Ontem, Nise, a prima noite
vi sobre o vosso telhado
assentados em cabido
cinco, ou seis formosos gatos.
Estava a noite mui clara
fazia um luar galhardo,
e porque tudo vos diga,
estava eu em vós cuidando
O Presidente, ou Deão
na Cumeeira sentado
era um gato macilento
barbirruço, e carichato.
Os demais em boa ordem
pela cumeeira abaixo
lavandeiros de si mesmos
lavavam punhos, e rabos.
Tão profundo era o silêncio,
que não se ouvia um miau,
e o Deão o interrompeu
dando um mio acatarrado.
Tossiu, tossiu, e não pôde
articular um miau,
que de puro penitente
traz sempre o peito cerrado.
Eis que um gatinho reinol
mui estítico, e mui magro
relambido de feições,
e de tono afalsetado:
quis por primeiro falar,
e falara em todo o caso,
se outro gato casquiduro
lhe não saíra aos embargos.
Eu sou gato de um meirinho
(disse) que pelos telhados
vim fugindo a todo o trote
do poder de um saibam-quantos.
Com que venho a concluir,
que servindo a tais dois amos,
hei de falar por primeiro,
porque sou gato dos gatos.
Fale, disse o Presidente,
pois lhe toca pro anciano;
e ele tomando-lhe a vênia,
foi o seu conto contando.
Em casa deste Escrivão
me criei com tal regalo,
que os demais gatos da casa
eram comigo uns bichanos.
Mas cresci, e aborreci,
porque se cumpra o adágio,
que o oficial do mesmo ofício
é inimigo declaraclo.
Foi me tomando tal ódio,
porque foi vendo, e notando,
que era capaz eu de dar-lhe
até no ofício um gataço
Topou me em uns entreforros,
e tirando-me porraços,
eu lhe miava os narizes,
quando ele me enchia os quartos
Fugi, como tenho dito,
e me acolhi ao sagrado
de uma vara de justiça,
que é valhacouto de gatos.
Sai meu amo aos prendimentos,
e eu fico em casa encerrado
por caçador de balcões,
onde jejuo o trespasso.
Porque em casa de um meirinho
nas suas arcas, e armários
é quaresma toda a vida,
e têmporas todo o ano.
Não posso comer ratinhos,
porque cuido, e não me engano
que de meu amo são todos
ou parentes, ou paisanos.
Porque os ratinhos do Douro
são grandíssimos velhacos:
em Portugal são ratinhos,
e cá no Brasil são gatos.
Eu sou gato virtuoso.
que a puro jejum sou magro,
não como, por não ter quê,
não furto, por não ter quando
E como sobra isto hoje,
para me terem por Santo,
venho pedir que me ponham
no Calendário dos gatos.
Acabada esta parlenda
mui ético do espinhaço
sobre a muleta das pernas
se levantou outro gato:
Dizendo: há anos, que sirvo
na casa de um Boticário,
que a récipe de pancadas
me tem os bofes purgado.
Queixa-se, que lhe comi
um boião de ungüento branco,
e bebi-lhe a mesma noite
um canjirão de ruibarbo.
Diz bem, porque assim passou;
mas eu fiquei tão passado
como de tal solutivo
dirá qualquer mata-sanos.
Fiquei de humores exangue,
tão escorrido, e exausto,
que não sou gato de humor,
porque nem bom, nem mau gasto.
Suplico ao senhor Cabido,
que de um homem tão malvado
me vingue com ter saúde,
por não gastar os emplastos.
Apenas este acabou,
quando se ergueu outro gato,
e entoando o jube domine
disse humilde, e mesurado:
Meu amo é um bom Alfaiate
gerado sobre um telhado
na maior força do inverno,
alcoviteiro dos gatos.
É pardo rajado em preto,
ou preto embutido em pardo,
malhado, ou já malhadiço
do tempo, em que fora escravo.
Tão caçador das ourelas,
tão meador de retalhos,
que com onças de retrós
brinca qual gato com ratos.
E porque eu com dois fios
joguei o sapateado,
houve de haver por tão pouco
uma de todos os diabos.
Estrugiu-me a puros gritos,
e plantou-me no pedrado;
ele pelo cabo é cão,
e eu fiquei gato por cabo.
Que de verdades dissera,
a estar menos indignado!
mas para falar de um cão
é mui suspeitoso um gato.
Pelo menos quando eu corto,
nunca dobro a tela em quatro,
por dar um colete ao demo,
e outro a mim pelo trabalho.
Nem menos peço dinheiro
para retrós e o não gasto,
porque o gavetão do cisco
me dá o retrós necessário.
Não cirzo côvado, e meio
por dar um colete ao diabo,
nem vendo de tela fina
retalhinhos de três palmos.
Tudo enfim se há de saber
no universal cadafalso,
que no tribunal de Deus
não se estilam secretários
Requeiro a vossas mercês;
que me ponham com outro amo,
porque com este hei de estar
sempre como cão com gato.
À vista deste Alfaiate
disse o Cabido espantado.
somos nós gatos mirins,
que inda agora engatinhamos.
O gato tome outro amo
em qualquer convento honrado.
seja Fundador Barbônio,
ou Sacristão-mor do Carmo.
A propósito do que
se foi erguendo outro gato.
e amortalhado de mãos
armou os lombos em arco:
E dizendo o jube domine
se pôs em terra prostrado:
e eu disse logo: me matem,
se não é dos Franciscanos.
Sou gato de refeitório,
disse, há três ou quatro anos,
pajem do refeitoreiro,
do despenseiro criado.
Fui Custódio da cozinha,
e dei mal conta do cargo,
porque sisando rações,
fui guardião dos traçalhos.
Eu era por outro tempo
mui gordo, e mui anafado,
porque os da esmola então vinham
despejar-me em casa os sacos.
Mas hoje, que já da rua
vêm cos bolsos despejados,
veio a ser o refeitório
uma Tebaida de gatos.
Não pode o pão das esmolas
manter tantos Remendados,
que em lhe manter as amigas
(sendo infinitas) faz arto.
Dei com isto entisicar-me,
e esburgar-me do espinhaço,
não tanto já de faminto,
quanto de escandalizado.
Não posso viver entre homens,
que se remendam seus panos,
é mais por nos enganar,
que porque lhes dure o ano.
E hoje, que na casa nova
gastam tantos mil cruzados,
são gatos de maior dura,
pois de pedra, e cal são gatos.
Palavras não eram ditas,
quando zunindo, e silvando
sentiram pelas orelhas
um chuveiro de bastardos.
E logo atrás disso um tiro
de um bacamarte atacado,
que disparou de um quintal
um malfazejo soldado
Descompôs-se a audiência,
e cada qual por seu cabo
pela campanha dos ares
foram de telha em telhado.
E depois que légua e meia
tinha cada qual andado,
parando, olharam atrás
atônitos e assustados.
E vendo-se desunidos,
confusos, desarranchados,
usaram de contra-senha
miau aqui, ali, miau.
Mas depois, que se juntaram,
disse uma gato castelhano,
cada qual a su cabana,
que hoje de boa escapamos,
Chuviscou naquele instante,
e safaram-se de uma salto,
porque sempre da água fria
tem medo o gato escaldado.