Origem das espécies/A selecção natural ou a persistência do mais apto

CAPITULO IV


A selecção natural ou a persistência do mais apto


Que influência tem sobre a variabilidade, esta luta pela existência que acabamos de descrever tão abreviadamente? O princípio da selecção, que vemos tão poderoso entre as mãos do homem, aplica-se ao estado selvagem? Provaremos que se aplica de uma maneira muito eficaz. Lembremos o número infinito de variações ligeiras, de simples diferenças individuais, que se apresentam nas nossas produções domésticas e, num grau inferior, nas espécies no estado selvagem; lembremos também a força das tendências hereditárias. No estado doméstico, pode dizer-se que todo o organismo inteiro se torna de certa forma plástico. Mas, como Hooker e Asa Gray o fizeram notar, a variabilidade que observamos entre todas as nossas produções domésticas não é obra directa do homem. O homem não pode produzir nem impedir as variações; pode apenas conservar e acumular as que se lhe apresentam. Expõe, sem intenção, os seres organizados a novas condições de existência e às variações que daí resultam; ora, mudanças análogas podem e devem mesmo apresentar-se no estado selvagem. Lembre-se também como são complexas, como são estreitas as relações mútuas de todos os seres organizados uns com os outros e com as condições físicas da vida, e, por consequência, que vantagem pode cada um deles tirar de diversidades de conformação infinitamente variadas, sendo dadas as condições de vida diferentes. Há razão para admirações, quando vemos que variações úteis ao homem são certamente produzidas, que outras variações, úteis ao animal na grande e terrível batalha da vida, se produziram no decorrer de numerosas gerações? Se se admite este facto, poderemos duvidar (é preciso lembrar que nascem mais indivíduos do que aqueles que podem viver) que os indivíduos possuindo uma vantagem qualquer, por mais ligeira que seja, tenham probabilidade de viver e de reproduzir-se? Podemos estar certos, por outro lado, que toda a variação, por menos nociva que seja ao indivíduo, traz forçosamente a desaparição deste. Dei o nome de selecção natural ou de persistência do mais apto à conservação das diferenças e das variações individuais favoráveis e à eliminação das variações nocivas. As variações insignificantes, isto é, que não são nem úteis nem nocivas ao indivíduo, não são certamente afectadas pela selecção natural e permanecem no estado de elementos variáveis, como as que podemos observar em certas espécies polimorfas, ou terminando por se fixar, graças à natureza do organismo e às das condições de existência.

Muitos escritores têm compreendido mal, ou criticado mal, este termo de selecção natural. Uns têm mesmo imaginado que a selecção natural traz a variabilidade, visto que envolve sòmente a conservação das variações acidentalmente produzidas, quando são vantajosas ao indivíduo nas condições de existência em que se encontra colocado. Ninguém protesta contra os agricultores, quando falam dos poderosos efeitos da selecção efectuada pelo homem; ora, neste caso, é indispensável que a natureza produza a princípio diferenças individuais que o homem escolhe para um fim determinado. Outros têm pretendido que o termo selecção envolve uma escolha consciente da parte dos animais que se modificam, e tem-se mesmo argumentado que não possuindo as plantas qualquer vontade, a selecção natural não lhe é aplicável. No sentido literal da palavra, não há dúvida que o termo selecção natural é um termo erróneo; mas, quem tem criticado os químicos, por que se servem do termo afinidade electiva falando dos diferentes elementos? Contudo, não pode dizer-se, estritamente falando, que o ácido escolhesse a base com a qual se combina de preferência. Diz-se que falo da selecção natural como de uma potência activa ou divina; mas quem critica um autor quando fala da atracção ou gravitação, como regendo o movimento dos planetas? Todos sabem o que significam, o que querem exprimir estas expressões metafóricas necessárias à clareza da discussão. É também muito difícil evitar personificar o nome natureza; mas, por natureza, entendo somente a acção combinada e os resultados complexos de um grande número de leis naturais; e, por leis, a série de factos que temos reconhecido. No fim de algum tempo ser-nos-ão familiares estes termos e esqueceremos estas críticas inúteis.

Compreenderemos melhor a aplicação da lei da selecção natural tomando para exemplo um país submetido a quaisquer ligeiras alterações físicas, uma alteração climatérica, por exemplo. O número proporcional dos seus habitantes muda quase imediatamente também, e é provável que algumas espécies se extingam. Podemos concluir do que temos visto relativamente às relações complexas e últimas que ligam entre si os habitan tes de cada país, que toda a alteração na proporção numérica dos indivíduos de uma espécie afecta sèriamente todas as outras espécies, sem falar na influência exercida pelas modificações do clima. Se este país está aberto, novas formas aí penetram certamente, e esta emigração tende ainda a alterar as relações mútuas de seus antigos habitantes. Lembremo-nos, a este respeito, qual tem sido sempre a influência da introdução de uma só árvore ou de um mamífero num país. Mas se se trata de uma ilha, ou de um país rodeado de barreiras intransitáveis, na qual, por consequência, novas formas melhor adaptadas às modificações do clima não podem penetrar fàcilmente, encontra-se então, na economia da natureza, qualquer lugar que seria melhor preenchido se alguns dos habitantes originais se modificassem de uma maneira ou de outra, pois que, se o país estava aberto, estes lugares seriam ocupados pelos emigrantes. Neste caso, ligeiras modificações, favoráveis em qualquer grau que seja aos indivíduos de uma espécie, adaptando-as melhor a novas condições ambientes, tenderiam a perpetuar-se, e a selecção natural teria assim materiais disponíveis para começar a sua obra de aperfeiçoamento.

Temos boas razões para acreditar, como o demonstrámos no primeiro capítulo, que as alterações das condições de existência tendem a aumentar a faculdade à variabilidade. Nos casos que acabamos de citar, tendo mudado as condições de existência, o terreno é então favorável à selecção natural, porque oferece mais probabilidades para a produção de variações vantajosas, sem as quais a selecção natural nada pode. É necessário jamais esquecer, que no termo variação, compreendo as simples diferenças individuais. O homem pode produzir grandes alterações nos seus animais domésticos e nas suas plantas cultivadas, acumulando as diferenças individuais numa dada direcção; a selecção natural pode obter os mesmos resultados, mas muito mais fàcilmente, porque a sua acção pode prolongar-se por um lapso de tempo mais considerável. Além disso, não acredito que sejam necessárias grandes mudanças físicas, tais como mudanças climatéricas, ou que um país esteja particularmente isolado e ao abrigo da imigração, para que os lugares livres se tornem produtivos e que a selecção natural os faça ocupar melhorando alguns dos organismos variáveis. Com efeito, como todos os habitantes de cada país lutam com armas quase iguais, basta uma modificação muito ligeira na conformação ou nos hábitos de uma espécie para dar-lhe superioridade sobre as demais. Outras modificações da mesma natureza poderão aumentar ainda esta superioridade, por tão longo tempo quanto a espécie se encontrar nas mesmas condições de existência e gozar dos mesmos meios para se nutrir e defender. Não se poderia citar país algum cujos habitantes indígenas estejam actualmente tão perfeitamente adaptados uns aos outros, tão absolutamente em relação com as condições físicas que os rodeiam, que não haja lugar para qualquer aperfeiçoamento; porque, em todos os países, as espécies nativas têm sido tão completamente vencidas pelas espécies aclimatadas, que têm deixado algumas destas estranhas tomar definitivamente posse do solo. Ora, tendo as espécies estranhas vencido assim, em cada país, algumas espécies indígenas, pode concluir-se que estas últimas poderiam modificar-se com vantagem, de forma a melhor resistir às invasoras.

Desde que o homem pode obter e certamente obteve grandes resultados por meios metódicos e inconscientes de selecção, onde pára a acção da selecção natural? O homem pode apenas agir sobre os caracteres exteriores e visíveis. A natureza, se me permitem personificar com este nome a conservação natural ou a persistência do mais apto, não se ocupa de modo algum das aparências, a não ser que a aparência tenha qualquer utilidade para os seres vivos. A natureza pode actuar sobre todos os órgãos interiores, sobre a menor diferença de organização, sobre todo o mecanismo vital. O homem tem apenas um fim: escolher para vantagem de si próprio; a natureza, ao contrário, escolhe para vantagem do próprio ser. Dá pleno exercício aos caracteres que escolhe, o que implica o facto único da sua selecção. O homem reúne num mesmo país as espécies provindo de muitos climas diferentes; exercita raramente de uma forma especial e conveniente os caracteres que escolheu; dá a mesma nutrição aos pombos de bico longo e aos pombos de bico curto; não exercita de maneira diferente o quadrúpede de longas patas e o de patas curtas; expõe às mesmas influências climatéricas os carneiros de lã comprida e os de lã curta. Não permite aos machos mais vigorosos lutar pela posse das fêmeas. Não destrói rigorosamente todos os indivíduos inferiores; protege, ao contrário, cada um deles, tanto quanto pode, durante todas as estações. Muitas vezes começa a selecção escolhendo algumas formas semimonstruosas, ou, pelo menos, prendendo-se a qualquer modificação assaz aparente para atrair a sua atenção ou para lhe ser imediatamente útil. No estado de natureza, ao contrário, a menor diferença de conformação ou de constituição pode bastar para fazer pender a balança na luta pela existência e perpetuar-se assim. Os desejos e os esforços do homem são tão vários! a sua vida é tão curta! Como devem ser também imperfeitos os resultados que ele obtém quando os compara àqueles que a natureza pode acumular durante longos períodos geológicos! Podemos nós admirar-nos então que os caracteres das produções da natureza sejam muito mais nítidos do que os das raças domésticas do homem? Que de extraordinário pode haver em que estas produções naturais sejam infinitamente melhor adaptadas às condições complexas da existência, e que tragam contudo o selo de uma obra muito mais completa?

Pode dizer-se, metafòricamente, que a selecção natural procura, a cada instante e em todo o mundo, as variações mais ligeiras; repele as que são nocivas, conserva e acumula as que são úteis; trabalha em silêncio, insensivelmente, por toda a parte e sempre, desde que a ocasião se apresente para melhorar todos os seres organizados relativamente às suas condições de existência orgânicas e inorgânicas. Estas transformações lentas e progressivas escapam-nos até que, no decorrer das idades, a mão do tempo as tenha marcado com o seu sinete e então damos tão pouca conta dos longos períodos geológicos decorridos, que nos contentamos em dizer que as formas viventes são hoje diferentes do que foram outrora.

Para que modificações importantes se produzam numa espécie, é necessário que uma variedade, uma vez formada, apresente de novo, depois de longos séculos talvez, diferenças individuais entregando à natureza útil aquelas que se têm apresentado de princípio; é necessário, por outra parte, que estas diferenças se conservem e se renovem ainda. Diferenças individuais da mesma natureza se reproduzem constantemente; é então quase certo que as coisas se passam deste modo. Mas, em suma, só podemos afirmar este facto assegurando-nos se esta hipótese concorda com os fenómenos gerais da natureza e os explica. Por outro lado, a crença geral de que a soma de variações possíveis é uma quantidade estritamente limitada, é também uma simples asserção hipotética.

Posto que a selecção natural só possa actuar com vantagem para cada ser vivo, não é menos verdade que caracteres e conformações, que estamos dispostos a considerar como tendo uma importância muito secundária, podem ser o objecto da sua acção. Quando vemos os insectos que se nutrem de folhas revestir quase sempre uma cor verde, os que se nutrem da casca uma cor cinzenta, o ptarmigan dos Alpes tornar-se branco no Inverno, e o galo montês apresentar as penas cor de urze, não devemos nós acreditar que as cores que revestem certas aves e certos insectos lhes são úteis para livrá-los do perigo? O galo montês multiplicar-se-ia desmesuradamente se não fosse destruído em algumas das fases da sua existência; e sabe-se que as aves de rapina lhe fazem uma caça activa; os falcões, dotados de uma vista subtil, apercebem a sua presa de tão longe, que, em certas partes do continente, não se cultivam os pombos brancos porque estão expostos a grandes perigos. A selecção natural podia então desempenhar o seu papel dando a cada espécie de galo montês uma cor apropriada ao país que habita, conservando e perpetuando esta cor desde que é adquirida. Não seria necessário tão-pouco pensar que a destruição acidental de um animal, que tem uma cor particular, possa apenas produzir pequenos efeitos sobre uma raça. Devemos lembrar-nos, com efeito, quanto é essencial num rebanho de carneiros brancos destruir os cordeiros que tenham a mais pequena mancha preta. Já vimos que a cor dos porcos que, na Virgínia, se nutrem de certas raízes é para eles uma causa de vida ou morte. Nas plantas, consideram os botânicos a penugem do fruto e a cor do mesocarpo como caracteres muito insignificantes; contudo, um excelente horticultor, Dowing, refere-nos que nos Estados Unidos os frutos com pele lisa sofrem muito mais os ataques de um insecto, o curcúlio, do que os que são cobertos de pêlos; que as ameixas vermelhas são muito mais sujeitas a certas doenças que as ameixas amarelas; e que uma outra doença ataca mais fàcilmente os pêssegos de mesocarpo amarelo do que os pêssegos de mesocarpo de outra cor. Se estas ligeiras diferenças, apesar do auxílio da arte, decidem da sorte das variedades cultivadas, estas mesmas diferenças devem evidentemente, no estado de natureza, ser suficientes para decidir quem prevalecerá, se uma árvore produzindo frutos com a pele lisa ou com a pele peluda, com o mesocarpo vermelho ou com o mesocarpo amarelo; porque, neste estado, as árvores têm de lutar com outras árvores e com uma série de inimigos.

Quando estudamos os numerosos pequenos pontos de diferença que existem entre as espécies e que, na nossa ignorância, nos parecem insignificantes, não devemos esquecer que o clima, a alimentação, etc., têm, sem dúvida, produzido alguns efeitos directos. É necessário não esquecer tão-pouco que, em virtude das leis da correlação, quando uma parte varia e a selecção natural acumula as variações, se originam, por vezes, outras modificações de natureza mais inesperada.

Vemos que certas variações que, no estado doméstico, aparecem num período determinado da vida, tendem a reaparecer nos descendentes em igual período. Poderiam citar-se, como exemplos, a forma, o talhe e o sabor dos grãos de muitas variedades dos nossos legumes e das nossas plantas agrícolas; as variações do bicho-da-seda no estado de larva e de crisálida; os ovos das aves domésticas e a cor da penugem dos filhos; os cornos dos nossos carneiros e de outros animais na idade adulta. Ora, no estado de natureza, a selecção natural pode actuar sobre certos seres organizados e modificá-los em qualquer idade que seja pela acumulação de variações proveitosas a esta idade e por transmissão hereditária na idade correspondente. Se é vantajoso a uma planta que as suas sementes sejam mais fàcilmente disseminadas pelo vento, é tão fácil à selecção natural produzir este aperfeiçoamento como é fácil ao cultivador, pela selecção metódica, aumentar e melhorar a penugem contida nas cascas dos seus algodoeiros.

A selecção natural pode modificar a larva de um insecto de forma a adaptá-la a circunstâncias completamente diferentes daquelas em que deverá viver o insecto adulto. Estas modificações poderão mesmo afectar, em virtude da correlação, a conformação do adulto. Mas, inversamente, modificações na conformação do adulto podem afectar a conformação da larva. Em todos os casos, a selecção natural não produz modificações nocivas ao insecto, porque então a espécie se extinguiria.

A selecção natural pode modificar a conformação do filho relativamente aos pais e a dos pais relativamente aos filhos. Entre os animais que vivem em sociedade, transforma a conformação de cada indivíduo de modo tal que possa tornar-se útil à comunidade, com a condição, todavia, de a comunidade aproveitar com a alteração. Mas o que a selecção natural não saberia fazer, era modificar a estrutura de uma espécie sem lhe procurar qualquer vantagem própria e ùnicamente em benefício de uma outra espécie. Ora, posto que as obras sobre história natural apresentem, por vezes, semelhantes factos, não encontrei um único que possa resistir ao exame. A selecção natural pode modificar profundamente uma conformação que sòmente fosse muito útil uma vez durante a vida de um animal, se é importante para ele. Tais são, por exemplo, as grandes mandíbulas, que possuem certos insectos e que empregam exclusivamente para abrir os casulos, ou a extremidade córnea do bico das avezinhas que as auxilia a quebrar o ovo, para sair. Afirma-se que, entre as melhores espécies de pombos cambalhotas de bico curto, morrem no ovo mais borrachos do que os que podem sair; também os amadores vigiam o momento da eclosão para auxiliar os borrachos se disso tiverem necessidade. Ora, se a natureza queria produzir um pombo de bico muito curto para vantagem desta ave, a modificação seria muito lenta e a selecção mais rigorosa se faria no ovo, e sobreviveriam sòmente aqueles que tivessem o bico bastante duro, porque todos os de bico fraco morreriam inevitávelmente; ou melhor ainda, a selecção natural agiria para produzir cascas mais delgadas, partindo-se mais fàcilmente, porque a espessura da casca está sujeita à variabilidade como todas as outras estruturas.

É talvez bom fazer lembrar aquí que deve haver, para todos os seres, grandes destruições acidentais que têm pouca pouca ou nenhuma influência sobre a acção da selecção natural. Por exemplo, muitos ovos ou sementes são destruídos cada ano; ora, a selecção natural só pode modificá-los tanto quanto eles variem de maneira a escaparem aos ataques dos inimigos. Contudo, muitos destes ovos ou destas sementes poderiam, se não fossem destruídos, produzir indivíduos melhor adaptados às condições ambientes do que alguns daqueles que têm sobrevivido. Além disso, um grande número de animais ou de plantas adultas, quer sejam ou não os melhores adaptados às condições ambientes, devem anualmente perecer, em razão de causas acidentais, que não seriam de forma alguma mitigadas por alterações de conformação ou constituição vantajosa à espécie sobre todas as outras relações. Mas, por mais considerável que seja esta destruição dos adultos, pouco importa, suposto que o número dos indivíduos que sobrevivem numa região qualquer fique bastante considerável — pouco importa, ainda, que a destruição dos ovos ou das sementes seja tão grande que só a centésima ou mesmo a milésima parte se desenvolva — não é menos verdade que os indivíduos mais aptos, entre os que sobrevivem, supondo que se produzem neles variações numa direcção proveitosa, tendem a multiplicar-se em maior número que os indivíduos menos aptos. A selecção natural não podia, sem dúvida, exercer a sua acção em certas direcções vantajosas, se o número dos individuos se encontrasse consideràvelmente diminuído pelas causas que acabamos de indicar, e este caso tem-se produzido muitas vezes; mas isto não é uma objecção valiosa contra a sua eficacidade em outras épocas e em outras circunstâncias. Estamos longe de poder supor, com efeito, que muitas espécies sejam submetidas a modificações e melhoramentos na mesma época e no mesmo país.

SELECÇÃO SEXUAL

editar

No estado doméstico, certas particularidades aparecem algumas vezes em um dos sexos e tornam-se hereditárias nesse sexo; o mesmo se efectua no estado de natureza. E então possível que a selecção natural modifique os dois sexos relativamente aos hábitos diferentes da existência, como algumas vezes sucede, ou que um sexo se modifique relativamente ao outro sexo, o que acontece frequentemente. Isto leva-me a dizer algumas palavras a respeito do que denominei selecção sexual. Esta forma de selecção não depende da luta pela existência com outros seres organizados, ou com as condições ambientes, mas da luta entre os indivíduos de um sexo, ordinàriamente os machos, para assegurar a posse do outro sexo. Esta luta não termina pela morte do vencido, mas pela falta ou pela pequena quantidade de descendentes. A selecção sexual é, pois, menos rigorosa que a selecção natural. Ordinàriamente, os machos mais vigorosos, isto é, os que são mais aptos a ocupar o seu lugar em a natureza, deixam um maior número de descendentes. Mas, em muitos casos, a vitória não depende tanto do vigor geral do indivíduo como da posse de armas especiais que se encontram apenas no macho. Um veado desprovido de pontas, ou um galo desprovido de esporões, teriam poucas probabilidades de deixar numerosos descendentes. A selecção sexual, permitindo sempre aos vencedores reproduzir-se, pode dar sem dúvida a estes uma coragem indomável, esporões mais longos, uma asa mais forte para quebrar a pata do concorrente, quase da mesma maneira que o brutal criador de galos de combate pode melhorar a raça pela escolha rigorosa dos seus mais belos adultos. Eu não saberia dizer até onde se estende esta lei da guerra na escala da natureza. Dizem que os aligátores machos se batem, rugem, giram em círculo, como fazem os Índios nas suas danças guerreiras, para apoderar-se das fêmeas; vêem-se os salmões machos bater-se durante dias inteiros; os besouros machos trazem algumas vezes o sinal das feridas que lhes fizeram as largas mandíbulas de outros machos; M. Fabre, este observador inimitável, viu muitas vezes certos insectos himenópteros machos baterem-se pela posse de uma fêmea que parecia ficar espectadora indiferente ao combate, e que, em seguida, partia com o vencedor. A guerra é talvez mais terrível ainda entre os machos dos animais polígamos, porque estes últimos parecem providos de armas especiais. Os animais carnívoros machos parecem já bem armados, e, contudo, a selecção natural pode dar-lhes ainda novos meios de defesa, tais como a juba do leão e a queixada de ganchos do salmão macho, porque o escudo pode ser tão importante como a lança do ponto de vista da vitória.

Entre as aves, esta luta reveste, frequentemente, um carácter mais pacífico. Todos aqueles que têm estudado este assunto, verificam uma ardente rivalidade entre os machos de muitas espécies para atrair as fêmeas com seus cantos. Os melros de rocha da Guiana, as aves-do-paraíso, e muitas outras ainda, reúnem-se em bandos; os machos apresentam-se sucessivamente; mostram com o maior cuidado, com o maior efeito possível, a sua magnífica plumagem, tomam as mais extraordinárias atitudes diante das fêmeas, simples espectadoras, que terminam por escolher o companheiro mais agradável. Quem tem estudado com interesse as aves em cativeiro, sabe que, estas mesmo, são muito susceptíveis de preferências e de antipatias individuais; assim, sir R. Heron observou que todas as fêmeas do seu viveiro amavam em especial um certo pavão penachado. É-me impossível entrar aqui em todas as particularidades que seriam necessárias; mas, se o homem chega a dar, em pouco tempo, a elegância do porte e a beleza da plumagem aos nossos galos Bantão, segundo o tipo ideal que concebemos para esta espécie, não vejo razão para que as aves fêmeas não possam obter um resultado semelhante escolhendo, durante milhares de gerações, os machos que lhes pareçam mais belos, ou aqueles cuja voz seja mais melodiosa. Podem explicar-se, em parte, pela acção da selecção sexual algumas leis bem conhecidas relativas à plumagem das aves machos e fêmeas comparada à plumagem dos filhos, por variações que se apresentam em diferentes idades e transmitidas seja somente aos machos, seja aos dois sexos, ou na idade correspondente; mas o espaço falta-nos para desenvolver este assunto.

Creio que, todas as vezes que os machos e as fêmeas de qualquer animal têm os mesmos hábitos gerais de existência, mas que diferem do ponto de vista da conformação, da cor ou da ornamentação, estas diferenças são devidas principalmente à selecção sexual; isto é, que certos machos têm tido, durante uma série ininterrupta de gerações, algumas ligeiras vantagens sobre outros machos, provindo quer de suas armas, quer de seus meios de defesa, quer da sua beleza ou dos seus atractivos, vantagens que transmitiram exclusivamente à sua posteridade masculina. Eu não queria, contudo, atribuir a esta causa todas as diferenças sexuais; vemos, com efeito, entre os animais domésticos, produzirem-se entre os machos particularidades que parecem não ter sido aumentadas pela selecção do homem. O tufo de pêlos sobre o papo do peru selvagem não lhe seria de vantagem alguma, e até é duvidoso que possa servir-lhe de ornamentação aos olhos da fêmea; se mesmo este tufo de pêlos tivesse aparecido no estado doméstico, teríamo-lo considerado como uma monstruosidade.

EXEMPLOS DA ACÇÃO DA SELECÇÃO NATURAL OU DA PERSISTENCIA DO MAIS APTO

editar

A fim de bem fazer compreender de que modo actua, segundo me parece, a selecção natural, peço permissão para dar um ou dois exemplos imaginários. Suponhamos um lobo que se nutrisse de diferentes animais, apoderando-se de uns pela astúcia, de outros pela força, de outros, enfim, pela agilidade. Suponhamos ainda que a sua presa mais rápida, o gamo por exemplo, tinha aumentado em número após algumas alterações sobrevindas no país, ou que os outros animais, de que se nutre ordinàriamente, tinham diminuído durante a estação do ano em que o lobo está mais apertado pela fome. Nestas circunstâncias, os lobos mais ágeis e mais velozes têm mais probabilidades de sobreviver do que os outros; persistem então, contanto que conservem, todavia, bastante força para vencer a sua presa e tornarem-se senhores dela, nesta época do ano ou em qualquer outra, quando são forçados a apoderar-se de outros animais para se nutrir. Não vejo mais razão para duvidar deste resultado do que da possibilidade, para o homem, de aumentar a ligeireza dos seus galgos por uma selecção diligente e metódica, ou por esta espécie de selecção inconsciente que provém de cada pessoa se esforçar por possuir os melhores cães sem ter o menor pensamento em modificar a raça. Posso juntar que, segundo M. Pierce, duas variedades de lobos habitam as montanhas de Catskill, nos Estados Unidos: uma destas variedades, que afecta um pouco a forma do galgo, nutre-se principalmente de gamos; a outra, mais pesada, as pernas mais curtas, ataca mais frequentemente os rebanhos.

É necessário observar que, no exemplo citado acima, falo dos lobos mais velozes tomados individualmente, e não de uma variação manifestamente pronunciada que se perpetuasse. Nas edições precedentes desta obra, podia acreditar-sé que eu apresentava esta última alternativa como se fosse muitas vezes produzida. Eu compreendia a extrema importância das diferenças individuais, e isto me conduzia a discutir pormenorizadamente os resultados da selecção inconsciente feita pelo homem, selecção que depende da conservação dos indivíduos mais ou menos superiores e da destruição dos indivíduos inferiores. Compreendia também que, no estado de natureza, a conservação de um desvio acidental de estrutura, tal como uma monstruosidade, deve ser um sucesso muito raro, e que, se este desvio se conserva de princípio, deve tender a desaparecer imediatamente, em seguida aos cruzamentos com indivíduos comuns. Todavia, depois de ter lido um excelente artigo da North British Review (1867), compreendi melhor ainda o quanto é raro que variações isoladas, quer sejam ligeiras quer fortemente acentuadas, possam perpetuar-se. O autor deste artigo toma para exemplo um casal de animais que produzam durante a vida duzentos filhos, dos quais, em razão de diferentes causas de destruição, dois únicamente, em média, sobrevivem para propagar a espécie. Pode dizer-se, primeiramente, que é um valor pequeníssimo para a maior parte dos animais elevados na escala, mas que não há exagero para os organismos inferiores. O escritor demonstra em seguida que, se nasce um único indivíduo que varia de forma a ter mais duas probabilidades de vida do que todos os outros, teria, ainda assim, muito pouca probabilidade de persistir. Supondo que se reproduzisse e que metade dos filhos herdassem a variação favorável, os filhos, se se deve acreditar o autor, teriam apenas uma leve probabilidade a mais para sobreviver e se reproduzirem, e esta probabilidade diminuiria em cada geração sucessiva. Não se pode, creio eu, pôr em dúvida a exactidão destas observações. Suponhamos, com efeito, que uma ave qualquer pode procurar os alimentos mais fàcilmente tendo o bico recurvo; suponhamos ainda que uma ave desta espécie nasce com o bico demasiado curvo, e que, por consequência, vive fàcilmente; não é menos verdade que haveria poucas probabilidades deste único indivíduo perpetuar a espécie com exclusão da forma ordinária. Mas, se é preciso julgar pelo que se passa nos animais no estado de domesticidade, não se pode duvidar tão-pouco que, se se escolheu, durante muitas gerações, um grande número de indivíduos tendo o bico mais ou menos recurvado, e se se destruiu um maior número ainda de indivíduos tendo o bico o mais direito possível, os primeiros não se multiplicam fàcilmente.

Todavia, é necessário não esquecer que certas variações perfeitamente acentuadas, que ninguém pensaria em classificar como simples diferenças individuais, se apresentam muitas vezes, porquanto condições análogas actuam sobre organismos análogos; as nossas produções domésticas oferecem-nos numerosos exemplos deste facto. Neste caso, se o indivíduo que variou não transmite exactamente aos filhos os seus caracteres novamente adquiridos, menos lhes transmite por muito tempo, contanto que as condições fiquem as mesmas, uma grande tendência a variar da mesma forma. Não se pode duvidar tão-pouco que a tendência para variar na mesma direcção tenha sido outrora tão poderosa, que todos os indivíduos da mesma espécie se modificassem da mesma maneira, sem o auxílio de qualquer espécie de selecção. Poderiam, em todos os casos, citar-se muitos exemplos de um terço, de um quinto ou mesmo de um décimo dos indivíduos que foram afectados desta forma. Assim, Graba julga que, nas ilhas de Feroé, um quinto pouco mais ou menos de Guillemots se compõe de uma variedade tão bem definida, que se classificou outrora como uma espécie distinta, com o nome de Uria lacrymans. Sendo isto assim, se a variação é vantajosa ao animal, a forma modificada deve suplantar bem depressa a forma original, em virtude da sobrevivência do mais apto.

Terei de voltar aos efeitos dos cruzamentos do ponto de vista da eliminação das variações de toda a espécie; algumas vezes posso fazer observar aqui que a maior parte dos animais e das plantas tendem a conservar o mesmo habitat se não a afastam sem razão; poderia citar, como exemplo, as próprias aves de arribação, que, quase sempre, voltam a habitar a mesma localidade. Por consequência, toda a variedade de formação nova seria ordinàriamente local no princípio, o que parece, aliás, ser regra geral para as variedades no estado da natureza; de tal modo que os indivíduos modificados de maneira análoga devem formar em breve um pequeno grupo e tender a reproduzir-se fàcilmente. Se a nova variedade é bem sucedida na luta pela existência, propaga-se lentamente em torno de um ponto central; luta constantemente com os indivíduos que não tenham sofrido alteração alguma, aumentando sempre o círculo da sua acção, e acabando por vencê-los.

Não seria inútil citar um outro exemplo um pouco mais complicado da acção da selecção natural. Certas plantas segregam um líquido açucarado, aparentemente com o fim de eliminar da seiva algumas substâncias nocivas. Esta secreção efectua-se, quase sempre, com o auxílio de glândulas colocadas na base das estípulas entre algumas leguminosas, e na página inferior das folhas do loureiro comum. Os insectos procuram àvidamente este líquido, posto que se encontre sempre em pequena quantidade; mas a sua visita não constitui vantagem alguma para a planta. Ora, suponhamos que um certo número de plantas de uma espécie qualquer segregam este líquido ou este néctar no interior das flores. Os insectos em busca do néctar cobrem-se de pólen e transportam-no de uma flor para outra. As flores de dois indivíduos distintos da mesma espécie cruzam-se por este facto; ora, o cruzamento, como seria fácil demonstrá-lo, produz plantas vigorosas, que têm a maior probabilidade de viver e de perpetuar-se. As plantas que produziram as flores em glândulas maiores, e que, por consequência, segregaram mais líquido, seriam maior número de vezes visitadas pelos insectos e cruzar-se-iam mais vezes também; por isso, acabariam, no decorrer do tempo, por suplantar todas as outras e formar uma variedade local. As flores cujos estames e pistilos estivessem situados, em relação ao tamanho e hábitos dos insectos que os procuram, de maneira a favorecer, de qualquer forma, o transporte do pólen, seriam igualmente superiores. Poderíamos escolher para exemplo insectos que visitam as flores em busca do pólen no lugar da secreção açucarada; tendo o pólen por único objecto a fecundação, parece, à primeira vista, que a sua destruição seria uma verdadeira perda para a planta. Contudo, se os insectos que se nutrissem de pólen transportassem de flor em flor um pouco desta substância, primeiro acidentalmente, depois habitualmente, e que os cruzamentos fossem o resultado destes transportes, a planta teria ainda a lucrar, posto que nove décimos do pólen fossem destruídos. Resultaria então que os indivíduos que possuíssem as antenas mais grossas e a maior quantidade de pólen, tinham mais probabilidades de perpetuar a espécie.

Quando uma planta, após desenvolvimentos sucessivos, é cada vez mais procurada pelos insectos, estes, operando inconscientemente, levam regularmente o pólen de flor em flor; muitos exemplos admiráveis me permitiriam provar que este facto se apresenta todos os dias. Citarei apenas um único, porque me servirá ao mesmo tempo para demonstrar como pode efectuar-se gradualmente a separação dos sexos entre as plantas. Certos azevinhos têm apenas flores masculinas, providas de um pistilo rudimentar e de quatro estames que produzem uma pequena quantidade de pólen; outros têm apenas flores femininas, com um pistilo muito desenvolvido e quatro estames com anteras não desenvolvidas, nas quais se não descobriria um único grão de pólen. Tendo observado uma árvore feminina à distância de 60 metros de uma árvore masculina, coloquei no microscópio os estigmas de vinte flores colhidas de diversos ramos. Em todos, sem excepção, notei a presença de alguns grãos de pólen, e em alguns uma profusão. O pólen não tinha podido ser transportado pelo vento, que, desde alguns dias, soprava numa direcção contrária. O tempo estava frio, tempestuoso, e por consequência pouco favorável às visitas das abelhas; contudo, todas as flores que examinei tinham sido fecundadas por abelhas que voavam de árvore em árvore, em busca de néctar. Voltemos à nossa demonstração: desde que a planta se torna assaz atraente para os insectos para que o pólen seja transportado regularmente de flor em flor, uma outra série de factos começa a produzir-se. Nenhum naturalista põe em dúvida as vantagens do que se chama a divisão fisiológica do trabalho. Pode concluir-se daí que seria proveitoso para as plantas produzir únicamente estames em uma flor ou em um arbusto completo, e unicamente pistilos em outra flor ou em outro arbusto. Entre as plantas cultivadas e colocadas por isso em novas condições de existência, umas vezes os órgãos masculinos e outras vezes os órgãos femininos tornam-se mais ou menos impotentes. Ora, se nós supomos que isto se pode produzir, em qualquer grau que seja, no estado de natureza, estando o pólen já regularmente transportado de flor em flor e sendo útil a completa separação dos sexos do ponto de vista da divisão do trabalho, os indivíduos em que esta tendência cresça progressivamente são cada vez mais favorecidos e escolhidos, até que enfim a completa separação dos sexos se efectue. Seria preciso demasiado espaço para demonstrar como, pelo dimorfismo, ou por outros meios, certamente hoje em acção, se efectua actualmente a separação dos sexos entre as plantas de diversas espécies. Mas posso juntar, que, segundo Asa Gray, algumas espécies de azevinhos, na América setentrional, se encontram exactamente numa posição intermediária, ou, para empregar a sua expressão, são mais ou menos diòicamente poligâmicas.

Examinemos agora os insectos que se nutrem de néctar. Podemos supor que a planta, de que vimos aumentar as secreções lentamente em seguida a uma selecção contínua, é uma planta comum, e que certos insectos procuram em grande parte o seu néctar para a alimentação. Poderia provar, por numerosos exemplos, quanto as abelhas são económicas do tempo; lembrarei ùnicamente as incisões que costumam fazer na base de certas flores para colher o néctar, quando com um pouco mais de dificuldade poderiam entrar pelo vértice da corola. Recordando estes factos, pode fàcilmente acreditar-se que, em certas circunstâncias, diferenças individuais na curvatura ou no comprimento da tromba, etc., ainda que demasiado insignificantes para que possamos apreciá-las, podem ser proveitosas às abelhas ou a qualquer outro insecto, de forma tal que certos indivíduos estariam em estado de procurar mais fàcilmente a sua nutrição do que quaisquer outros; as sociedades a que pertencessem desenvolver-se-iam por consequência mais depressa, e produziriam mais enxames herdando as mesmas particularidades. Os tubos das corolas do trevo vermelho comum e o trevo encarnado (Trifolium pratense e T. incarnatum), não pareciam, à primeira vista, diferir no comprimento; contudo, a abelha doméstica colhe fàcilmente o néctar do trevo encarnado, mas não do trevo comum vermelho, que é apenas procurado pelos zângãos; de maneira tal que campos completos de trevo vermelho em vão oferecem à abelha uma abundante colheita de precioso néctar. É certo que a abelha gosta em extremo deste néctar; eu mesmo vi frequentemente, mas sòmente no Outono, muitas abelhas sugar as flores por aberturas que os zângãos tinham praticado na base do tubo. A diferença do comprimento das corolas nas duas espécies de trevo deve ser insignificante; todavia, é o bastante para decidir as abelhas a procurarem uma flor mais depressa do que outra. Afirma-se, além disso, que as abelhas procuram as flores do trevo vermelho da segunda colheita, que são um pouco mais pequenas. Não sei se esta asserção tem fundamento; também não sei se uma outra asserção, recentemente publicada, tem mais fundamento, isto é, que a abelha da Ligúria, que se considera ordinàriamente como uma simples variedade da abelha doméstica comum, e que se cruza muitas vezes com ela, pode atingir e sugar o néctar do trevo vermelho. Como quer que seja, seria muito vantajoso para a abelha doméstica, num país onde abunda esta espécie de trevo, ter uma tromba um pouco mais comprida ou diferentemente construída. Por outro lado, como a fecundidade desta espécie de trevo depende absolutamente da procura dos zângãos, seria muito vantajoso para a planta, se os zângãos se tornassem raros num país, ter uma corola mais curta ou mais profundamente dividida, para que a abelha pudesse sugar as flores. Pode compreender-se assim como se faz que uma flor e um insecto pos sam lentamente, quer simultâneamente, quer um após outro, modificar-se e adaptar-se mutuamente da maneira mais perfeita, pela conservação contínua de todos os indivíduos que apresentam ligeiros desvios de estrutura para um e para outro.

Sei bem que esta doutrina da selecção natural, baseada sobre exemplos análogos àqueles que acabo de citar, pode levantar as objecções que a princípio se tinham oposto às magníficas hipóteses de sir Charles Lyell, quando quis explicar as transformações geológicas pela acção das causas actuais. Contudo, hoje raramente se procura julgar insignificantes as causas que vemos ainda em acção actualmente, quando se empregam para explicar a escavação dos mais profundos vales ou a formação de longas linhas de dunas interiores. A selecção natural opera apenas pela conservação e acumulação de pequenas modificações hereditárias, de que cada uma é proveitosa ao indivíduo conservado; ora, da mesma forma que a geologia moderna, quando se trata de explicar a escavação de um profundo vale, renuncia a invocar a hipótese de uma só grande vaga diluviana, da mesma forma a selecção natural tende a fazer desaparecer a crença na criação contínua de novos seres organizados, ou nas grandes e inopinadas modificações da sua estrutura.

CRUZAMENTO DOS INDIVIDUOS

editar

Devo permitir-me aqui uma curta digressão. Quando se trata de animais e plantas tendo os sexos separados, é evidente que a participação de dois indivíduos é sempre necessária para cada fecundação (à excepção, contudo, dos casos tão curiosos e tão pouco conhecidos de partenogénese); mas a existência desta lei está longe de ser igualmente evidente nos hermafroditas. Há, entretanto, alguma razão para acreditar que, entre todos os hermafroditas, dois indivíduos cooperam, já acidentalmente, já habitualmente, para a reprodução da espécie. Esta ideia foi sugerida, há já muito tempo, mas de uma forma bastante duvidosa, por Sprengel, por Knight e por Kölreuter. Veremos, em breve, a importância desta sugestão; mas serei obrigado a tratar aqui este assunto em muito poucas palavras, se bem que tenho à minha disposição os materiais necessários para uma profunda discussão. Todos os vertebrados, todos os insectos e alguns outros grupos consideráveis de animais copulam-se para cada fecundação. As investigações modernas têm diminuído muito o número dos supostos hermafroditas, e, entre os verdadeiros hermafroditas, há muitos que se copulam, isto é, que dois indivíduos se unem regularmente para a reprodução da espécie; ora, é este o único ponto que nos interessa. Todavia, há muitos hermafroditas que, certamente, se não copulam habitualmente, e a grande maioria das plantas encontra-se neste caso. Que razão pode haver, pois, para supor que, mesmo neste caso, dois indivíduos concorrem para o acto reprodutor? E como me é impossível entrar aqui nestas particularidades, devo contentar-me com algumas considerações gerais.

Em primeiro lugar, colhi um número considerável de factos. Fiz mesmo um grande número de experiências provando, de acordo com a opinião quase universal dos tratadores, que, nos animais e nas plantas, um cruzamento entre variedades diferentes ou entre indivíduos da mesma variedade, mas de uma outra casta, torna a posteridade que nasce mais vigorosa e mais fecunda; e que, por outra parte, as reproduções entre próximos parentes diminuem este vigor e esta fecundidade. Estes factos tão numerosos bastam para provar que é uma lei geral da natureza tendendo a que nenhum ser organizado se fecunda à si mesmo durante um ilimitado número de gerações, e que um cruzamento com um outro indivíduo é indispensável de tempos a tempos, posto que talvez com longos intervalos.

Esta hipótese permite-nos, creio eu, explicar grandes séries de factos, tais como o seguinte, inexplicável de outra maneira. Todos os horticultores que se ocupam de cruzamentos, sabem quanto a exposição à humidade torna difícil a fecundação de uma flor; e, contudo, que multidão de flores têm as anteras e os estigmas completamente expostos às intempéries do ar! Admitindo que um cruzamento acidental é indispensável, ainda que as anteras e o pistilo da planta estejam tão próximos que a fecundação de um para outro seja quase inevitável, esta livre exposição, por desvantajosa que seja, pode ter por fim permitir livremente a entrada do pólen proveniente de outro indivíduo. Por outra parte, muitas flores, como as da grande família das Papilionáceas ou Leguminosas, têm os órgãos sexuais completamente fechados; mas estas flores oferecem quase invariàvelmente belas e curiosas adaptações em relação com as visitas dos insectos. As visitas das abelhas são tão precisas a muitas flores da família das Papilionáceas, que a fecundidade destas últimas diminui muito se se impedem estas visitas. Ora, é apenas possível que os insectos voem de flor em flor sem levar o pólen de uma à outra, para grande vantagem da planta. Os insectos actuam, neste caso, como o pincel de que nos servimos, e que basta, para assegurar a fecundação, passear sobre as anteras de uma flor e sobre os estigmas de uma outra. Mas não seria preciso supor que as abelhas produzam assim. uma multidão de híbridas entre as espécies distintas; porque, se se coloca no mesmo estigma pólen próprio à planta e o de uma outra espécie, o primeiro anula completamente, assim como demonstrou Gaertner, a influência do pólen estranho.

Quando os estames de uma flor se lançam de improviso para o pistilo, ou se movem lentamente um após outro, parece que é únicamente para melhor assegurar a fecundação de uma flor por si mesma; sem dúvida, esta adaptação é útil com este fim. Mas a intervenção dos insectos é muitas vezes necessária para determinar os estames a moverem-se, como o demonstrou Kölreuter para a bérberis. Neste género, onde tudo parece disposto para assegurar a fecundação da flor por si própria, sabe-se que, se se plantam uma perto da outra formas ou variedades muito próximas, é quase impossível criar plantas de raça pura, pois se cruzam naturalmente. Em numerosos outros casos, como poderia demonstrá-lo pelas averiguações de Sprengel e de outros naturalistas assim como pelas minhas próprias observações, bem longe de que nada há que contribua para favorecer a fecundação de uma planta por si mesma, observam-se adaptações especiais que impedem absolutamente o estigma de receber o pólen dos seus próprios estames. Na Lobelia fulgens, por exemplo, há um sistema, tão admirável como completo, por meio do qual as anteras de cada flor deixam escapar os numerosos grânulos de pólen antes que o estigma da mesma flor esteja apto a recebê-los. Ora, como no meu jardim pelo menos os insectos nunca visitam esta flor, resulta daí que jamais produz sementes, posto que tenha obtido uma grande quantidade colocando eu mesmo o pólen de uma flor no estigma de outra. Uma outra espécie de Lobélia, visitada pelas abelhas, produziu, no meu jardim, abundantes sementes. Em muitos outros casos, ainda que nenhum obstáculo mecânico especial impeça o estigma de receber o pólen da mesma flor, todavia, como Sprengel e mais recentemente Hildebrando e outros o demonstraram, e como eu mesmo posso confirmá-lo, as anteras rebentam antes que o estigma esteja apto a ser fecundado, ou então, ao contrário, é o estigma que chega à maturação antes do pólen, de tal maneira que estas pretendidas plantas dicogâmicas têm na realidade sexos separados e devem cruzar-se habitualmente. Há mesmo plantas reciprocamente dimorfas e trimorfas a que já temos feito alusão. Como estes factos são extraordinários! Como é estranho que o pólen e o estigma da mesma flor, ainda que colocados um ao pé do outro com o fim de assegurar a fecundação da flor por si mesma, sejam, em tantos casos, reciprocamente inúteis um ao outro! Como é fácil explicar estes factos, que se tornam então tão simples, na hipótese de que um cruzamento acidental com um indivíduo distinto é vantajoso ou indispensável.

Se se deixam produzir sementes a muitas variedades de couves, rabanetes, cebolas e algumas outras plantas colocadas umas perto das outras, tenho observado que a grande maioria das novas plantas provenientes destas sementes são mestiças. Assim, tratei duzentas e trinta e três novas couves provenientes de diferentes variedades que nasceram junto umas das outras, e, destas duzentas e trinta e três plantas, apenas setenta e oito eram de raça pura, e ainda algumas destas últimas eram ligeiramente alteradas. Contudo, o pistilo de cada flor, na couve, é não sòmente cercado de seis estames, mas ainda pelos de numerosas outras flores que se encontram na mesma planta; além disso, o pólen de cada flor chega fàcilmente ao estigma, sem que seja necessário a intervenção dos insectos; observei, com efeito, que as plantas protegidas com cuidado contra as visitas dos insectos produzem um número completo de silíquas. Como sucede, pois, que um tão grande número de plantas novas sejam mestiças? Isto deve provir de que o pólen de uma variedade distinta é dotado de um poder fecundante mais activo do que o pólen da própria flor, e que isto faz parte da lei geral em virtude da qual o cruzamento de indivíduos distintos da mesma espécie é vantajoso à planta. Quando, ao contrário, espécies distintas se cruzam, o efeito é inverso, porque o próprio pólen de uma planta excede quase sempre em poder fecundante um pólen estranho; nós voltaremos, demais, a este assunto num capítulo subsequente.

Poder-se-ia fazer esta objecção que, em uma grande árvore, coberta de inumeráveis flores, é quase impossível que o pólen seja transportado de árvore em árvore, e que apenas poderia ser de flor em flor sobre a mesma árvore; ora, sòmente se podem considerar num sentido muito limitado as flores da mesma árvore como indivíduos distintos. Creio que esta objecção tem um certo valor, mas a natureza proveu a isto suficientemente dando às árvores uma grande tendência a produzir flores de sexos separados. Ora, quando os sexos são separados, ainda que a mesma árvore possa produzir flores masculinas e flores femininas, é preciso que o pólen seja regularmente transportado de uma flor a outra, e além disso este transporte oferece uma probabilidade para que o pólen passe acidentalmente de uma árvore para outra. Tenho verificado que, nas nossas regiões, as árvores pertencentes a todas as ordens têm os sexos muitas mais vezes separados do que todas as outras plantas. A meu pedido, o Dr. Hooker teve a amabilidade de formar a lista das árvores da Nova Zelândia, e o Dr. Asa Gray a das árvores dos Estados Unidos; os resultados foram tais como eu os tinha previsto. Por outra parte, o Dr. Hooker informou-me que esta regra se não aplica à Austrália; mas, se a maior parte das árvores australianas são dicogâmicas, o mesmo efeito se produz como se tivessem flores com sexos separados. Tenho feito algumas referências às árvores apenas para chamar a atenção sobre este ponto.

Examinemos resumidamente o que se passa entre os animais. Muitas espécies terrestres são hermafroditas, tais são, por exemplo, os moluscos terrestres e as minhocas; todos, entretanto, se copulam. Até ao presente, não encontrei ainda um só animal terrestre que pudesse fecundar-se a si mesmo. Este facto singular, que contrasta tão vivamente com o que se passa com as plantas terrestres, explica-se fàcilmente pela hipótese da necessidade de um cruzamento acidental; porque, em razão da natureza do elemento fecundante, não há, no animal terrestre, meios análogos à acção dos insectos e do vento sobre as plantas, que possam produzir um cruzamento acidental sem a cooperação de dois indivíduos. Entre os animais aquáticos, há, pelo contrário, muitos hermafroditas que se fecundam a si mesmos, mas aqui as correntes oferecem um meio fácil de cruzamentos acidentais. Depois de numerosos estudos, feitos conjuntamente com uma das mais altas e mais competentes autoridades, o professor Huxley, foi-me impossível descobrir, nos animais aquáticos, e até mesmo nas plantas, um só hermafrodita no qual os órgãos reprodutores fossem tão perfeitamente internos, que todo o acesso fosse absolutamente fechado à influência acidental de um outro indivíduo, de modo a tornar todo o cruzamento impossível. Durante muito tempo me pareceu que os Cirrípedes fariam excepção a esta regra; mas, graças a um feliz acaso, pude provar que dois indivíduos, ambos hermafroditas e capazes de se fecundar a si mesmos, se cruzam contudo algumas vezes.

A maior parte dos naturalistas devem estar impressionados, como por uma estranha anomalia, pelo facto de, nos animais e nas plantas, entre as espécies de uma mesma família e também de um mesmo género, serem uns hermafroditas e outros unissexuados, posto que sejam muito semelhantes em todos os outros pontos da sua organização. Contudo, se se acha que todos os hermafroditas se cruzam de tempos a tempos, a diferença que existe entre eles e as espécies unissexuadas é muito insignificante, pelo menos com relação às funções.

Estas diferentes considerações e um grande número de factos especiais que pude recolher, mas que a falta de espaço me impede de citar aqui, parecem provar que o cruzamento acidental entre indivíduos distintos, nos animais e nas plantas, constitui uma lei senão universal, pelo menos muito geral em a natureza.

CIRCUNSTANCIAS FAVORÁVEIS À PRODUÇÃO DE NOVAS FORMAS PELA SELECÇÃO NATURAL

editar

É este um assunto extremamente complicado. Uma grande variabilidade — e, sob este termo, se compreendem sempre as diferenças individuais — é evidentemente favorável à acção da selecção natural. A multiplicidade de indivíduos, oferecendo mais probabilidades de variações vantajosas num tempo dado, compensa uma variabilidade menor em cada indivíduo tomado pessoalmente, e é este, creio eu, um elemento importante de sucesso. Posto que a natureza aplique longos períodos ao trabalho da selecção natural, não seria necessário acreditar, contudo, que esta delonga seja indefinida. Com efeito, todos os seres organizados lutam por se apoderar dos lugares vagos na economia da natureza; por consequência, se uma espécie, seja qual for, se não modifica nem se aperfeiçoa tão depressa como os seus concorrentes, deve ser exterminada. Demais, a selecção natural não pode agir sem que alguns descendentes herdem variações vantajosas. A tendência à regressão ao tipo dos antepassados pode muitas vezes embaraçar ou impedir a acção da selecção natural; mas, por outro lado, como esta tendência não impede o homem de criar, pela selecção, numerosas raças domésticas, porque prevaleceria ela contra a obra da selecção natural?

Quando se procede com uma selecção metódica, o tratador escolhe certos indivíduos para atingir um fim determinado; se permite a todos os indivíduos cruzarem-se livremente, é certo que falhará. Quando, porém, muitos tratadores, sem a intenção de modificar uma raça, têm um tipo comum de perfeição, e que todos tentam procurar e fazer reproduzir os indivíduos mais perfeitos, esta selecção inconsciente traz lenta, mas seguramente, grandes progressos, admitindo mesmo que se separem os indivíduos mais particularmente belos. Dá-se o mesmo no estado livre; porque, numa região restrita, em que a economia geral apresenta algumas lacunas, todos os indivíduos que variam numa certa direcção determinada, ainda que em graus diferentes, tendem a persistir. Se, ao contrário, a região é considerável, os diversos distritos apresentam certamente condições diferentes de existência; ora, se uma espécie é submetida a modificações nestes diversos distritos, as novas variedades formadas cruzam-se nos confins de cada um deles. Veremos, todavia, no sexto capítulo desta obra, que as variedades intermediárias, habitando distritos intermediários, são ordinàriamente eliminadas, num lapso de tempo mais ou menos considerável, por uma das variedades vizinhas. O cruzamento afecta principalmente os animais que se copulam para cada fecundação, que vagueiam muito, e se não multiplicam numa proporção rápida. Assim, nos animais desta natureza, aves por exemplo, as variedades devem ordinàriamente ser limitadas em regiões separadas umas das outras; é isto o que acontece quase sempre. Nos organismos hermafroditas que se não cruzam a não ser acidentalmente, da mesma forma como nos animais que se copulam para cada fecundação, mas que pouco vagueiam, e se multiplicam ràpidamente, uma nova variedade aperfeiçoada pode formar-se depressa em um lugar qualquer, pode aí sustentar-se e espalhar-se depois de tal maneira que os indivíduos da nova variedade se cruzem principalmente uns com os outros. É em virtude deste princípio que os horticultores preferem conservar sempre sementes recolhidas sobre maciços consideráveis de plantas, porque evitam assim as probabilidades de cruzamento.

Não seria preciso acreditar tão-pouco que os cruzamentos fáceis possam embaraçar a acção da selecção natural nos animais que se reproduzem lentamente e se copulam para cada fecundação. Eu poderia citar factos numerosos provando que, num mesmo país, duas variedades de uma mesma espécie de animais podem ficar por muito tempo distintas, quer frequentem ordinàriamente regiões diferentes, quer a estação da cópula não seja a mesma para cada um deles, quer enfim os indivíduos de cada variedade prefiram copular-se entre si.

O cruzamento representa um papel importante em a natureza; graças a ele os tipos ficam puros e uniformes na mesma espécie ou na mesma variedade. A sua acção é mais eficaz nos animais que se copulam para cada fecundação; mas, acabamos de ver que todos os animais e todas as plantas se cruzam de tempos a tempos. Logo que os cruzamentos não tenham lugar senão com longos intervalos, os indivíduos que daí provêm, comparados aos que resultam da fecundação da planta ou do animal por si mesmo, são muito mais vigorosos e muito mais fecundos, e têm, por conseguinte, mais probabilidades de sobreviver e propagar a sua espécie. Por muito raros que sejam certos cruzamentos, a sua influência deve, depois de um longo período, exercer um poderoso efeito sobre os progressos da espécie. Quanto aos seres organizados colocados tão baixo na escala, que se não propagam sexualmente, se não copulam, e nos quais os cruzamentos são impossíveis, a uniformidade dos caracteres só pode conservar-se entre eles, ficando colocados nas mesmas condições de existência, em virtude do princípio da hereditariedade, e devido à selecção natural, cuja acção traz a destruição dos indivíduos que se afastam do tipo ordinário. Se as condições de existência chegam a mudar, se a forma sofre modificações, a selecção natural, conservando variações vantajosas análogas, pode dar sòmente aos descendentes modificados a uniformidade dos caracteres.

O isolamento goza também de um papel importante na modificação das espécies pela selecção natural. Numa região fechada, isolada e pouco extensa, as condições orgânicas e inorgânicas da existência são quase sempre uniformes, de tal modo que a selecção natural tende a modificar da mesma maneira todos os indivíduos variáveis da mesma espécie. Demais, o cruzamento com os habitantes dos distritos vizinhos acha-se impedido. Moritz Wagner publicou ùltimamente, sobre este assunto, uma memória muito interessante; demonstrou que o isolamento, impedindo os cruzamentos entre as variedades novamente formadas, tem provavelmente um efeito mais considerável que eu mesmo não supunha. Mas, pelas razões que já indiquei, não posso, de forma alguma, adoptar a opinião deste naturalista, quando sustenta que a emigração e o isolamento são os elementos necessários à formação de novas espécies. O isolamento goza também um papel muito importante depois de uma alteração física das condições de existência, tal, por exemplo, como modificações de clima, agitação do solo, etc., porque impede a emigração de organismos melhor adaptados a estas novas condições de existência; encontram-se assim, na economia natural da região, novos lugares vagos, que serão preenchidos, em virtude disso, por modificações dos antigos habitantes. Enfim, o isolamento assegura a uma nova variedade todo o tempo que lhe é necessário para se aperfeiçoar lentamente, e é este algumas vezes um ponto importante. Contudo, se a região isolada é muito pequena, ou porque seja cercada de barreiras, ou porque as condições. físicas sejam todas particulares, o número total dos seus habitantes será também muito pouco considerável, o que retarda a acção da selecção natural, no ponto de vista da selecção de novas espécies, porque as probabilidades da aparição de variedades vantajosas são diminutas.

A própria duração do tempo nada pode por si mesma, nem pró nem contra a selecção natural. Enuncio esta regra porque se tem sustentado sem razão que eu ligava ao elemento do tempo um papel preponderante na transformação das espécies, como se todas as formas da vida devessem necessàriamente sofrer modificações em virtude de algumas leis inatas. A duração do tempo é sòmente importante — e nisto não exageraríamos esta importância — porque apresenta mais probabilidade para a aparição de variações vantajosas e lhes permite, depois que fazem o objecto da selecção, acumular-se e fixar-se. A duração do tempo contribui também para aumentar a acção directa das condições físicas da vida na sua relação com a constituição de cada organismo.

Se interrogamos a natureza para lhe pedir a prova das regras que acabamos de formular, e se considerarmos uma pequena região isolada, seja qual for, uma ilha oceânica, por exemplo, posto que o número das espécies que a habitam seja bastante reduzido, como veremos no capítulo sobre a distribuição geográfica — todavia a maior parte destas espécies são endémicas, isto é, foram produzidas neste lugar, e em mais parte nenhuma do mundo. Pareceria então, à primeira vista, que uma ilha oceânica era muito favorável à produção de novas espécies. Mas estamos muito expostos a enganarmo-nos, porque, para determinar se uma pequena região isolada tem sido mais favorável do que uma grande região aberta como um continente, ou reciprocamente, à produção de novas formas orgânicas, seria preciso poder estabelecer uma comparação entre tempos iguais, o que nos é impossível fazer.

O isolamento contribui poderosamente, sem dúvida, para a produção de novas espécies; contudo, estou disposto a acreditar que uma vasta região aberta é mais favorável ainda, quando se trata da produção de espécies capazes de se perpetuar durante longos períodos e adquirir uma grande extensão. Uma vasta região aberta oferece não somente mais probabilidades para que variações vantajosas façam a sua aparição em razão do grande número de indivíduos da mesma espécie que a habitam, mas também em razão de que as condições de vida são muito mais complexas por causa da multiplicidade das espécies já existentes. Ora, se alguma destas numerosas espécies se modifica e se aperfeiçoa, outras devem aperfeiçoar-se também na mesma proporção, senão desapareceriam fatalmente. Demais, cada nova forma, desde que está muito aperfeiçoada, pode espalhar-se numa região aberta e contínua, e encontra-se assim em concorrência com muitas outras formas. As grandes regiões, ainda que hoje contínuas, por certo que já foram, em virtude de antigas oscilações de nível, anteriormente fraccionadas, de tal forma que os bons efeitos do isolamento puderam produzir-se também numa certa medida. Em resumo, concluo que, posto que as pequenas regiões isoladas sejam, sob quaisquer relações, muito favoráveis à produção de novas espécies, as grandes regiões devem, contudo, favorecer as modificações mais rápidas, e, além disso, o que é mais importante, as novas formas produzidas nas grandes regiões, tendo já ganho a vitória sobre numerosos concorrentes, são as que tomam a extensão mais rápida e que produzem um maior número de variedades e espécies novas. São estas que desempenham o papel mais importante na história constantemente variável do mundo organizado.

Este princípio ajuda-nos a compreender, talvez, alguns factos a que teremos de voltar no capítulo sobre a distribuição geográfica; por exemplo, o facto de as produções do pequeno continente australiano desaparecerem actualmente diante das do grande continente euro-asiático. Por isso que também as produções continentais se aclimatam por toda a parte e em tão grande número nas ilhas. Numa pequena ilha, a luta pela existência deve ser menos ardente, e, por conseguinte, as modificações e extinções menos importantes. Isto nos explica por que a flora da Madeira, assim como o faz notar Oswald Heer, se parece, até certo ponto, à flora extinta da época terciária da Europa. A totalidade da superfície de todas as bacias de água doce ocupa sòmente uma pequena extensão comparativamente com a das terras e dos mares. Portanto, a concorrência, nas produções de água doce, deve ser menos viva que em qualquer outra parte; as novas formas devem produzir-se mais lentamente, as antigas formas extinguir-se mais lentamente ainda. Ora, é na água doce que encontramos sete géneros de peixes ganóides, restos de uma ordem outrora preponderante; é igualmente na água doce que encontramos algumas das formas mais anormais. que se conhecem no mundo, o Ornitorrinco e a Lepidossereia, por exemplo, que, como certos animais fósseis, constituem, até certo ponto, uma transição entre as ordens hoje profundamente separadas na escala da natureza. Poderiam chamar-se estas formas anormais verdadeiros fósseis viventes; se se conservaram até à época actual, é porque têm habitado uma região isolada e têm estado expostas a uma concorrência menos variada e, por consequência, menos viva.

Se me fosse preciso resumir em algumas palavras as condições vantajosas ou não à produção de novas espécies pela selecção natural, tanto, todavia, quanto um problema tão complexo o permite, chegaria a concluir que, para as produções terrestres, um grande continente, que sofreu numerosas oscilações de nível, deve ser o mais favorável à produção de numerosos novos seres organizados, capazes de se perpetuarem durante muito tempo e tomar uma grande extensão. Enquanto a região existiu na forma de continente, os habitantes deviam ser numerosos em espécies e em indivíduos, e, por isso, submetidos a uma ardente concorrência. Quando, após os abaixamentos, o continente se subdividiu em numerosas grandes ilhas separadas, cada uma destas ilhas deve ainda conter muitos indivíduos da mesma espécie, de tal sorte que os cruzamentos deviam ter cessado entre as variedades em breve tornadas próprias de cada ilha. Depois das alterações físicas, de qualquer natureza, toda a emigração deve ter cessado, de maneira que os antigos habitantes modificados devem ter ocupado todos os novos lugares na economia natural de cada ilha; enfim, o lapso de tempo decorrido permitiu às variedades, que habitavam cada ilha, modificar-se completamente e aperfeiçoar-se. Quando, após os elevamentos, as ilhas se transformaram de novo num continente, uma luta muito viva deve ter recomeçado; as variedades mais favorecidas ou mais aperfeiçoadas puderam então estender-se; as formas menos aperfeiçoadas foram exterminadas, e o continente restaurado mudou de aspecto com respeito ao número relativo dos habitantes. Aí, enfim, abre-se um novo campo à selecção natural, que tende a aperfeiçoar ainda mais os habitantes e a produzir novas espécies.

Admito completamente que a selecção natural actue de ordinário com extrema lentidão. Não pode mesmo actuar a não ser quando haja, na economia natural de uma região, lugares vagos, que seriam melhor preenchidos se alguns dos habitantes sofressem certas modificações. Estas lacunas apenas se produzem quase sempre após mudanças físicas, que quase sempre se efectuam muito lentamente, e com a condição de alguns obstáculos se oporem à emigração de formas melhor adaptadas. Contudo, à medida que alguns dos antigos habitantes se modificam, as relações mútuas de quase todos os outros se alteram. Isto é o bastante para criar lacunas que formas melhor adaptadas podem preencher; mas é esta uma operação que se faz muito lentamente. Posto que muitos indivíduos da mesma espécie diferem um pouco entre si, é preciso em alguns casos, decorrer muito tempo antes que se produzam variações vantajosas nas diferentes partes da organização; demais, o livre cruzamento atrasa muitas vezes consideravelmente os resultados que poderiam obter-se. Não faltará quem me objecte que estas diversas causas são mais que suficientes para neutralizar a influência da selecção natural. Não o creio. Admito, contudo, que a selecção natural actua apenas muito lentamente, com longos intervalos, e também sòmente sobre alguns habitantes de uma mesma região. Creio, além disso, que estes resultados lentos e intermitentes concordam ainda com o que nos ensina a geologia sobre o desenvolvimento progressivo dos habitantes do mundo.

Por mais lenta que seja a marcha da selecção natural, se o homem, com os seus limitados meios, consegue realizar tantos progressos aplicando a selecção artificial, não posso perceber limite algum na soma de alterações, assim como na beleza e complexidade das adaptações de todos os seres organizados nas suas relações mútuas e com as condições físicas de existência que pode, no decurso das idades, realizar a força selectiva da natureza.

A SELECÇÃO NATURAL TRAZ CERTAS EXTINÇÕES

editar

Direi algumas palavras sobre este assunto, porque se relaciona de perto com a selecção natural, reservando-me para o tratar mais completamente no capítulo relativo à geologia. A selecção natural actua ùnicamente por meio da conservação das variações úteis a certos respeitos, variações que persistem em razão desta mesma utilidade. Devido à progressão geométrica da multiplicação de todos os seres organizados, cada região contém já tantos habitantes quantos pode nutrir; resulta daí que, à medida que as formas favorecidas aumentam em número, as formas menos favorecidas diminuem e tornam-se raras. A geologia ensina-nos que a raridade é o precursor da extinção. É fácil de compreender que uma forma qualquer, tendo apenas alguns representantes, tem grandes probabilidades para desaparecer completamente, quer em razão de alterações consideráveis em a natureza das estações, quer por causa do aumento temporário do número dos inimigos. Podemos, além disso, avançar mais ainda; com efeito, podemos afirmar que as formas mais antigas devem desaparecer à medida que as novas formas se produzem, a não ser que admitamos que o número de formas específicas aumente indefinidamente. Ora, a geologia demonstra-nos claramente que o número de formas específicas não aumenta indefinidamente, e nós tentaremos demonstrar em breve como sucede que o número de espécies se não tornou infinito sobre o globo.

Vimos que as espécies que compreendem o maior número de individuos têm mais probabilidades de produzir, num tempo dado, variações favoráveis. Os factos citados no segundo capitulo fornecem-nos a prova, porque demonstram que são as espécies comuns, espalhadas ou dominantes, como lhes chamámos, que apresentam o maior número de variedades. Resulta daí que as espécies raras se modificam ou se aperfeiçoam menos ràpidamente num tempo dado; por consequência, são vencidas, na luta pela existência, pelos descendentes modificados ou aperfeiçoados das espécies comuns.

Creio que estas diferentes considerações nos conduzem a uma conclusão inevitável; à medida que novas espécies se formam no decorrer dos tempos devido à acção da selecção natural, outras espécies se tornam cada vez mais raras e terminam por extinguir-se. As que sofrem mais, são naturalmente as que se encontram imediatamente em concorrência com as espécies que se modificam e se aperfeiçoam. Ora, vimos, no capítulo que trata da luta pela existência, que são as formas mais próximas — as variedades da mesma espécie e as espécies do mesmo género ou de géneros próximos — que em razão da sua estrutura, constituição e hábitos análogos, lutam de ordinário mais vigorosamente entre si; por conseguinte, cada variedade ou cada espécie nova, enquanto se forma, deve lutar ordinàriamente com mais energia com os seus parentes mais próximos e acabar por destruí-los. Podemos observar, além disso, uma mesma marcha de extermínio nas produções domésticas, em razão da selecção operada pelo homem. Poderiam citar-se muitos exemplos curiosos para provar com que rapidez novas raças de gado, carneiros e outros animais, ou novas variedades de flores tomam o lugar de raças mais antigas e menos aperfeiçoadas. A história ensina-nos que, no Yorkshire, os antigos gados negros foram substituídos por gados de longos chifres, e que estes últimos desapareceram ante os gados de curtos chifres (cito as próprias expressões de um escritor agrícola), como se tivessem sido levados pela peste.

DIVERGÊNCIA DOS CARACTERES

editar

O princípio que designo por este termo tem uma alta importância, e permite, creio eu, explicar muitos factos consideráveis. Em primeiro lugar, as variedades, quando mesmo sejam muitíssimo pronunciadas, e ainda que tenham, sob quaisquer relações, os caracteres de espécies — o que está provado pelas dificuldades que se experimentam, em muitos casos, para as classificar — diferem, contudo, muito menos umas das outras do que as espécies verdadeiras e distintas. Todavia, julgo que as variedades são espécies em via de formação, ou são, como eu lhes tenho chamado, espécies nascentes. Como sucede então que uma leve diferença entre as variedades se amplifique a ponto de tornar-se a grande diferença que observamos entre as espécies? A maior parte das inúmeras espécies que existem na natureza, e que apresentam diferenças muito pronunciadas, prova-nos que o facto é ordinário; ora, as variedades, origem suposta de espécies futuras muito definidas, apresentam ligeiras diferenças e a custo indicadas. O acaso, poderíamos dizer, chegaria a fazer com que uma variedade diferisse, por quaisquer motivos, dos seus descendentes; os descendentes desta variedade poderiam, por seu turno, diferir dos ascendentes pelos mesmos motivos, mas de forma mais acentuada; isto, contudo, não bastaria para explicar as grandes diferenças que existem habitualmente entre as espécies do mesmo género.

Como é meu costume, procurei entre as nossas produções domésticas a explicação deste facto. Ora, observamos nelas qualquer coisa análoga. Admitir-se-á, sem dúvida, que a produção de raças também diferentes, como são os animais de curtos chifres e os animais de Hereford, o cavalo de corrida e o cavalo de tiro, as diferentes raças de pombos, etc., não puderam jamais efectuar-se pela simples acumulação, devida ao acaso, de variações análogas durante numerosas gerações sucessivas. Na prática, um amador observa, por exemplo, um pombo que tem um bico mais curto do que o usual; um outro amador observa um pombo que tem o bico comprido; é em virtude deste axioma que os amadores não admitem um tipo médio, mas preferem os extremos, começam ambos (e é o que aconteceu com as sub-raças do pombo Cambalhota) a procurar e a fazer reproduzir aves que têm um bico mais ou menos longo ou um bico mais ou menos curto. Podemos supor ainda que num antigo período da história, os habitantes de uma nação ou de um distrito tiveram necessidade de cavalos ligeiros, enquanto que os de outro distrito tiveram necessidade de cavalos mais pesados e mais fortes. As primeiras diferenças deviam ser certamente muito pequenas, mas, no decorrer dos tempos, em consequência da selecção contínua de cavalos rápidos num caso e de cavalos vigorosos noutro, as diferenças deviam ter-se acentuado, e não se chegou à formação de duas sub-raças. Enfim, após séculos, estas duas sub-raças converteram-se em duas raças distintas e fixas. A medida que as diferenças se acentuavam, os animais inferiores tendo caracteres intermediários, isto é, os que não eram nem muito rápidos nem muito fortes, nunca deviam ter sido empregados na reprodução, tendendo assim a desaparecer. Vemos pois aqui, nas produções do homem, a acção do que se pode chamar «o princípio da divergência»; em virtude deste princípio, as diferenças, pouco apreciáveis no começo, aumentam continuamente, e as raças tendem a desviar-se cada vez mais umas das outras e da origem comum.

Mas como, dir-se-á, pode aplicar-se em a natureza um princípio análogo? Creio que pode aplicar-se e se aplica da forma mais eficaz (mas devo confessar que me foi necessário muito tempo para compreender como), em razão desta simples circunstância de que quanto mais os descendentes de uma espécie qualquer se tornarem diferentes em relação à estrutura, constituição e hábitos, tanto mais estarão no caso de se apoderarem de lugares numerosos e muito diferentes na economia da natureza, e por consequência aumentar um número.

Podemos claramente distinguir este facto entre os animais que têm hábitos simples. Tomemos, por exemplo, um quadrúpede carnívoro e admitamos que o número destes animais atingiu, há muito tempo, o máximo do que pode nutrir um país qualquer. Se a tendência natural deste quadrúpede a multiplicar-se continua a actuar, e as condições actuais do país que habita não sofreram modificação alguma, só pode chegar a crescer em número com a condição de os seus descendentes variáveis se apoderarem de lugares presentemente ocupados por outros animais: uns, por exemplo, tornando-se capazes de se alimentarem de novas espécies de presas mortas ou vivas; outros, habitando novas estações, subindo às árvores, tornando-se aquáticos; outros, enfim, talvez, tornando-se menos carnívoros. Quanto mais os descendentes deste animal carnívoro se modificam relativamente aos hábitos e estrutura, tanto mais podem ocupar lugares em a natureza. O que se aplica a um animal, aplica-se a todos os outros e em todos os tempos, com a condição, contudo, de serem susceptíveis de variações, porque de outra forma a selecção natural nada pode. O mesmo sucede com as plantas. Prova-se pela experiência que, se se semeia num canteiro uma só espécie de gramíneas, e num canteiro semelhante muitos géneros distintos de gramíneas, criam-se neste segundo canteiro mais plantas e recolhe-se um peso mais considerável de ervas secas que no primeiro. Esta mesma lei aplica-se também quando se semeia, em espaços semelhantes, quer uma só variedade de trigo, quer muitas variedades misturadas. Por consequência, se uma espécie qualquer de gramíneas varia e se se escolhessem continuamente variedades que diferissem entre si da mesma maneira, ainda que num grau pouco considerável, como o fazem aliás as espécies distintas e os géneros das gramíneas, um maior número de plantas individuais desta espécie, incluídos os descendentes modificados, conseguiriam viver no mesmo terreno. Ora, sabemos que cada espécie e cada variedade de gramíneas espalha sobre o solo anualmente sementes inúmeras, e que cada uma delas, poderia dizer-se, emprega todos os esforços para aumentar em número. Por isso, no decurso de muitos milhares de gerações, as variedades mais distintas de uma espécie qualquer de gramíneas teriam a maior probabilidade de vencer, aumentar em número e suplantar assim as variedades menos distintas; ora, quando as variedades se tornam muito distintas umas das outras, consideram-se como espécies.

Muitas circunstâncias naturais nos demonstram a veracidade do princípio, que uma grande diversidade de estrutura pode sustentar a maior soma de vida. Observamos sempre uma grande diversidade entre os habitantes de uma pequena região, sobretudo se esta região está livremente aberta à emigração, onde, por conseguinte, a luta entre indivíduos deve ser muito viva. Observei, por exemplo, que uma relva, tendo uma superfície de 3 pés por 4, colocada, há muitos anos, absolutamente nas mesmas condições, contém 20 espécies de plantas pertencentes a 18 géneros e a 8 ordens, o que prova quanto estas plantas diferiam umas das outras. O mesmo acontece com as plantas. e com os insectos que habitam pequenas ilhotas uniformes, ou então pequenos lagos de água doce. Os rendeiros acharam que obtinham melhores colheitas estabelecendo uma rotação de plantas pertencentes às ordens mais diferentes; ora, a natureza segue o que poderia chamar-se uma «rotação simultânea». A maior parte dos animais e das plantas que vivem perto de um pequeno terreno, qualquer que ele seja, poderiam viver neste terreno, supondo, contudo, que a sua natureza não oferece particularidade alguma extraordinária; poder-se-ia mesmo dizer que empregam todos os esforços para aí se sustentar, mas vê-se que, quando a luta se torna muito viva, as vantagens que resultam da diversidade de estrutura assim como as diferenças de hábito e de constituição que são disso a consequência, fazem que os habitantes que se aproximam de mais perto pertençam em regra geral ao que chamamos géneros e ordens diferentes. A aclimatação das plantas nos países estranhos, produzida por intermédio do homem, fornece uma nova prova do mesmo princípio. Deveria atender-se a que todas as plantas que chegaram a aclimatar-se num país qualquer foram ordinàriamente muito próximas das plantas indígenas; não se pensa ordinàriamente, com efeito, que estas últimas foram criadas especialmente para o país que habitam e adaptadas às suas condições? Poder-se-ia também atender, talvez, a que as plantas aclimatadas pertenciam a quaisquer grupos mais especialmente adaptados a certos pontos da sua nova pátria. Ora, o caso é muito diferente, e Alphonse Candolle fez observar com razão, na sua grande e admirável obra, que as floras, em seguida à sua aclimatação, aumentam muito mais em novos géneros que em novas espécies, proporcionalmente ao número de géneros e de espécies indígenas. Para dar um só exemplo, na última edição do Manual da Flora da parte Setentrional dos Estados Unidos, pelo Dr. Asa Gray, o autor indica 260 plantas aclimatadas, que pertencem a 162 géneros. Isto basta para provar que estas plantas aclimatadas têm uma natureza muito diversa. Elas diferem, além disso, extraordinàriamente das plantas indígenas; porque, nestes 162 géneros aclimatados, não há menos de 100 que não sejam indígenas dos Estados Unidos; uma adição proporcional considerável foi então feita aos géneros que habitam hoje este país.

Se considerarmos a natureza das plantas ou dos animais que, num país qualquer, têm lutado com vantagem com os habitantes indígenas e são assim aclimatados, podemos fazer uma ideia da forma como os habitantes indígenas deveriam modificar-se para prevalecer sobre os seus compatriotas. Podemos, pelo menos, concluir que a diversidade de estrutura, chegada ao ponto de constituir novas diferenças genéricas, lhes seria de um grande proveito.

As vantagens da diversidade de estrutura entre os habitantes da mesma região são análogas, numa palavra, às que apresenta a divisão fisiológica do trabalho nos órgãos do mesmo individuo, assunto tão admiràvelmente elucidado por Milne Edwards. Nenhum fisiólogo põe em dúvida que um estômago construído para digerir sòmente matérias vegetais, ou sòmente matérias animais, tire destas substâncias a maior soma de nutrição. Da mesma forma, na economia geral de um país qualquer, quanto mais as plantas e os animais oferecerem diversidades nítidas apropriando-as a diferentes modos de existência, tanto mais considerável é o número de indivíduos capazes de habitar este país. Um grupo de animais cujo organismo apresenta poucas diferenças pode dificilmente lutar com um grupo cujas diferenças são mais acentuadas. Poderia duvidar-se, por exemplo, que os marsupiais australianos, divididos em grupos que diferissem muito pouco uns dos outros, e que representam frouxamente, como M. Waterhouse e alguns outros o fizeram notar, os nossos carnívoros, os nossos ruminantes e os nossos roedores, pudessem lutar com êxito contra estas ordens tão bem desenvolvidas. Entre os mamíferos australianos podemos então observar a diversificação das espécies num estado incompleto de desenvolvimento.

EFEITOS PROVÁVEIS DA ACÇÃO DA SELECÇÃO NATURAL, EM SEGUIDA A DIVERGÊNCIA DOS CARACTERES E A EXTINÇÃO, SOBRE OS DESCENDENTES DE UM ANTEPASSADO COMUM

editar

Depois da discussão que precede, ainda que resumida seja, podemos concluir que os descendentes modificados de uma espécie qualquer se desenvolvam tanto melhor quanto a sua estrutura é mais diversificada e podem assim apoderar-se de lugares ocupados por outros seres. Examinemos agora como estas vantagens resultantes da divergência dos caracteres tendem a actuar, quando se combinam com a selecção natural e com a extinção.

O diagrama atrás pode auxiliar-nos a compreender este assunto bastante complicado. Suponhamos que as letras A a L representam as espécies de um género rico no país que habita; suponhamos, além disso, que estas espécies se assemelham, em graus desiguais, como acontece ordinàriamente em a natureza; é isto que indicam, no diagrama, as distâncias desiguais que separam as letras. Disse um género rico, porque, como vimos no segundo capítulo, mais espécies variam em média num género rico do que num género pobre, e que as espécies variáveis dos géneros ricos apresentam um maior número de variedades. Vimos também que as espécies mais comuns e as mais espalhadas variam mais do que as espécies raras cujo habitat é restrito. Suponhamos que A representa uma espécie variável comum muito espalhada, pertencendo a um género rico no seu próprio país. As linhas pontuadas divergentes, de comprimento desigual, partindo de A, podem representar os seus descendentes variáveis. Supõe-se que as variações são muito pequenas e da mais diversa natureza; que não aparecem simultâneamente, mas muitas vezes após longos intervalos de tempo, e que não persistem também durante períodos iguais. Só as variações vantajosas persistem, ou, por outros termos, fazem o objecto da selecção natural. É então que se manifesta a importância do princípio das vantagens que resultam da divergência dos caracteres; porque este princípio determina ordinàriamente as variações mais divergentes e mais diversas (representadas por linhas pontuadas exteriores), que a selecção natural fixa e acumula. Quando uma linha pontuada atinge uma das linhas horizontais e o ponto de contacto é indicado por uma letra minúscula, acompanhada de um número, supõe-se que se acumulou uma quantidade suficiente de variações para formar uma variedade bem definida, isto é, tal como se julgaria dever indicar numa obra sobre a zoologia sistemática.

Cada um dos intervalos entre as linhas horizontais do diagrama podem representar mil gerações ou mais. Suponhamos. que após mil gerações a espécie A produziu duas variedades bem definidas, isto é, a1 e m. Estas duas variedades encontram-se geralmente colocadas em condições análogas àquelas que determinaram variações nos seus antepassados, tanto quanto a variabilidade seja por si mesmo hereditária; por consequência, tendem também a variar, e ordinàriamente do mesmo modo que os seus antepassados. Demais, estas duas variedades, sendo apenas formas levemente modificadas, tendem a herdar vantagens que tornaram o seu protótipo A mais numeroso do que a maior parte dos outros habitantes do mesmo país; participam também das vantagens mais gerais que tornaram o género a que pertencem os seus antepassados um género rico no seu próprio país. Ora, todas estas circunstâncias são favoráveis à produção de novas variedades.

Se estas duas variedades são variáveis, as suas variações mais divergentes persistirão ordinàriamente durante as mil gerações seguintes. Após este intervalo, pode supor-se que a variedade a produziu a variedade a2, a qual, graças ao princípio da divergência, difere mais de A do que a variedade a1. Pode-se supor também que a variedade m1 produziu, no fim do mesmo lapso de tempo, duas variedades: m2 e s2, diferindo uma da outra, e diferindo mais ainda da origem comum A. Poderíamos continuar a seguir estas variedades passo a passo durante um período qualquer. Algumas variedades, após cada série de mil gerações, terão produzido uma só variedade, mas sempre mais modificada; outras produzirão duas ou três variedades; outras, enfim, nada produzirão. Assim, as variedades, ou os descendentes modificados da origem comum A, aumentam ordinàriamente em número revestindo caracteres cada vez mais divergentes. O diagrama representa esta série até à décima milésima geração, e, sob forma simples e resumida, até à décima milésima quarta.

Não pretendo dizer, claro está, que esta série seja tão regular como o é no diagrama, posto que tenha sido representada de forma bastante irregular; não pretendo dizer também que estes progressos sejam incessantes; é muito mais provável, pelo contrário, que cada forma persista sem alteração durante longos períodos, pois que é de novo submetida a modificações. Não pretendo dizer tão-pouco que as variedades as mais divergentes persistam sempre; uma forma média pode persistir durante muito tempo e pode, ou não, produzir mais do que um descendente modificado. A selecção natural, com efeito, actua sempre em razão dos lugares vagos, ou daqueles que não estão perfeitamente ocupados por outros seres, e isto envolve relações infinitamente complexas. Mas, em regra geral, quanto mais os descendentes de uma espécie qualquer se modificam com relação à conformação, tanto mais probabilidades têm de se apoderar dos lugares e tanto mais a sua descendência modificada tende a aumentar. No nosso diagrama, a linha de descendência é interrompida em intervalos regulares por letras minúsculas com números, indicando as formas sucessivas que se tornaram suficientemente distintas para que se reconheçam como variedades; diga-se de passagem que estes pontos são imaginários e que poderiam ter-se colocado não importa aonde, deixando intervalos assaz longos para permitir a acumulação de uma soma considerável de variações divergentes.

Como todos os descendentes modificados de uma espécie comum e muito espalhada, pertencendo a um género rico, tendem a participar das vantagens que deram ao antepassado a preponderância na luta pela existência, multiplicam-se ordinàriamente em número, ao mesmo tempo que os seus caracteres se tornam mais divergentes; este facto é representado no diagrama por diferentes ramos divergentes que partem de A. Os descendentes modificados dos ramos mais recentes e mais aperfeiçoados tendem a tomar o lugar dos ramos mais antigos e menos aperfeiçoados, e por isso a eliminá-los; os ramos inferiores do diagrama, que não chegam até às linhas horizontais superiores, indicam este facto. Em qualquer caso, sem dúvida, as modificações produzem-se numa só linha de descendência, e o número de descendentes modificados não se aumenta, posto que a soma das modificações divergentes tenha aumentado. Este caso seria representado no diagrama se todas as linhas partindo de A fossem levantadas, à excepção das que partissem de a1 até a10. O cavalo de corrida inglês, e o cão de caça inglês evidentemente divergem lentamente da sua origem primitiva da forma que acabamos de indicar, sem que algum deles produzisse ramos ou novas raças.

Suponhamos que, após dez mil gerações, a espécie A tenha produzido três formas: a10, f10 e m10, que, divergindo em caracteres durante gerações sucessivas, chegaram a diferir grandemente, mas talvez desigualmente umas das outras e da origem comum. Se supusermos que a soma das alterações entre cada linha horizontal do diagrama é excessivamente pequena, estas três formas serão apenas variedades bem definidas; mas temos sòmente que supor um maior número de gerações, ou uma modificação um pouco mais considerável em cada grau, para converter estas três formas em espécies duvidosas, ou em espécies bem definidas. O diagrama indica pois os graus por meio dos quais as pequenas diferenças, separando as variedades, se acumulam a ponto de formar as grandes diferenças que separam as espécies. Continuando a mesma marcha durante um maior número de gerações, o que indica o diagrama sob uma forma condensada e simplificada, obtemos oito espécies, a14 a m14, descendentes todas de A. É assim, creio eu, que as espécies se multiplicam e que os géneros se formam.

É provável que, num género rico, mais de uma espécie deva variar. Supus, no diagrama, que uma segunda espécie produziu, por uma marcha análoga, após dez mil gerações, quer duas variedades bem definidas, w10 e z10, quer duas espécies, segundo a soma de alterações que representem as linhas horizontais. Depois de catorze mil gerações, supõe-se que seis novas espécies, n14 a z14 foram produzidas. Num género qualquer, as espécies que já diferem muito umas das outras tendem ordinàriamente a produzir o maior número de descendentes modificados, porque são eles que têm mais probabilidades de se apoderar de novos lugares e muito diferentes na economia da natureza. Também escolhi no diagrama a espécie extrema A e uma outra espécie quase extrema I, como as que têm variado muito, e que têm produzido novas variedades e novas espécies. As outras nove espécies do nosso género primitivo, indicadas pelas letras maiúsculas, podem continuar, durante períodos mais ou menos longos, a transmitir aos descendentes os caracteres não modificados; isto é indicado no diagrama por linhas pontuadas que se prolongam mais ou menos longe.

Mas, durante a marcha das modificações, representadas no diagrama, um outro dos nossos princípios, o da extinção, deve ter gozado um papel importante. Como, em cada país bem provido de habitantes, a selecção natural actua necessàriamente, dando a uma forma, que faz o objecto da sua acção, algumas vantagens sobre outras formas na luta pela existência, produz-se uma tendência constante entre os descendentes aperfeiçoados de uma espécie qualquer para suplantar e exterminar os seus predecessores e a sua origem primitiva. É preciso lembrar, com efeito, que a luta mais viva se produz ordinàriamente entre as formas que estão mais próximas umas das outras, em relação aos hábitos, constituição e estrutura. Por consequência, todas as formas intermediárias entre a forma mais antiga e a forma mais moderna, isto é, entre as formas mais ou menos aperfeiçoadas da mesma espécie, assim como a espécie origem própria, tendem ordinàriamente a extinguir-se. É provavelmente da mesma maneira para muitas das linhas colaterais completas, vencidas por formas mais recentes e mais aperfeiçoadas. Se, contudo, o descendente modificado de uma espécie penetra em qualquer região distinta, ou se adapta ràpidamente a qualquer região absolutamente nova, não se encontra em concorrência com o tipo primitivo e ambos podem continuar a existir.

Se se supuser, pois, que o nosso diagrama representa uma soma considerável de modificações, a espécie A e todas as primeiras variedades que produziu, terão sido eliminadas e espalhadas por oito novas espécies, a14 a m14; e a espécie I por seis novas espécies, n14 a z14.

Mas podemos ir mais longe ainda. Supusemos que as espécies primitivas do género de que nos ocupamos se assemelham entre si mas em graus desiguais; é o que se apresenta muitas vezes em a natureza. A espécie A está então mais próxima das espécies B, C, D do que das outras espécies, e a espécie I está mais próxima das espécies G, H, K, L do que das primeiras. Supusemos também que estas duas espécies, A e I são muito comuns e muito espalhadas, de tal maneira que deviam, no princípio, possuir algumas vantagens sobre a maior parte das outras espécies pertencentes ao mesmo género. As espécies representativas, em número de catorze para a décima quarta geração, têm provavelmente herdado algumas destas vantagens; e são, além disso, modificadas, aperfeiçoadas de diversas maneiras, em cada geração sucessiva, de forma a melhor adaptar-se aos numerosos lugares vagos na economia natural do país que habitam. É pois muito provável que tenham exterminado, para substituí-los, não somente os representantes não modificados das origens mães A e I, mas também algumas espécies primitivas mais próximas destas origens. Por consequência, devem ficar na décima quarta geração muito poucos descendentes das espécies primitivas. Podemos supor que uma espécie sòmente, a espécie F, sobre as duas espécies E e F, as menos próximas das duas espécies primitivas A e I, pode ter tido descendentes até esta última geração.

Assim como o indica o nosso diagrama, as onze espécies primitivas são daqui em diante representadas por quinze espécies. Em razão da tendência divergente da selecção natural, o valor da diferença dos caracteres entre as espécies a14 e z14 deve ser muito mais considerável que a diferença que existia entre os indivíduos mais distintos das onze espécies primitivas. Demais, as novas espécies estão aliadas entre si de uma maneira muito diferente. Nos oito descendentes de A, os indicados pelas letras a14, q14 e p14, são muito próximos porque são ramos recentes de a10; b14 e f14, tendo divergido num período muito mais antigo de a3, são, até certo ponto, distintos destas três primeiras espécies; e enfim o14, e14 e m14 são muito próximas umas das outras; mas, como divergem de A no começo mesmo desta série de modificações, estas espécies devem ser bastante diferentes das outras cinco, para constituir sem dúvida um subgénero ou um género distinto.

Os seis descendentes de I formam dois subgéneros ou dois géneros distintos. Mas como a espécie primitiva I diferia muito de A, porque se encontrava quase na outra extremidade do género primitivo, as seis espécies descendentes de I, devido apenas à hereditariedade, devem diferir consideravelmente das oito espécies descendentes de A; demais, supusemos que os dois grupos têm continuado a divergir em direcções diferentes. As espécies intermediárias, e é isto uma consideração muito importante, que ligam as espécies originais A e I, foram todas extintas, à excepção de F, única que deixou descendentes. Portanto, as seis novas espécies descendentes de I, e as oito espécies descendentes de A, deverão ser classificadas como géneros muito distintos, ou mesmo como subfamílias distintas.

É assim, creio eu, que dois ou muitos géneros derivam, após modificações, de duas ou de muitas espécies de um mesmo género. Estas duas ou muitas espécies origens derivam também, por seu turno, de qualquer espécie de um género anterior. Isto está indicado, no nosso diagrama, por linhas pontuadas colocadas por baixo das letras maiúsculas, linhas convergindo em grupo para um só ponto. Este ponto representa uma espécie, o suposto predecessor dos nossos subgéneros e dos nossos géneros. É útil parar um instante a considerar o carácter da nova espécie F14, que, temo-lo suposto, não divergiu muito, mas conservou a forma de F, quer com algumas pequenas modificações, quer sem qualquer alteração. As afinidades desta espécie com as outras catorze novas espécies devem ser necessàriamente muito curiosas. Derivada de uma forma situada pouco mais ou menos a igual distância entre as espécies origens A e I, que supomos extintas e desconhecidas, deve apresentar, até certo ponto, um carácter intermediário entre o dos dois grupos descendentes da mesma espécie. Mas, como o carácter destes dois grupos é continuamente desviado do tipo origem, a nova espécie F14 não constitui um intermediário imediato entre eles; constitui, contudo, um intermediário entre os tipos dos dois grupos. Ora, cada naturalista pode lembrar, sem dúvida, casos análogos.

Supusemos, até ao presente, que cada linha horizontal do diagrama representava mil gerações; mas cada uma poderia representar um milhão de gerações, ou mesmo mais; cada uma poderia mesmo representar uma das camadas sucessivas da crusta terrestre, na qual se encontram os fósseis. Tornaremos a insistir neste ponto, no nosso capítulo sobre a geologia, e veremos então, creio eu, que o diagrama lança alguma luz sobre as afinidades dos seres extintos. Estes seres, posto que pertençam ordinàriamente às mesmas ordens, às mesmas famílias ou aos mesmos géneros que os que existem hoje, apresentam muitas vezes contudo, numa certa medida, caracteres intermediários entre os grupos actuais; podemos compreender isto tanto melhor que as espécies existentes vivíam em diferentes épocas afastadas, quando as linhas de descendência tinham divergido menos.

Não vejo razão alguma que obrigue a limitar apenas à formação dos géneros a série de modificações que acabamos de indicar. Se supusermos que, no diagrama, a soma das alterações representada por cada grupo sucessivo de linhas pontuadas divergentes é muito grande, as formas a14 a p14, b14 e f14, o14 a m14 formarão três géneros muito distintos. Teremos também dois géneros muito distintos descendendo de I e diferindo muito consideravelmente dos descendentes de A. Estes dois grupos de géneros formarão assim duas famílias ou duas ordens distintas, segundo a soma das modificações divergentes que se supõe representada pelo diagrama. Ora, as duas novas famílias ou as duas novas ordens, descendem de duas espécies pertencendo a um mesmo género primitivo, e pode supor-se que estas espécies descendem de formas ainda mais antigas e mais desconhecidas.

Temos visto que, em cada país, são as espécies pertencentes aos géneros mais ricos que apresentam as mais das vezes variedades ou espécies nascentes. Poder-se-ia parar aqui; com efeito, a selecção natural actuando sòmente sobre os indivíduos ou sobre as formas que, devido a certas qualidades, sobrepujam as outras na luta pela existência, exerce principalmente a sua acção sobre os que possuem já certas vantagens; ora, a extensão de um grupo qualquer prova que as espécies que o compõem herdaram algumas qualidades possuídas por um antepassado comum. Também a luta para a produção de descendentes novos e modificados se estabelece principalmente entre os grupos mais ricos que tentam multiplicar-se. Um grupo numeroso prevalece sobre um outro grupo considerável, redu-lo em número e diminui assim as suas probabilidades de variação e aperfeiçoamento. Num mesmo grupo considerável, os subgrupos mais recentes e mais aperfeiçoados, aumentando sem cessar, apoderando-se a cada instante de novos lugares na economia da natureza, tendem constantemente também a suplantar e destruir os subgrupos mais antigos e menos aperfeiçoados. Enfim, os grupos e os subgrupos pouco numerosos e vencidos acabam por desaparecer.

Se lançarmos os olhos para o futuro, podemos predizer que os grupos de seres organizados que são hoje ricos e dominantes, que não estão ainda rompidos, isto é, que não sofreram ainda a menor extinção, devem continuar a aumentar em número durante longos períodos. Mas que grupos acabarão por prevalecer? É o que ninguém pode prever, porque sabemos que muitos grupos, outrora desenvolvidíssimos, são hoje extintos. Se nos ocuparmos de um futuro ainda mais remoto, prediremos que, por causa do aumento contínuo e regular dos maiores grupos, um conjunto de pequenos grupos deve desaparecer completamente sem deixar descendentes modificados, e que, por conseguinte, muito poucas espécies vivendo numa época qualquer devem ter descendentes depois de um lapso de tempo considerável. Terei de voltar a este ponto no capítulo sobre a classificação; mas posso ajuntar que, segundo a nossa teoria, poucas espécies muito antigas devem ter representantes na época actual; ora, como todos os descendentes da mesma espécie formam uma classe, é fácil de compreender como se faz que haja tão poucas classes em cada divisão principal dos reinos animal e vegetal. Posto que poucas das mais antigas espécies tenham deixado descendentes modificados, todavia, em antigos períodos geológicos, a Terra pode ter sido quase tão povoada como é hoje de espécies pertencendo a muitos géneros, famílias, ordens e classes.

DO PROGRESSO POSSÍVEL DA ORGANIZAÇÃO

editar

A selecção natural actua exclusivamente no meio da conservação e acumulação das variações que são úteis a cada indivíduo nas condições orgânicas e inorgânicas em que pode encontrar-se colocado em todos os períodos da vida. Cada ser, e é este o ponto final do progresso, tende a aperfeiçoar-se cada vez mais relativamente a estas condições. Este aperfeiçoamento conduz inevitávelmente ao progresso gradual da organização do maior número de seres vivos em todo o mundo. Mas referimo-nos aqui a um assunto muito complicado, porque os naturalistas ainda não definiram, de uma forma satisfatória para todos, o que deve compreender-se por «um progresso de organização». Para os vertebrados, trata-se claramente de um progresso intelectual e de uma conformação que se aproxime da do homem. Poder-se-ia pensar que a soma das alterações que se produzem nas diferentes partes e nos diferentes órgãos, por meio de desenvolvimentos sucessivos desde o embrião até à maternidade, basta como termo de comparação; mas há casos, certos crustáceos parasitas por exemplo, nos quais muitas partes da conformação se tornam menos perfeitas, de tal forma que o animal adulto não é certamente superior à larva. O critérium de von Baer parece o mais geralmente aplicável e o melhor, isto é, a extensão da diferenciação das partes do mesmo ser e a especialização destas partes para diferentes funções, ao que juntarei: no estado adulto; ou, como o diria Milne Edwards, o aperfeiçoamento da divisão do trabalho fisiológico. Mas compreendemos bem depressa que obscuridade existe neste assunto, se estudarmos, por exemplo, os peixes. Com efeito, certos naturalistas consideram como os mais elevados na escala os que, como o tubarão, se aproximam mais dos anfíbios, enquanto que outros naturalistas consideram como mais elevados os peixes ósseos ou teleósteos, porque são realmente mais pisciformes e diferem mais das outras classes dos vertebrados. A obscuridade do assunto fere-nos mais ainda se estudarmos as plantas, para as quais, bem entendido, o critérium da inteligência não existe; em verdade, alguns botânicos dispõem entre as plantas mais elevadas aquelas que apresentam em cada flor, no estado completo de desenvolvimento, todos os órgãos, tais como: sépalas, pétalas, estames e pistilos, enquanto que outros botânicos, provavelmente com mais razão, concedem o primeiro grau às plantas cujos diversos órgãos são muito modificados e em número reduzido.

Se adoptamos, como critérium de uma alta organização, a soma das diferenciações e de especializações dos diversos órgãos em cada indivíduo adulto, o que compreende o aperfeiçoamento intelectual do cérebro, a selecção natural conduz claramente a esse fim. Todos os fisiólogos, com efeito, admitem que a especialização dos órgãos é uma vantagem para o indivíduo, no sentido de que, neste estado, os órgãos executam melhor as suas funções; por consequência, a acumulação das variações tendentes à especialização, entra na alçada da selecção natural. Por outro lado, se se pensar que todos os seres organizados tendem a multiplicar-se ràpidamente e a apoderar-se de todos os lugares desocupados, ou pouco ocupados na economia da natureza, é fácil compreender que é muito possível que a selecção natural prepare gradualmente um indivíduo para uma situação na qual muitos órgãos lhe serão supérfluos e inúteis; neste caso, haveria uma retrogradação real na escala da organização. Discutiremos com mais proficiência, no capítulo sobre a sucessão geológica, a questão de saber se, em regra geral, a organização tem feito progressos seguros desde os períodos geológicos mais remotos até nossos dias.

Mas, poder-se-á dizer, se todos os seres organizados tendem a elevar-se na escala, como sucede que uma multidão de formas inferiores exista ainda no mundo? Como sucede que haja, em cada grande classe, formas muito mais desenvolvidas do que algumas outras? Porque é que as formas mais aperfeiçoadas não têm por toda a parte suplantado e exterminado as formas inferiores? Lamarck, que acreditava em uma tendência inata e fatal de todos os seres organizados para a perfeição, parece ter pressentido também esta dificuldade, que o levou a supor que as formas simples e novas são constantemente produzidas pela geração espontânea. A ciência não provou ainda o bom fundamento desta doutrina, posto que possa, além disso, revelar-no-lo no futuro. Pela nossa teoria, a existência persistente dos organismos inferiores não oferece dificuldade alguma; com efeito, a selecção natural, ou a persistência do mais apto, não obriga necessàriamente a um desenvolvimento progressivo, apodera-se ùnicamente das variações que se apresentam e que são úteis a cada indivíduo nas relações complexas da sua existência. E, poderia dizer-se, que vantagem haveria, tanto quanto o podemos avaliar, para um animálculo infusório, para um verme intestinal, ou mesmo para uma minhoca em adquirir uma organização superior? Se esta vantagem não existe, a selecção natural melhora apenas muito pouco estas formas, e deixa-as, durante períodos infinitos, nas suas condições inferiores actuais. Ora, a geologia ensina-nos que algumas formas muito inferiores, como os infusórios e os rizópodes, conservam o seu estado actual desde um período imenso. Mas seria muito temerário supor que a maior parte das numerosas formas inferiores existentes hoje não fizeram progresso algum desde a aparição da vida sobre a Terra; com efeito, todos os naturalistas que dissecaram alguns destes seres, e estão de acordo em colocá-los na mais baixa escala, devem ter-se impressionado pela sua organização tão admirável e tão bela.

As mesmas observações se podem aplicar também, se examinarmos os mesmos graus de organização, em cada um dos grandes grupos; por exemplo, a coexistência dos mamíferos e dos peixes com os vertebrados, a do homem e do ornitorrinco com os mamíferos, a do tubarão e do branquióstomo (Amphioxus) com os peixes. Este último peixe, pela extrema simplicidade da sua conformação, aproxima-se muito dos invertebrados. Mas os mamíferos e os peixes não entram em luta uns com os outros; os progressos de toda a classe dos mamíferos ou de certos indivíduos desta classe, admitindo mesmo que estes progressos os conduzem à perfeição, não os levariam a tomar o lugar dos peixes. Os fisiólogos crêem que, para adquirir toda a actividade de que é susceptível, o cérebro deve ser banhado de sangue quente, o que exige uma respiração aérea. Os mamíferos de sangue quente encontram-se pois colocados numa posição muito desvantajosa quando habitam na água; com efeito, são obrigados a subir continuamente à superfície para respirar. Nos peixes, os membros da família do tubarão não tendem a suplantar o branquióstomo, porque este último, segundo Fritz Müller, tem por único companheiro e único concorrente, sobre as costas arenosas e estéreis do Brasil meridional, um anelídeo anormal. As três ordens inferiores de mamíferos, isto é, os marsupiais, os desdentados e os roedores, habitam, na América meridional, a mesma região de numerosas espécies de macacos, e, provavelmente, importam-se muito pouco uns com os outros. Posto que a organização possa, em suma, ter progredido, e progrida ainda em todo o mundo, haverá contudo sempre muitos graus de perfeição; de facto, o aperfeiçoamento de muitas classes inteiras, ou de certos indivíduos de cada classe, não conduz necessàriamente à extinção dos grupos com que se não encontra em concorrência activa. Em alguns casos, como em breve veremos, os organismos inferiores parecem ter persistido até à época actual, porque habitam regiões restritas e fechadas, onde estão submetidos a uma concorrência menos activa, e onde o seu pequeno número retarda a produção de variações favoráveis.

Enfim, creio que muitos organismos inferiores existem ainda no mundo em razão de causas diversas. Casos há em que variações, ou diferenças individuais de uma natureza vantajosa, jamais se apresentam, e, por consequência, a selecção natural não pode nem actuar nem acumulá-las. Em caso algum, provàvelmente, decorreu tempo suficiente para permitir todo o desenvolvimento possível. Em alguns casos, houve, decerto, o que nós devemos designar por retrogradação de organização. Mas a causa principal reside neste facto de, sendo dadas condições de existência muito simples, uma alta organização tornar-se inútil, talvez mesmo desvantajosa, porque sendo de uma natureza mais delicada, degeneraria mais fàcilmente, e seria mais fàcilmente destruída.

Pergunta-se como, aquando da primeira aparição da vida, quando todos os seres organizados, podemos crer, apresentaram uma conformação mais simples, puderam produzir-se os primeiros graus do progresso ou da diferenciação das partes. M. Herbert Spencer responderia provavelmente que, desde que um organismo unicelular simples se torna, pelo crescimento ou pela divisão, um composto de muitas células, ou se está fixo a algumas superfícies de apoio, a lei que estabeleceu entra em acção e exprime assim esta lei: «As unidades homólogas de toda a força diferenciam-se à medida que as suas relações com as forças incidentes são diversas». Mas, como não conhecemos facto algum que nos possa servir de ponto de comparação, toda a especulação sobre este assunto seria quase inútil. É, contudo, um erro supor que não tenha havido luta pela existência, e, por conseguinte, selecção natural, até que muitas formas fossem produzidas; podem produzir-se variações vantajosas numa única espécie, habitando uma estação isolada, e toda a massa dos indivíduos pode também, por consequência, modificar-se, e produzirem-se duas formas distintas. Mas, como já lembrei no fim da introdução, ninguém deve esquecer-se de que ficam ainda tantos pontos inexplicados sobre a origem das espécies, se meditarmos na profunda ignorância em que estamos sobre as relações mútuas dos habitantes do mundo na nossa época, e muito mais ainda durante períodos afastados.

CONVERGÊNCIA DOS CARACTERES

editar

M. H. C. Watson julga que atribuo demasiada importância à divergência dos caracteres (de que me parece, além disso, admitir a importância) e que o que pode chamar-se a sua convergência deve igualmente desempenhar qualquer papel. Se duas espécies, pertencendo a dois géneros distintos, ainda que próximos, têm produzido um grande número de formas novas e divergentes, é compreensível que estas formas possam aproximar-se bastante umas das outras para que devam colocar-se todas as classes no mesmo género; por isso, os descendentes de dois géneros distintos convergiriam em um só. Mas, na maior parte dos casos, seria muito temerário atribuir à convergência uma analogia íntima e geral de conformação entre os descendentes modificados de formas muito distintas. As forças moleculares determinam sòmente a forma de um cristal; e não é para surpreender que substâncias diferentes possam muitas vezes revestir a mesma forma. Mas devemos lembrar-nos, que, entre os seres organizados, a forma de cada um deles depende de uma infinidade de relações complexas; as variações que se manifestam, devidas a causas muito inexplicáveis para que se possam analisar — a natureza das variações que tem persistido ou feito o objecto da selecção natural, as quais dependem das condições físicas ambientes, e, em alto grau ainda, dos organismos circunvizinhos com os quais cada indivíduo entra em concorrência — e, enfim, a hereditariedade (elemento flutuante em si) de inumeráveis antepassados cujas formas foram determinadas por meio de relações igualmente complexas. Seria inacreditável que os descendentes de dois organismos que, na origem, diferiam de uma maneira pronunciada, tivessem jamais convergido depois suficientemente para que a sua organização total se aproxime da identidade. Se assim fosse, encontraríamos a mesma forma, independentemente de toda a conexão genésica, nas formações geológicas muito separadas; ora, o estudo dos factos observados opõe-se a uma semelhante consequência.

M. Watson objecta também que a acção contínua da selecção natural, acompanhada da divergência dos caracteres, tenderia à produção de um número infinito de formas específicas. Parece provável, no que diz respeito pelo menos às condições físicas, que um número suficiente de espécies se adaptaria em breve a todas as diferenças de calor, de humidade, etc., por mais consideráveis que sejam estas diferenças; mas admito completamente que as relações recíprocas de seres organizados são mais importantes. Ora, à medida que o número das espécies cresce num país qualquer, as condições orgânicas da vida devem tornar-se cada vez mais complexas. Portanto, não parece haver, à primeira vista, limite algum à quantidade de diferenças de estrutura vantajosas e, por consequência também, ao número de espécies que poderiam ser produzidas. Não sabemos mesmo se as regiões mais ricas possuem o máximo de formas específicas: no cabo da Boa Esperança, na Austrália, onde vive já um número tão admirável de espécies, muitas plantas europeias se aclimataram. Mas a geologia demonstra-nos que, depois de uma época muito antiga do período terciário, o número das espécies de conchas e, desde o meado deste mesmo período, o número de espécies de mamíferos não aumentou muito, admitindo mesmo que tenham aumentado um pouco. Qual é então o obstáculo que se opõe a um aumento indefinido do número das espécies? A quantidade de indivíduos (não quero dizer o número de formas específicas) podendo viver numa região deve ter um limite, porque esta quantidade depende em grande parte das condições exteriores; logo, se muitas espécies habitam uma mesma região, cada uma destas espécies, quase todas certamente, devem ser representadas por um pequeno número de indivíduos apenas; demais, estas espécies são sujeitas a desaparecer em razão de alterações acidentais provenientes da natureza das estações, ou do número dos seus inimigos. Em tais casos, o extermínio é rápido, quando pelo contrário a produção de novas espécies é sempre muito lenta. Suponhamos, como caso extremo, que havia em Inglaterra tantas espécies quantos indivíduos: o primeiro Inverno rigoroso, ou um Verão muito seco, causaria o extermínio de milhares de espécies. As espécies raras (e cada espécie tornar-se-ia rara se o número de espécies de um país crescesse indefinidamente), oferecem, explicámos já em virtude de que princípio, poucas variações vantajosas num tempo dado; por consequência, a produção de novas formas específicas seria consideràvelmente demorada. Quando uma espécie se torna rara, os cruzamentos consanguíneos contribuem para adiantar a sua extinção; alguns autores pensaram que conviria, em grande parte, atribuir a este facto a desaparição do uro na Lituânia, do veado na Córsega e do urso na Noruega, etc. Enfim, e estou disposto a acreditar que é isto o elemento mais importante, uma espécie dominante, tendo já vencido muitos concorrentes no seu próprio habitat, tende a estender-se e a suplantar muitos outros. Alphonse de Candolle demonstrou que as espécies que se espalham muito tendem ordinàriamente a espalhar-se cada vez mais; por isso, estas espécies tendem a suplantar e a exterminar muitas espécies em muitas regiões e atrasar assim o aumento desordenado das formas específicas sobre o globo. O Dr. Hooker demonstrou recentemente que na extremidade sudeste da Austrália, que parecia ter sido invadida por numerosos indivíduos vindos de diferentes partes do globo, as diferentes espécies australianas indígenas diminuíram consideràvelmente em número. Não pretendo determinar que valor convém atribuir a estas diversas considerações; mas estas diferentes causas reunidas devem limitar em cada país a tendência para um aumento indefinido do número de formas específicas.

RESUMO DO CAPÍTULO

editar

Se, no meio das condições inconstantes da existência, os seres organizados apresentam diferenças individuais, em quase todas as partes da sua estrutura, e este ponto não é contestável; se se produz, entre as espécies, em razão da progressão geométrica do aumento dos indivíduos, uma encarniçada luta pela existência numa certa idade, numa certa estação, ou durante um período qualquer da vida, e este ponto não é certamente contestável; tendo, então, em conta a infinita complexidade das relações mútuas de todos os seres organizados e das suas relações com as condições da sua existência, o que causa uma diversidade infinita e considerável de estruturas, de constituições e de hábitos, seria deveras extraordinário que se não produzissem jamais variações úteis à prosperidade de cada indivíduo, da mesma forma como se produzem tantas variações úteis ao homem. Mas, se as variações úteis a um ser organizado qualquer se apresentam algumas vezes, seguramente os indivíduos que disso são o objecto têm a melhor probabilidade de vencer na luta pela existência; pois, em virtude do princípio tão poderoso da hereditariedade, estes indivíduos tendem a deixar os descendentes tendo o mesmo carácter que eles. Dei o nome de selecção natural a este princípio de conservação ou de persistência do mais apto. Este princípio conduz ao aperfeiçoamento de cada criatura relativamente às condições orgânicas e inorgânicas da sua existência; e, por conseguinte, na maior parte dos casos, ao que podemos considerar como um progresso de organização. Todavia, as formas simples e inferiores persistem muito tempo quando são bem adaptadas às condições pouco complexas da sua existência.

Em virtude do princípio da hereditariedade dos caracteres nas idades correspondentes, a selecção natural pode actuar sobre o ovo, sobre a semente ou sobre o novo indivíduo, e modificá-los tão fàcilmente como pode modificar o adulto. Entre um grande número de animais, a selecção sexual vem em auxílio da selecção ordinária, assegurando aos machos mais vigorosos e melhor adaptados o maior número de descendentes. A selecção sexual desenvolve também nos machos caracteres que lhes são úteis nas suas rivalidades ou nas suas lutas com outros machos, caracteres que podem transmitir-se somente a um sexo ou aos dois, seguindo a forma de hereditariedade predominante na espécie.

A selecção natural tem gozado realmente este papel? Tem realmente adaptado as formas diversas da vida às suas condições e às suas estações diferentes? É examinando os factos expostos nos capítulos seguintes que nós os poderemos julgar. Mas já vimos como a selecção natural determina a extinção; ora, a história e a geologia demonstram-nos claramente qual o papel que a extinção tem gozado na história zoológica do mundo. A selecção natural conduz também à divergência dos caracteres; porque, quanto mais os seres organizados diferem uns dos outros sob a relação da estrutura, dos hábitos e da constituição, tanto mais a mesma região pode alimentar um grande número; temos tido a prova disso estudando os habitantes de uma pequena região e as produções aclimatadas. Por consequência, durante a modificação dos descendentes de uma espécie qualquer, durante a luta incessante de todas as espécies para crescer em número, quanto mais diferentes se tornam estes descendentes, tanto mais probabilidades têm de ser bem sucedidos na luta pela existência. Também, as pequenas diferenças que distinguem as variedades de uma mesma espécie tendem regularmente a aumentar até que se tornem iguais às grandes diferenças que existem entre as espécies de um mesmo género, ou mesmo entre os géneros distintos.

Vimos que são as espécies comuns muito espalhadas e tendo um habitat considerável, e que, demais, pertencem aos géneros mais ricos de cada classe, que variam mais, e que estas espécies tendem a transmitir aos descendentes modificados esta superioridade que lhes assegura hoje o domínio no próprio país. A selecção natural, como acabamos de fazer observar, conduz à divergência dos caracteres e à extinção completa das formas intermediárias e menos aperfeiçoadas. Partindo destes princípios, pode explicar-se a natureza das afinidades e as distinções ordinàriamente bem definidas entre os inumeráveis seres organizados de cada classe à superfície do globo. Um facto verdadeiramente admirável e que nós demasiado desconhecemos, porque estamos talvez muito familiarizados com ele, é que todos se encontram reunidos por grupos subordinados a outros grupos da mesma forma que observamos em todos, isto é, que as variedades da mesma espécie mais próximas umas das outras, e as espécies do mesmo género, menos estreitamente e mais desigualmente aliadas, formam secções e subgéneros; que as espécies de géneros distintos ainda muito menos próximos e, enfim, que os géneros mais ou menos semelhantes formam subfamílias, famílias, ordens, classes e subclasses. Os diversos grupos subordinados de uma classe qualquer não podem ser dispostos em uma única linha, mas parecem agrupar-se em volta de certos pontos, e estes em volta de outros e assim seguidamente em círculos quase infinitos. Se as espécies fossem criadas independentemente umas das outras, não poderia explicar-se este modo de classificação; explica-se fàcilmente, pelo contrário, pela hereditariedade, e pela acção complexa da selecção natural, produzindo a extinção e a divergência dos caracteres, assim como o demonstra o nosso diagrama.

Têm-se representado algumas vezes sob a figura de uma grande árvore as afinidades de todos os seres da mesma classe, e creio que esta imagem é assaz justa sob muitas relações. Os ramos e os gomos representam as espécies existentes; os ramos produzidos durante os anos precedentes representam a longa sucessão das espécies extintas. A cada período de crescimento, todas as ramificações tendem a estender os ramos por toda a parte, a exceder e destruir as ramificações e os ramos circunvizinhos, da mesma forma que as espécies e os grupos de espécies têm, em todos os tempos, vencido outras espécies na grande luta pela existência. As bifurcações do tronco, divididas em grossos ramos, e estes em ramos menos grossos e mais numerosos, tinham outrora, quando a árvore era nova, apenas pequenas ramificações com rebentos; ora, esta relação entre os velhos rebentos e os novos no meio dos ramos ramificados representa bem a classificação de todas as espécies extintas e vivas em grupos subordinados a outros grupos. Sobre as numerosas ramificações que prosperavam quando a árvore era apenas um arbusto, duas ou três ùnicamente, transformadas hoje em grossos ramos, têm sobrevivido, e sustentam as ramificações subsequentes; da mesma maneira, sobre as numerosas espécies que viviam durante os períodos geológicos afastados desde longo tempo, muito poucas deixaram descendentes vivos e modificados. Desde o primeiro crescimento da árvore, mais de um ramo deve ter perecido e caído; ora, estes ramos caídos, de grossura diferente, podem representar as ordens, as famílias e os géneros inteiros, que não têm representantes vivos e que apenas conhecemos no estado fóssil. Da mesma forma que vemos de onde aonde sobre a árvore um ramo delicado, abandonado, que surgiu de qualquer bifurcação inferior, e, em consequência de felizes circunstâncias, está ainda vivo, e atinge o cume da árvore, da mesma forma encontramos acidentalmente algum animal, como o ornitorrinco ou a lepidossereia, que, pelas suas afinidades, liga, sob quaisquer relações, duas grandes artérias da organização, e que deve provavelmente a uma situação isolada ter escapado a uma concorrência fatal. Da mesma forma que os gomos produzem novos gomos, e que estes, se são vigorosos, formam ramos que eliminaram de todos os lados os ramos mais fracos, da mesma forma creio eu que a geração actua igualmente para a grande árvore da vida, cujos ramos mortos e quebrados são sepultados nas camadas da crusta terrestre, enquanto que as suas magníficas ramificações, sempre vivas e renovadas incessantemente, cobrem a superfície.