, que vem nas diferentes edições, não obstante pensar com Rochefort, que há interpolação. Com efeito, falando o falso mendigo só da glória da rainha, parece-me inconveniente que ela de mão fale da sua própria formosura. Estes versos vêm mais a propósito no livro antecedente, como diz o mesmo Rochefort.

134 — Homero dá sempre a Creta cem cidades, menos aqui, onde só lhe dá noventa. Os Críticos dizem que o redondo número de cem é para encarecer; outros cuidam que, tendo sido cem, Idomeneu destruiu dez numa sedição.

166 — A Clavis Homerica de muitos seguida, acha ótima a comparação com o ferro ou com o corno por causa da sua natural secura; mas Rochefort, sempre fiel ao seu sistema, achando corno matéria indigna de uma epopéia, o substituiu por marfim.

309-312 — O nome Ulysses ou Odusseus vem do verbo odussó, irar-se. Querem muitos que a história da ferida, a qual vai seguindo, seja uma interpolação. Pode ser que haja acrescentamentos; porém Homero, em ambos os seus poemas, não perde ocasião de contar-nos sucessos ainda mais longos, e estes, interessantes como pertencentes ao seu herói, é provavel que os não quisesse omitir.

439 — Olho chama-se o buraco por onde se introduz o cabo do machado e de outros instrumentos.