A questão palpitante é a reforma do ensino. A ignorancia clamorante da mocidade foi subitamente decretada, e só ha um meio de revogal-a: reformar. A Camara agita-se, os possiveis professores interessam-se, as velhas notabilidades pedagogicas escrevem artigos, escrevem livros, fazem discursos, bradam que é impossivel continuar essa inenarravel miseria.
Outro dia, á noite, encontro um deputado.
— Que ha de novo?
— A reforma da instrução. Venho da casa de um collega, onde estivemos a lêr o esboço do ultimo projecto. E’ severissimo. Desta vez, a coisa vai.
— Então, graças ao céo!
— Mesmo porque é impossivel continuar continuar como está! Nós chegamos a um grau de desmoralização absoluta.
Deixei o deputado convencido de que a instrução do meu paiz chegáraá vergonheira mais completa do globo, e ia pensando na possibilidade de ninguem saber lêr no Brasil, mesmo antes da reforma da orthographia, quando me lembrou ir consultar um velho professor dotado de grande cerebro e de um generoso coração.
Tomei um tilbury, atirei-me pelas ruas maltratadas na dynastia Aguiar, saltei na casa do velho lente, mesmo na occasião em que elle sahia.
— Você...
— Eu mesmo, caro mestre. Venho consultal-o sobre a indecencia da nossa instrução. Eu tenho um temperamento tão fantasista que ainda acredito nas correntes urbanas das opiniões, e estou neste momento prestes a achar a instrução publica atual uma escandalosa immoralidade.
— Pois venha dahi. Eu vou dar um passeio pelo cáes a olhar um pouco o mar, o «grande laboratorio» como diziam devinatoriamente os Aryas ao vêl-o pela primeira vez. Conversaremos. A coisa não é tão feia. E talvez eu o possa afirmar — porque ha quarenta annos ensin meninos...
Gravemente, o velho lente poz-se a andar. Tristemente, acompanhei-o.
Com um leve sorriso, o lente disse:
— Está uma noite linda.
E depois, sem transição, continuou:
— Esta reforma está nas condições de todas as outras realizadas pelo poder temporal da nossa patria desde 1854. Isto é: visa crear cadeiras ou dividir as existentes com o fim de poder empregar meia duzia de filhotes.
— Ha muitos desses nas passadas reformas?
— Não citemos nomes. O governo na sua mensagem, meu caro discipulo, falada desorganização do ensino secundario por elle mesmo administrado, do mau preparo da geração atual. Precisam dizer qualquer coisa de atroz para justificar reformas, justificaveis apenas com a evolução e a progressão do saber. Dahi commeterem a grande falsidade.
— E a grande falsidade?
— E’ a de assegurar que a geração atual nada sabe e passa através de um tunnel de empenhos, absolutamente incapaz. Oh! Deus! que exagero! Acredita você que o empenho seja de hoje e acabe amanha? Não! o empenho sempre existiu, em todas as gerações passam protegidos mais ou menos felizes, realizando cursos scientificos graças apenas á proteção dos maiores.
Sorriu de novo e continuou:
— Para bem julgar da grande falsidade, basta comparar dois grupos: por exemplo, a minha e a sua geração.
— Oh! mestre.
— Eu falo sempre sem lisonja. Em primeiro logar o grupo de protegidos da minha geração era de tal ordem, que um notavel lente, após a aprovação de um delles, na Escola Cental, levantou-se, foi á janella e gritou para a rua: «Afastem-se! Vai sahir um Burro!» Oh! não ria. Assisti na Escola de Medicina á defeza de these de um estudante, hoje notavel cidadão, de que ainda guardo uma resposta. Onde fica a celula biliar? indagava o examinador. — No cerebro! respondeu elle. Esses factos eram communs. Não me esqueço de um exame oral, cujo ponto tinha sido dado vinte quarto horas antes. Era de astronomia e o professor protegia o examinado. — Qual é o seu ponto? — A resolução do triangulo espherico A. B. C. — E se fosse o triangulo D. E. F.? O examinado respondeu: Não era o meu ponto! E foi aprovado, e hoje dá cartas em engenharia e com certeza acha que o ensino d’agora é o cumulo da immoralidade. São sempre esses os que mais gritam contra o mau preparo da atual geração...
Pelo Parlamento, meu amavel discipulo, sempre se aferiu a mentalidade de uma raça. Se hoje o Parlamento tem Heredias e meia duzia de chefes eleitoraes representantes da força da cabala, percorra os annaes antigos. Em 1867 um deputado justificada um projecto no qual entrava o peso da atmosphera. Quando o deputado falou do peso do ar, uma porção de collegas estalou a rir e huve este aparte: — Ora, o ar pesado!! Com a atual nevrose de conferencias futeis, falam muito na sciencia educativa das passadas conferencias da Gloria. Pois eu ouvi, numa dessas conferencias, um senador, ex-ministro dos extrangeiros, ex-presidente da Camara, dizer: «A lua, cuja superficie todos nós conhecemos, em virtude della gyrar em torno do seu eixo...»
Qual a creança de escola publica que não sabe hoje mostrar a lua sempre a mesma face á terra?
Oh! os exemplos, as anedotas não faltam! A sciencia não se difundira, estava entregue a um limitado grupo de homens, de modo que tal ou tal sciencia só era ensinada mal aos rapazes que se destinavam a uma determinada profissão. Assim, cada doutor conhecia apenas os fatos mais geraes de um só departamento do conjunto do saber humano, de modo que a sua completa ignorancia a respeito do mundo e do homem era perfeitamente justificavel. E por isso, os erros que lhe apontei mostravam até esforço de assimilação...
Veja, porém, agora. Os protegidos de hoje são como os do passado. Em maior numero, é verdade, porque o numero dos que estudam hoje é quasi 2.300 vezes maior do que o do meu tempo. No ensino secundario só se faziam exames geraes em S. Paulo, na Bahia, em Pernancubo, nos cursos annexos e aqui. Hoje até em Campos, terra do Dr. Nilo, e em Nectheroy. Mas cumpre dizer que o numero dos protegidos de hoje, incapazes de saber a disciplina cujo exame prestam, é, no fundo, extremamente limitado. E a razão é simples: a sciencia difunde-se, o menino nasce aprendendo e aos oito annos sabe, com um livro de lições de coisas, o que só aos vinte os meus contemporaneos iam saber na Botanica do Bomfim, por exemplo, quando já academicos. A lição de coisas! Um petiz de agora define a cubatura da esphera, conhece os fatos geraes da physica, da chimica, da biologia. Por mais destituido de intelligencia que o possamos imaginar, é impossivel comparal-o nos conhecimentos geraes aos do meu tempo. Ainda ante-hontem ouvi uma creança de nove annos explicar o calor do sol no verão dos paizes do norte do equador. Na minha geração, eram sabios os que estudavam astronomia e só se aprendia esta coisa, hoje abaixo dos almanachs, dos 20 annos em deante. Os professores da atualidade têm uma grande cópia de conhecimentos abstractos. Transmittidos esses conhecimentos á geração de pirralhos de agora, os pirralhos aos 15 annos serão sabios em relação aos sabios da minha geração.
Eu rio. A sua fina ironia pesponta gravemente os argumentos de uma blague a frio, que desconcerta um pouco. O meu ex-lente fica sério.
— Não faço troça, meu amigo. Estou plenamente certo que nenhum dos sabios da minha geração é capaz de contestar o que lhe disse. No grupo dos felizes da proteção da minha época, ha uma grande diferença para melhor em favor da atual geração. Ou os governos e os scientistas que auxiliam os governos nas reorganizações de ensino estão em erro, ou calumniam para arranjar os protegidos formados nas reorganizações elaboradas.
E’ um crime falar da desmoralização da mocidade, meu caro discipulo. O ensino não chegou a essa baixeza. Para me justificar, basta examinar de leve os diferentes departamentos do nosso saber e notar o grande numero de moços cheios de cultura de moralidade. Veja os talentos nas escolas, veja o numero dos que aparecem violentamente, examine os que ocupam logares de responsabilidade dando resultados brilhantissimos, estude o jornalismo, a arte, as sciencias d’agora, comparando com os de trinta annos atrás. E’ a mocidade, a sagrada mocidade sempre incomparavelmente melhor do que nós, a mocidade que nos arranca o facho para lhe dar á chamma vida maior, luz maior, brilho mais intenso...
— Oh! professor...
Estavamos na Avenida Beira-Mar, sombria, deserta, naquelle trecho que foi o Russel. O capim crescia como o desleixo do bluff prefeitural, raros automoveis coruscavam com intermitencia e, sobre o silencio, o céo de inverno estendia o velludos negror da noite palpitante de estrellas. O velho mestre estava commovido. Limpou as lentes, parou um instante, sorriu.
— Ne nous emballons pas... Resumamos. E’ melhor. A reforma é um resultado da evolução. A reforma,, mesmo má, é uma tendencia para melhor. Coimbra e Salamanca morrem por não se reformarem. A reforma, além disso, empregará alguns cavalheiros necessitados. Mas para reformar não é preciso vir dizer que o ensino cahiu e que, agora, a desmoralização chegou ao auge.
E’ mentira, é tolice, é calumnia. Empenhos sempre os houve e haverá; gente idiota querendo ser bacharel e passando, nos cursos, sempre houve e haverá; mas, comparando a minha geração com esta de que fazem parte você e meus filhos, eu não tenho, como esses patetas, esquecimento dos velhos. Antes, pelo contrari. Enche-me o coração um grande orgulho, porque vérifico ter cooperado para a formação de uma geração dez vezes mais forte, mais sabida, mais capaz do que a minha — geração que fará dos meus netos aos quinze annos a maravilha dos sabios avós. E isso é um consolo, menino! Reformemos, reformemos, reformemos quanto fôr possivel aos legisladores. Mas, dando a Cesar o que Cesar póde fazer, respeitemos a verdade e o orgulho da vida, que é a juventude.
Depois, limpou o labio, repôs as lentes e, como de certo Platão fazia nos jardins de Academus, após uma sábia verdade, continuou a andar e disse, com doçura e prazer:
— Está uma noite linda!