LIVRO XVII

 

Calça Telemacho, ao raiar da aurora,
Belas sandálias, forte lança adapta:
«Irmão, disse o pastor, corro açodado;
Sem que me veja minha mãe, duvido
Que ela suspenda o lagrimoso luto.5
Nosso hospede infeliz, eu to prescrevo,
Guia á cidade; ali seu pão mendigue,
Nem faltará quem dê: com tantas penas,
É-me impossível sustentar a todos.
Não se agrave, é pior; praz-me a franqueza.»10

E ele: «Nem quero me deter no campo;
Melhor, amigo, esmola-se nas ruas.
De útil ser aos currais não sou na idade,
Nem de curvar-me em tudo á voz de um chefe.
Anda; irei com teu servo, assim que ao fogo15
Me aqueça e alteie o Sol: com tais vestidos,
Longa a via se diz, o orvalho temo.»

Do Laércio o querido veloz parte,
Semeando na mente o mal dos procos.
Chegado, a uma coluna encosta a lança20
Entra o portal marmóreo: é visto logo
Da ama Euricléia, que em dedáleos tronos
As peles estendia, e vem chorando;
Beijam-lhe em torno as mais a testa e os ombros.
Sai, de Artêmide igual e da áurea Vênus,25

Da câmara Penélope, a seu filho
Consigo estreita, o rosto e pulcros olhos
Terna lhe oscula, e suspirando geme:
«Eis-te, meu doce lume! não mais ver-te
Cria, dês que a saber do pai noticias,30
Oculto e a meu pesar, te foste a Pilos.
Conta-me o que passaste.» — «Ó mãe, responde,
Livre eu do risco, o pranto não me excites.
Lava e de limpas vestes cinge o corpo;
Com tuas servas monta, aos numes vota,35
Vingue-me Jove, inteiras hecatombes.
Á praça irei chamar um forasteiro
Que também embarcou-se, e adiante veio
Com meus divos consocios; no ausentar-me,
A Pireu confiei sua hospedagem.»40

Vozes tais sem efeito não voaram:
A mãe lava-se e veste, aos numes vota,
Se o vingar Jove, inteiras hecatombes.
Atrás com dous alãos e em punho a lança
Graça divina a lhe infundir Minerva,45
No garbo o admira o povo; em roda os procos,
Traição n’alma incubando, o lisonjeiam.
Ele se afasta, e ao pé de amigos velhos
De Ulysses vai sentar-se, de Haliterses,
E de Antifo e Mentor, que o interrogam.50
O lanceiro Pireu pela cidade
O hospede guia ao foro, e a poucos passos
A Telemacho diz, que os topa e encara:
«De minha casa aqueles dons, amigo,
Manda buscar.» — Telemacho responde:55
«O que será, Pireu, nós ignoramos.
Se matam-me em segredo e o meu partilham,
Goza esses dons, não eles; se triunfo,
Então ledo a mim ledo os restituas.»

Do hospede miserando aqui se apossa,60
Condu-lo ao seu magnífico aposento;
E, em poltronas e escanos posto o fato,
Banham-se em lisas tinas; das criadas
Sendo ungidos e envoltos em felpudas
Moles capas e túnicas macias,65

Recostam-se em camilhas. Qual das servas
Água lhes verte ás mãos, qual mesa limpa
Desdobra; a despenseira atenciosa
Traz com pão reservadas iguarias.
Senta-se a mãe junto ao pilar defronte,70
Um volve tênue purpurino fuso.
Refeitos já, Penélope queixou-se:
«Ao toro, filho, subirei viúva,
Quem lágrimas ensopo desde a empresa
Letal, e antes que intrusos nô-lo empeçam,75
De teu pai as noticias não me fias!»
E ele: «A verdade, minha mãe, te exponho.
A Pilos navegamos; recebeu-me
O maioral Gerênio, como a filho
De fresco vindo ao lar pós longos anos,80
E houve-se amiga a sua ilustre prole.
De Ulysses nada ouviu; mas num seu carro
A Menelau me fui, com quem vi junta
Helena, a causa de fatais horrores.
De ir á divina Esparta o régio Atrida85
Perguntou-me a razão: contei-lhe tudo.
Indignado o valente: «Hui! vis imbeles
De um guerreiro completo ao leito aspiram!
Se de mama os cervatos mete em pouso
De um leão cerva incauta, e ao vale ou bosque90
Vai pascer, no covil os traga a fera:
É como os tragará na volta Ulysses.
Permiti que se mostre aos pretendentes,
Ó Jove, Palas, Febo, como em Lesbos,
Quando ao provocador Filomelides95
Prostrou na luta, com prazer dos Gregos:
A boda em breve acerba lhes seria.
Dir-te-ei sem rebuço o que me imploras:
Descobriu-me o veraz marinho velho
Que em pranto o vira, e que o retém Calypso;100
Que dessa ilha, sem baixel nem vogas,
Romper o dorso equóreo não podia. —
Assim de Menelau sendo informado,
Cá regressando, com favônias auras
Conduziram-me a Ithaca os Supremos.»105

Comovida Penélope,

exclamou-lhe
Teoclímeno vate: «Ó veneranda
Mulher de Ulysses, muito ignora o filho;
A profecia escuta: a Jove atesto,
A mesa hospitaleira, a que me asila110
Casa do forte herói, que já na patria,
Ou quedo ou serpeando, ora o castigo
Traça do mal. Telemacho os agouros
Que observei no baixel, presente os soube.»
A quem Penélope: «Oxalá se cumpram!115
De mim terás penhores de amizade,
Que hão de, hospede, aclamar-te venturoso.»

Ao pórtico, entretanto, os pretendentes,
N’área onde a contumélia exercitavam,
A disco e a dardo se entretêm jogando.120
Já do pastio as greis se recolhiam,
E admitido aos festins, Médon graceja:
«De jogos basta, ó jovens, ao banquete;
A seu tempo um jantar é bem cabido.»
Entram; pousando os mantos em poltronas,125
Para o convívio immolam gordos porcos,
Ovelhas, cabras e armental novilha.

Ir do campo á cidade se dispunham
Ulysses e o pastor, que diz primeiro:
«Por guarda, hospede, aqui te aceitaria;130
Mas, prescreve-o Telemacho, partamos,
Se é teu desejo: de um senhor me custam
Repreensões e ameaças. A caminho;
O dia aumenta, e esfriará de tarde.»

Presto Ulysses: «Recordo-me e compreendo135
Vamos, tu me dirige; um bordão corta
Em que me apoie na escabrosa rota.»
E o remendado alforje por seus loros
Ás costas prende. O maioral porqueiro,
Fornecido o bordão, fiando a casa140
Aos bons servos e aos cães, vai conduzindo
E sustendo seu rei, que parecia
Decrépito mendigo esfarrapado.

Já, por áspera via, á fonte chegam
De alvo cristal, de que a cidade bebe,145

Construída por Ítaco, primeiro,
Nérito e Politor, bosque o circula
De uns aquáticos choupos; frio o arroio
Da penha rui; tem ara as nymphas no alto,
Em que todo o viandante sacrifica.150
De Dólio o filho os encontrou, Melanto
Que ia, com dous zagais, levar aos procos
Do cabrum gado a flor. Minaz, ao vê-los,
Ao Laércio pungiu com seus doestos:
«Um mau leva outro mau; deus há que sempre155
Une os iguais. Aonde, ó vil porqueiro,
Guias esse glutão, das mesas peste,
Que aos portaes gaste os ombros, não caldeiras,
Armas não, sim migalhas pedinchando?
Venha dos meus currais para vigia,160
Expurgue o lixo, traga aos chibos folhas;
Beberá soro e criará panturra.
Mas, vadio chapado e mestre em vicios,
Trêmulo a escorregar por entre o povo,
Quer encher o bandulho insaciavel.165
Se elle aos paços reais, eu to asseguro,
Do grande Ulysses for, de mãos nervosas
Á cabeça, voando-lhe escabelos,
Tem de a partir, moê-lo ou derreal-o.»

Na perna eis louco um pontapé lhe senta:170
Firme Ulysses da trilha nem se arreda;
Cogita se a cajado o estire e acabe,
Ou se o erga e no chão lhe esmague a testa;
Mas coíbe-se e atura. Eumeu rebenta,
Alça as palmas a orar: «De Jove ó Náiades,175
Se de anhos e cabritos coxas pingues
Ulysses te queimou, torne, eu vos rogo,
E um deus nô-lo encaminhe! A ti, cabreiro,
Dissipavam-se os fumos com que arruas,
A zagais incumbindo o pobre gado.»180

E Melanto: «Hui! que rosna o cão matreiro?
Olha, que, em negra nau socado, ao longe
Não vão por mantimentos escambar-te.
Assim, de Apolo ás frechas ou dos procos
Hoje aos golpes, Telemacho sucumba,185

Como é perdido para sempre Ulysses.»

Então ambos deixou, que lentos andam,
E em casa do senhor sem mora entrado,
Põe-se em face de Eurimaco, de todos
O seu maior amigo; os moços carne,190
Pão lhe abastece a ecônoma. Os dous chegam,
Ouvem cantar ao som da lira Fêmio;
Toma Ulysses a destra e ao pastor fala:
«O palacio real este é suponho;
Entre os mais facilmente se distingue,195
Por seus andares, atrios, muro e ameias,
E bífores portões inexpugnaveis:
Que se está num banquete o nidor mostra;
Mostra a lira, ás funções divino adorno.»

Tu respondeste, Eumeu: «Não lerdo, amigo,200
Em tudo acertas. Consultemos: queres
Primeiro oferecer-te, eu cá ficando;
Ou ficar, entrando eu? Resolve, e presto;
Se fora alguém te vir, talvez te espanque
E te repulse.» — E o paciente Ulysses:205
«Percebo o que ponderas. Vai, que é tempo
Suportar sei feridas e pancadas:
Afeito á guerra e ás ondas e a reveses,
Por estes passarei. Mas, não to escondo,
Conselheira do mal urge-me a fome,210
A fome, que entre vagas furibundas,
Armadas leva contra alheias terras.»

Aqui, deitado um cão, de orelhas tesas
A cabeça levanta, Argos tem nome:
Hoje langue, e o nutria o próprio Ulysses,215
Antes que se embarcasse. Costumava
Lebres caçar e corças e veados;
Ora de bois e mus no esterco o deixam,
Que ás portas se amontoa, enquanto os servos
Para estrume da lavra o não carregam.220
Jazia ali de carrapatos cheio,
E meigo, assim que a seu senhor fareja,
As orelhas bulindo, agita o rabo;
Mas não pôde acercar-se. O bom Laércio
Uma lágrima enxuga ás escondidas,225

E questiona o pastor: «Um cão tão belo
Pasmo que esteja, Eumeu, nesse monturo;
Talvez, com tanto garbo, ágil não fosse,
E á mesa por formoso é que o tratavam.»

«É do herói, dis Eumeu, roubado á patria!230
Pasmaras sim, ligeiro e forte e guapo
Se fosse qual no tempo era de Ulysses:
O animal dele visto, ou rastejado,
Não lhe escapava em brenha ou fundo vale.
Morto meu amo, enfermo e débil Argos,235
Negligentes mulheres nunca o pensam:
Do senhor quando a voz não soa, escravos
Furtam-se a obrigações. O Altitonante
Metade anula da virtude ao homem
Que a triste luz da servidão respira.»240

Argos nesse momento, após vinte anos
Seu dono a contemplar, morreu de gosto.
Eumeu vai-se direito aos feros procos;
No atravessar, Telemacho lhe acena;
Ele, em circuito olhando, um banco puxa,245
O do trinchante cozinheiro, e em face
Do príncipe repousa. O arauto á mesa
Traz-lhe pão do açafate e o seu conduto.

Curvo ao bastão se arrima e surde Ulysses,
Como um rafado esquálido mendigo;250
Dentro ao fraxíneo limiar descansa
No umbral cuprésseo encosta-se, que destro
Esquadrara e polira um carpinteiro.
Sólido um pão Telemacho tomando,
E nas mãos quanta carne lhe cabia:255
«Do hospede, Eumeu, lhe disse, o quinhão leves;
Ele esmole depois da sala em torno:
A vergonha a pedintes é nociva.»

Do hospede Eumeu de pronto se aproxima:
«Este quinhão Telemacho te manda;260
Quer pelos circunstantes que mendigues:
A vergonha a pedintes é nociva.»
Sem demora o prudente: «O rei Satúrnio
A Telemacho adite, e lhe conceda
O que tem no desejo!» —Aceita Ulysses265
A mãos ambas

os dons, que aos pés coloca
Sobre o indecente alforje; enquanto come,
Fêmio divino á cítara cantava.

Cessa a música, e os procos tumultuam.
Ao Laércio apropinqua-se Minerva,270
A exortal-o a pedir aos pretendentes,
A conhecer qual duro ou justo fosse,
Bem que a nenhum exima do castigo.
A mão pela direita ia estendendo,
Como vero mendigo; os mais piedosos275
Dão-lhe, quem era atônitos indagam.
Melanto os interrompe: «Ó da rainha
Dignos amantes, eu não sei quem seja,
Bem que visse o porqueiro a dirigi-lo.»

Minaz Antino contra Eumeu dispara:280
«Aqui, pastor famoso, o endereçaste?
Os desmancha-prazeres já não bastam
Que esta cidade infestam? poucos julgas
E á mesa de teu amo esse outro queres?»

Tu retorquiste, Eumeu: «Bom és, Antino,285
E não discorres bem. Que homem convida
Vindiço algum sem préstimo e sem arte?
Um médico, um profeta, um marceneiro,
Um deleitoso músico divino,
Estes granjeia e atrai a imensa terra;290
Mas ninguém chama um comedor inútil.
Aos servos és de Ulysses o mais duro,
Mormente a mim: que importa? eu nada temo,
Enquanto aqui Penélope sisuda
E o divinal Telemacho viverem.»295

Telemacho ajuntou: «Cala, és sobejo
Em responder. Com chascos sempre irrita,
Provocando a imital-o os companheiros.»
E então virou-se: «Antino, como o filho
Me governas, meu hospede enxotando:300
Um nume o não permitta. A mal não tenho,
Amo á larga lhe dês; perde o receio
De minha mãe, dos servos desta casa.
Mas um tal pensamento nem te ocorre:
Comer sem repartir é teu cuidado.»305


Replicou ele: «Altíloquo Telemacho,
Soberbo destemperas? Dessem-lhe outros
Como darei, que ao menos por três luas
Daqui se iria.» Então levanta e mostra
O escabelo que estava aos pés luzidos.310

De carne e pães o alforge os mais lhe enchiam.
Ei-io á soleira a desfrutar se volta
As esmolas dos Gregos; junto pára
De Antino e clama: «Tem piedade, amigo;
Não te creio o pior, no aspecto régio315
Vê-se que és maioral: dá mais que os outros,
E hei de louvar-te pela imensa terra.
Já ditoso habitei palacio altivo,
E acolhi peregrinos e indigentes;
Servos em cópia tive, e a pompa toda320
Com que os mortaes se inculcam venturosos.
Quis Júpiter porém, para meu dano,
Que ao rio Egito eu fosse com piratas:
Mantenho a bordo a gente, e as naus em seco,
Despacho exploradores. Estes néscios,325
A impulsos do apetite, agros talando,
Matam, mulheres e crianças preiam;
Mas, ao rumor, de madrugada acorrem
Éqüites e peões erifulgentes
A juncar a campina, e o Fluminante330
Medo incutindo aos meus, nenhum resiste:
Cercados sendo, a bronze agudo expiram,
E é reduzido o resto a cativeiro.
Ao rei Dmétor Iáside fui dado,
Que transportou-me a Chipre onde imperava:335
Dali vim cá, passando horríveis transes.»

Torvo Antino: «Que peste um deus nos trouxe!
Desta mesa te aparta, ao meio tem-te:
Olha outro Egito e Chipre não te amarguem.
Descarado mendigo, a sala corres,340
E cada qual, nadando na abundância,
Do alheio ás cegas e sem dó largueia.»

E afastando-se Ulysses: «Hui! não quadra
Com teu desplante o siso: á tua porta
Mesmo sal a um pedinte recusaras,345

Tu que do alheio na abundância nadas,
E um pedaço de pão sem dó me negas.»

De cólera abafado, o encara Antino:
«Já que insultos proferes, fico-te ora
Que não saias daqui sem vitupério.»350
E despede o escabelo, que lhe apanha
Do ombro direito a ponta: firme rocha,
Do tiro zomba, tácito a cabeça
Meneia e urde vingar-se. Ao portal volve
Com seu provido alforje: «Amantes, clama,355
Da grã rainha, est’alma vos descubro:
Mágoa e opróbio não é feridos sermos
Em defensa dos bens e bois e ovelhas;
Mas Antino feriu-me, porque a fome,
Causa de infindos males, me atormenta.360
Se o pobre é caro aos numes e ás Erínies,
Antes do seu noivado a morte o sorva!»

E o filho de Eupiteu: «Come tranqüilo,
Ou mosca-te, importuno, antes que os servos
Por mão ou pé rojando-te, insolente,365
Retalhem-te esse corpo.» — Os mais se indignam,
E um diz: «Por que esse mísero maltratas?
Nume será talvez: que em trajo os numes
De peregrinos as cidades vagam,
Mil formas revestindo e inspecionando370
A dos homens justiça ou petulância.»

Ele surdo mofafa; mas seu golpe
A Telemacho no íntimo doía,
Que mudo, a ruminar, também meneia,
Sem verter uma lágrima, a cabeça.375
Ouviu dentro Penélope o sucesso,
E imprecou: «Tal o fira o arqueiro Apolo!»
Mas a ecônoma Eurinoma: «Valessem
Pragas nossas, que um só do rubro eôo
Não reveria o coche.» E inda a senhora:380
«Maus, ama, todos são, maquinam todos;
Porém Antino iguala a nera Parca.
Da penuria impelido, um miseravel
Pedia esmola: os príncipes lha davam;
Ele o escabelo á espádua arremessou-lhe.»385


Ceava o herói; na câmara entre as servas
Desabafa Penélope, e chamado,
Ao bom pastor ordena: «Eumeu divino,
Aqui venha teu hospede informar-me,
Pois ter parece errado pelo mundo,390
Se viu, se há novas do sofrido Ulysses.»

A quem Eumeu: «Deixassem-te, ó rainha,
Os Aquivos silentes escutal-o,
Para no imo folgares! De um navio
Em meu teto abrigou-se, e por três noites395
E três dias narrou seus infortúnios,
Se todos memorar. Quando um poeta
Canta inspirado e cessa o doce canto,
Que o repita anelamos: tal na choça
Me aconteceu. Inculca-se de Ulysses,400
Paterno amigo, da Minóia Creta;
Que veio cá ludíbrio da fortuna;
Que dos Tesprotes soube que opulento
Já teu marido á patria se encaminha.»

«Pois tudo me refira, insta a senhora.405
Eles ao pórtico e na sala jogam;
Porque poupam seus víveres, a servos
Só nutrindo, e em banquetes nesta casa
Diariamente á grande nos consomem
Cabras e ovelhas, bois e ardente vinho.410
Falta varão que ensine esses intrusos;
Ulysses nos ressurja, e incontinenti
Punirá com seu filho audácia tanta.»

Nisto, espirra Telemacho, estrondando
Em redor; a mãe solta uma risada:415
«Vai pelo hospede, Eumeu. Sentiste agora
O espirro de meu filho ás vozes minhas?
É que ymphalível morte os cerca todos.
Se o teu mendigo, na memória o imprimas
Falar verdade, espere bons vestidos.»420

Apressou-se o pastor: «Hospede padre,
Quer-te a mãe de Telemacho sisuda
Inquirir do marido, angustiada.
Sê franco, e a roupa ganharás precisa,
Capa e túnica: o pão, que mate a fome,425

A quem quer pedirás de porta em porta.»

«Nua a verdade, Eumeu, responde Ulysses ,
Vou revelar á comedida Icária:
Dele sei tudo, e padecemos juntos.
Receio o ruim tropel dos pretendentes,430
Cuja violencia o férreo céo penetra:
Um com cego furor, pouco há, vibrou-me
Golpe que me doeu; nenhum dos outros,
Nem Telemacho, obstou. Portanto, amoestes
A conter-se a rainha até Sol posto;435
Ao depois, do marido me interrogue,
Sentada ao lar: primeiro eu supliquei-te;
Rotas as vestes, bem conheces, tenho.»

Volta o pastor, e ao limiar Penélope:
«Que é dele, Eumeu? que pensa? há de alguém medo,440
Ou da casa vergonha? Ai do pedinte
Mui fácil em vexar-se!» — E Eumeu: «Rainha,
Falou como o fizera o de mais tino,
Os prepotentes príncipes receia;
Roga-te paciencia até Sol posto.445
Conversardes a sós é preferível.»
Penélope acudiu: «Quem quer que seja,
Lerdo não é. Convenho tais perfídias
Nunca os maiores monstros intentaram.»

O divino pastor, isto acabado,450
Aos demais se reúne, e a fronte inclina
Em voz baixa a Telemacho advertindo:
«Ó dileto a cuidar me vou dos porcos,
Dos teus bens e dos meus. Tem cobro em tudo,
E vigia-te e guarda: o mal projetam455
Ímpios, a quem primeiro o Céo castigue!»

«Sim, pai, torna o mancebo acautelado.
Anda, merenda, a noite não te apanhe;
De manhã traze as reses do costume.
O mais fica a meu cargo e dos Supremos.»460

Senta-se Eumeu de novo, e bebe e come,
Do recinto saindo, a casa deixa
Plena de comensais, que, ao vir a tarde,
A dançar e a cantar se divertiam.

 

NOTAS AO LIVRO XVII

 

22-67 — Nas obras de Homero nem sempre trono é a cadeira do rei; é as mais das vezes uma poltrona mais ou menos ornada. — Fala aqui, bem como em inumeraveis lugares, de bacia e jarro para se lavarem as mãos: a minha versão é mais resumida, não só para poupar ao leitor enfadonhas repetições, mas porque não falta quem afirme que esta passagem é uma interpolação, e alguns tradutores a suprimiram; ao que não me atrevi, posto que a este respeito ache a crítica não sem fundamento.

124 — Confessa Rochefort que deipnon significa o jantar, ou a comida principal do dia, mas o traduz por festim; porque, diz ele, si au lieu de festin, il y avait diner, qui est le terme propre, le vers deviendrait du genre comique, et ne serait plus du style de l’originel, qui n’a rien de bas ni de plaisant (!) Para mim, jantar não é termo baixo, quando bem empregado; e o lugar é jocoso, pois o arauto Médon, admitido á mesa dos procos, tinha com eles bastante confiança para gracejar e dizer que um bom jantar vinha muito a propósito.

155-170 — Tudo isto é evidentemente cômico; e muito louvo a diferença de estilo nas cenas várias deste poema, cujo entrecho e andamento não é menos admiravel que o da Ilíada. Esforçaram-se tradutores por nobilitar á sua maneira esta passagem, crendo fazer a Homero um serviço; pois eles têm para si que tudo numa epopéia deve ser sublime, ou elevado: o cego de Esmirna pensava de outro modo.

180 — Creio, com M. Giguet e outros, que não há neste lugar sentença, ou epifonema: a palavra nomêes decide a questão.

218-240 — Ainda hoje, na Suíça por exemplo, ajunta-se o estrume encostado ás casas de campo; e quem pensa que dentro são elas imundas, muito se engana, porque ali a maior parte são limpas e asseadas. — No verso 237-238, não se trata de súditos e de reis, como julgam não poucos, sim de senhores e escravos. É sabido que estes nada fazem quando não são instigados: natural defeito a quem trabalha só para outros, sabendo que, por mais que faça, ficará sempre no viltamento; conta como um ganho o furtar-se ao trabalho.

246-257 — Os que amodernam Homero, distinguem o copeiro do cozinheiro; mas elle nunca fala de copeiro: é sempre uma mulher quem trata ou da copa ou da despensa, e o cozinheiro mesmo estava na sala e servia de trinchante. Ainda hoje, nas Índias Orientais, o cozinheiro é recebido com certas honras, e aparece no fim dos banquetes para colher os aplausos dos convidados. — Os dicionários só trazem esmolar por dar esmolas, posto que também signifique pedir esmolas; o que se vê do seguinte verso dos Mártires de Filinto: «Eles que aos pés dos grandes o ouro esmolam.»

345 — No Maranhão, na minha meninice ainda se dizia que a ninguém se deve negar água, sal e fogo; mas por fogo não entendiam o combustível, porém, sómente o lume necessário para acender a candeia do vizinho, pois nesse tempo não era geral o uso das mechas. Isto nos veio de Portugal, segundo se colhe de Tolentino e de Ferreira na sua comédia do Cioso.

414 — O espirrar, entre os antigos, era um sinal próspero; ao depois, foi de mau agouro. Não quis Rochefort traduzir esta passagem, e sacrificou o dever de representar uma preocupação de que fala o autor, á suposta nobreza de estilo, que tanto o amofinava.