Origem das espécies/Distribuição geográfica

CAPITULO XII


Distribuição geográfica


As diferenças nas condições físicas não bastam para explicar a distribuição geográfica actual. — Importância das barreiras. — Afinidades entre as produções do mesmo continente. — Centros de criação. — Dispersão proveniente de modificações no clima, no nível do solo e de outros meios acidentais. — Dispersão durante o período glaciário. — Períodos glaciários alternantes no hemisfério boreal e no hemisfério austral.

Quando se considera a distribuição dos seres organizados à superfície do globo, o primeiro facto considerável com que se é impressionado é que nem as diferenças climatéricas nem as outras condições físicas explicam suficientemente as semelhanças ou dessemelhanças dos habitantes das diversas regiões. Quase todos os naturalistas que recentemente têm estudado este assunto chegaram à mesma conclusão. Bastaria examinar a América para demonstrar a verdade; todos os sábios concordam, com efeito, em reconhecer que, à excepção da parte setentrional temperada e da zona que cerca o polo, a distinção da Terra em antigo e novo mundo constitui uma das divisões fundamentais da distribuição geográfica. Contudo, se percorrermos o vasto continente americano, desde as partes centrais dos Estados Unidos até à sua extremidade meridional, encontramos as mais diferentes condições: regiões húmidas, desertos áridos, montanhas elevadas, planícies cobertas de ervas, florestas, pântanos, lagos e grandes rios, e quase todas as temperaturas. Não há por assim dizer, no velho mundo, um clima ou uma condição que não tenha seu equivalente no novo mundo — pelo menos nos limites do que pode ser necessário a uma mesma espécie. Podem, sem dúvida, indicar-se no velho mundo algumas regiões mais quentes que qualquer das do novo mundo, mas estas regiões não são povoadas por uma fauna diferente da das regiões vizinhas; é muito raro, com efeito, encontrar um grupo de organismos confinado num estreito lugar que apenas apresenta ligeiras diferenças nas suas condições particulares. Apesar deste paralelismo geral entre as condições físicas respectivas do velho e do novo mundo, que imensa diferença não há nas suas produções vivas!

Se compararmos, no hemisfério austral, grandes extensões na Austrália, na África austral e no oeste da América do Sul, entre os graus 25° e 35° de latitude, encontramos aí pontos muito semelhantes por todas as suas condições; não seria, contudo, possível encontrar três faunas e três floras jamais dessemelhantes. Se, por outra parte, compararmos as produções da América meridional, ao sul do grau 35° de latitude, com as produções ao norte do grau 25°, produções que se encontram, por conseguinte, separadas por um espaço de dez graus de latitude, e submetidas a condições muito diferentes, são incomparàvelmente mais vizinhas umas das outras do que das produções australianas ou africanas vivendo num clima quase idêntico. Poderiam notar-se factos análogos entre os habitantes do mar.

Um segundo facto importante que nos fere, neste relance geral, é que todas as barreiras ou todos os obstáculos que se opõem a uma livre emigração estão estreitamente em relação com as diferenças que existem entre as produções de diversas regiões. É o que nos demonstra a grande diferença que se nota em quase todas as produções terrestres do velho e do novo mundo, exceptuando as partes setentrionais onde quase se juntam os dois continentes, e onde, num clima pouco diferente, pode ter havido emigração das formas habitando as partes temperadas do norte, como se observa actualmente para as produções estritamente árcticas. O mesmo facto é apreciável na diferença que apresentam, na mesma latitude, os habitantes da Austrália, da África e da América do Sul, países tão isolados uns dos outros quanto possível. O mesmo se dá em todos os continentes; porque encontramos muitas vezes produções diferentes sobre os lados opostos de grandes cadeias de montanhas elevadas e contínuas, de vastos desertos e muitas vezes mesmo de grandes rios. Contudo, como as cadeias de montanhas, desertos, etc., não são também infranqueáveis e não têm provàvelmente existido desde tanto tempo como os oceanos que separam os continentes, as diferenças que tais barreiras produzem no conjunto do mundo organizado são bem menos distintivas que 35 que caracterizam as produções de continentes separados.

Se estudarmos os mares, verificamos que a mesma lei se aplica ainda. Os habitantes dos mares da costa oriental e da costa ocidental da América meridional são muito distintos, e há poucos peixes, moluscos e crustáceos que sejam comuns a uns e outros; mas o Dr. Gunther demonstrou recentemente que, nas margens opostas do istmo de Panamá, cerca de 30 por 100 dos peixes são comuns aos dois mares; isto um facto que levou alguns naturalistas a julgar que o istmo não existiu outrora. A oeste das costas da América estende-se um oceano vasto e aberto, sem uma ilha que possa servir de refúgio ou repouso aos emigrantes; é esta uma outra espécie de barreira, além da qual encontramos, nas ilhas orientais do Pacífico, uma outra fauna completamente distinta, de modo que temos aqui três faunas marinhas, estendendo-se de norte a sul, num espaço considerável e em linhas paralelas pouco afastadas entre si e em climas correspondentes; mas, separadas que sejam por barreiras insuperáveis, isto é, por terras contínuas ou por mares abertos e profundos, são quase totalmente distintas. Se continuarmos sempre a avançar para oeste, além das ilhas orientais da região tropical do Pacífico, não encontramos barreiras infranqueáveis, mas ilhas em grande número podendo servir de lugares de interrupção ou costas contínuas, até que, depois de ter atravessado um hemisfério inteiro, chegamos às costas da África; ora, em toda esta vasta extensão, não encontramos fauna marinha bem definida e bem distinta. Se bem que um pequeno número de animais marinhos são comuns às três faunas da América oriental, da América ocidental e ilhas orientais do Pacífico, de que acabo de indicar aproximadamente os limites, muitos peixes se estendem, porém, desde o oceano Pacífico ao oceano Índico, e muitas conchas são comuns às ilhas orientais do oceano Pacífico e às costas orientais da África, duas regiões situadas em meridianos quase opostos.

Um terceiro grande facto principal, quase incluso, além disso, nos dois precedentes, é a afinidade que existe entre as produções de um mesmo continente ou de um mesmo mar, posto que as próprias espécies sejam algumas vezes distintas em seus diversos pontos e nas suas estações diferentes. É isto uma lei geral, e de que cada continente oferece exemplos notáveis. Não obstante, o naturalista viajando do norte ao sul, por exemplo, não deixa jamais de ser ferido pela maneira como grupos sucessivos de seres especificamente distintos, ainda que em estreita relação uns com os outros, se substituem mùtuamente. Vêem-se aves análogas: o seu canto é quase semelhante; os ninhos são construídos quase de igual modo; os ovos são quase da mesma cor, e contudo são espécies diferentes. As planícies vizinhas do estreito de Magalhães são habitadas por uma espécie de avestruz (Rhea), e as planícies do Prata, situadas mais ao norte, por uma espécie diferente do mesmo género; mas não se encontram aí nem o verdadeiro avestruz nem o casuar, que vivem nas mesmas latitudes na África e na Austrália. Nessas mesmas planícies do Prata encontra-se o aguti e a lebre brasílica, que têm quase os mesmos hábitos que as nossas lebres e os nossos coelhos, e que pertencem à mesma ordem dos roedores, mas que apresentam evidentemente na sua estrutura um tipo completamente americano. Nos cumes elevados das cordilheiras, encontramos uma espécie de lebre alpestre; nas águas nem encontramos o castor nem o rato almiscareiro, mas o coandu e o capivara, roedores que têm o tipo sul-americano. Poderíamos citar uma aluvião de exemplos análogos. Se examinarmos as ilhas da costa americana, por diferentes que sejam do continente pela sua natureza geológica, os seus habitantes são essencialmente americanos, se bem que possam todos pertencer a espécies particulares. Podemos subir aos períodos remotos e, assim como vimos no capítulo precedente, encontraremos ainda que são os tipos americanos que dominam nos mares americanos e no continente americano. Estes factos mostram a existência de qualquer laço íntimo e profundo que prevalece no tempo e no espaço, nas mesmas extensões de terra e de mar, independentemente das condições físicas. Necessário seria que o naturalista fosse muito indiferente para não tentar procurar que laço seria este.

Este laço é muito simplesmente a hereditariedade, esta causa que, só por si, tanto quanto nós o sabemos de uma maneira positiva, tende a produzir organismos completamente semelhantes entre si, ou, como se vê nos casos das variedades, quase semelhantes. A dessemelhança dos habitantes de diversas regiões pode ser atribuída a modificações devidas à variação e à selecção natural e provavelmente também, mas em grau menor, à acção directa de condições físicas diferentes. Os graus de dessemelhança dependem de que as emigrações de formas organizadas dominantes foram mais ou menos eficazmente impedidas em épocas mais ou menos afastadas; da natureza e do número dos primeiros imigrantes, e da acção que os habitantes puderam exercer uns sobre os outros, no ponto de vista da conservação de diferentes modificações; sendo as relações que têm entre si os diversos organismos na luta pela existência, como já muitas vezes indiquei, as mais importantes de todas. E assim que as barreiras, pondo obstáculo às migrações, gozam um papel tão importante como o tempo, quando se trata de lentas modificações pela selecção natural. As espécies muito espalhadas, compreendendo numerosos indivíduos, que já triunfaram de muitos concorrentes nos seus vastos habitats, são também as que têm mais probabilidades de ocupar lugares novos, quando se espalham em novas regiões. Submetidas na nova pátria a novas condições, devem frequentemente sofrer modificações e aperfeiçoamentos ulteriores; daqui resulta que devem alcançar novas vitórias e produzir grupos de descendentes modificados. Este princípio de hereditariedade com modificações permite-nos compreender como secções de géneros, géneros inteiros e mesma famílias inteiras, se encontram limitados nas mesmas regiões, caso tão frequente e tão comum.

Assim como fiz notar no capítulo precedente, poderia apenas provar-se que existe uma lei de desenvolvimento indispensável. A variabilidade de cada espécie é uma propriedade independente de que a selecção natural se apossa tanto quanto è útil ao indivíduo na luta complexa pela existência; a soma das modificações nas espécies diferentes não deve, pois, de forma alguma ser uniforme. Se um certo número de espécies, depois de ter estado longo tempo em concorrência umas com as outras no seu antigo habitat emigram para uma região nova que, mais tarde, se encontraria isolada, ficariam pouco sujeitas a modificações, porque nem a migração nem o isolamento podem nada por si só. Estas causas actuam sòmente levando os organismos a ter novas relações entre si, e, num grau menor, com as condições físicas ambientes. Da mesma maneira como vimos, no capítulo anterior, que algumas formas conservaram quase os mesmos caracteres desde uma época geológica prodigiosamente longínqua, igualmente certas espécies são disseminadas em espaços imensos, sem se modificarem muito, ou mesmo sem terem experimentado qualquer alteração.

Partindo destes princípios, é evidente que as diferentes espécies do mesmo género, se bem que habitando os mais afastados pontos do globo, devem ter a mesma origem, pois que derivam de um mesmo ascendente. Com respeito às espécies que experimentaram poucas modificações durante períodos geológicos inteiros, não há grande dificuldade em admitir que emigraram da mesma região; porque, durante as imensas alterações geográficas e climatéricas que sobrevieram desde os antigos tempos, todas as emigrações, por consideráveis que tenham sido, foram possíveis. Mas, em muitos outros casos em que temos razões para pensar que as espécies de um género são produzidas em épocas relativamente recentes, esta questão apresenta grandes dificuldades.

É evidente que os indivíduos pertencendo à mesma espécie, posto que habitando de ordinário regiões afastadas e separadas, devem provir de um só ponto, onde tenham existido os pais; porque, assim como temos já explicado, seria inadmissível que indivíduos absolutamente idênticos pudessem ter sido produzidos por pais especificamente distintos.

CENTROS ÚNICOS DE CRIAÇÃO editar

Eis-nos assim levados a examinar uma questão que tem levantado tantas discussões entre os naturalistas. Trata-se de saber se as espécies foram criadas em um ou muitos pontos da superfície terrestre. Há sem dúvida casos em que é extremamente difícil compreender como a mesma espécie pôde transmitir-se de um ponto único até às diversas regiões afastadas e isoladas onde hoje as encontramos. Não obstante, parece tão natural que cada espécie fosse produzida no princípio numa região única, que esta hipótese cativa fàcilmente o espírito. Quem a rejeita, repele a verdadeira causa da geração ordinária com emigrações subsequentes e invoca a intervenção de um milagre. É universalmente admitido que, na maior parte dos casos, a região habitada por uma espécie é contínua; e que, quando uma planta ou um animal habita dois pontos tão afastados ou separados por obstáculos de natureza tal, que a emigração se torna muito difícil, considera-se o facto como excepcional e extraordinário. A impossibilidade de emigrar através de um vasto mar é mais evidente para os mamíferos terrestres do que para todos os outros seres organizados; também não encontramos exemplo inexplicável da existência de um mesmo mamífero habitando pontos afastados do globo. O geólogo não se embaraça por ver que a Inglaterra possui os mesmos quadrúpedes que o resto da Europa, porque é evidente que as duas regiões foram outrora unidas. Mas, se as mesmas espécies podem ser produzidas em dois pontos separados, porque não encontramos um só mamífero comum à Europa e à Austrália ou à América do Sul? As condições de existência são tão completamente as mesmas, que um grande número de plantas e de animais europeus se adaptam à Austrália e à América, e algumas plantas indígenas são absolutamente idênticas nestes pontos tão afastados do hemisfério boreal e do hemisfério austral. Sei que me pode responder que os mamíferos não têm podido emigrar, enquanto que certas plantas, graças à diversidade dos seus meios de disseminação, puderam ser transportadas passo a passo através de espaços imensos. A influência considerável das variadas barreiras é apenas compreensivel tanto quanto a grande maioria das espécies foi produzida de um lado, e não pôde passar ao lado oposto. Algumas famílias, muitas subfamílias, um grande número de géneros, estão limitados numa região única, e muitos naturalistas observaram que os géneros mais naturais, isto é, aqueles de que as espécies se aproximam mais entre si, são geralmente próprios a uma só região assaz restrita, ou, se têm uma vasta extensão, esta extensão é contínua. Não seria uma estranha anomalia que, descendo um grau abaixo na série, isto é, até aos indivíduos da mesma espécie, prevalecesse uma regra completamente oposta, e que estes não tivessem, pelo menos na origem, sido limitados em qualquer região única?

Parece-me, pois, muito mais provável, como de resto a muitos outros naturalistas, que a espécie se produziu num só país, de onde em seguida se espalhou tão longe quanto lhe permitiram os meios de emigração e de subsistência, tanto nas condições da vida passada como nas condições da vida actual. Apresentam-se, sem dúvida, muitos casos em que é impossível explicar a passagem de uma mesma espécie de um ponto a outro, mas as alterações geográficas e climatéricas que se realizaram certamente desde as épocas geológicas recentes, devem ter rompido a continuidade da distribuição primitiva de muitas espécies. Estamos, pois, reduzidos a apreciar se as excepções na continuidade de distribuição são bastante numerosas e bastante graves para nos fazer renunciar à hipótese, apoiada por tantas considerações gerais, de cada espécie ser produzida num ponto, e partindo daí se espalhou para tão longe quanto é possível. Seria fastidioso discutir todos os casos excepcionais em que a mesma espécie vive actualmente em pontos isolados e afastados, e demais não teria eu a pretensão de encontrar uma explicação completa. Todavia, após algumas considerações preliminares, discutirei alguns dos exemplos mais nítidos, tais como a existência da mesma espécie nos cumes de montanhas muito afastadas e sobre pontos muito distantes das regiões árcticas e antárcticas; em segundo lugar (no capítulo seguinte), a notável extensão das formas aquáticas de água doce; e, em terceiro lugar, a existência das mesmas espécies terrestres nas ilhas e nos continentes mais vizinhos, se bem que por vezes separados por muitas centenas de milhas de mar. Se a existência da mesma espécie em pontos distantes e isolados da superfície do globo pode, num grande número de casos, explicar-se pela hipótese de cada espécie ter emigrado do seu centro de produção, então, considerando a nossa ignorância no que é concernente, tanto às alterações climatéricas e geográficas que se realizaram outrora, como aos meios acidentais de transporte que puderam concorrer para esta disseminação, creio eu que a hipótese de um berço único é incontestàvelmente a mais natural.

A discussão deste assunto permitir-nos-á ao mesmo tempo estudar um ponto igualmente muito importante para nós, isto é, se as diversas espécies do mesmo género que, segundo a minha teoria, devem todas derivar de uma origem comum, podem ter emigrado do país por estar habitado modificando-se durante a sua emigração. Se se pode demonstrar que, quando a maior parte das espécies habitando uma região são diferentes das de outra região, estando contudo muito vizinhas, houve outrora emigrações prováveis de uma destas regiões para outra, estes factos confirmarão a minha teoria, porque se podem explicar fàcilmente pela hipótese da descendência com modificações. Uma ilha vulcânica, por exemplo, formada por levantamento a algumas centenas de milhas de um continente, receberá provavelmente, em curto prazo, um pequeno número de colonos, de que os descendentes, ainda que modificados, estarão, contudo, em íntima relação de hereditariedade com os habitantes do continente. Semelhantes casos são comuns, e, assim como veremos mais tarde, são completamente inexplicáveis na hipótese das criações independentes. Esta opinião sobre as relações que existem entre as espécies de duas regiões aproxima-se muito da emitida por M. Wallace, que concluiu que «cada espécie, na sua origem, coincide pelo tempo e pelo lugar com outra espécie preexistente e de perto aliada». Sabe-se actualmente que M. Wallace atribui esta coincidência à descendência com modificações.

A questão da unidade ou pluralidade dos centros de criação difere de uma outra questão que, contudo, se aproxima muito: todos os indivíduos de uma espécie derivam de um só par, ou de um só hermafrodita, ou, como admitem alguns autores, de muitos indivíduos simultâneamente criados? A respeito dos seres organizados que jamais se cruzam, admitindo que os haja, cada espécie deve descender de uma sucessão de variedades modificadas, que são mutuamente suplantadas, mas sem jamais se misturarem com outros indivíduos ou outras variedades da mesma espécie; de maneira que a cada fase sucessiva da modificação todos os indivíduos da mesma variedade derivam de um só pai. Mas, na maioria dos casos, para todos os organismos que se emparelham habitualmente para cada fecundação, ou que se cruzam por vezes, os indivíduos de uma mesma espécie, habitando a mesma região, mantêm-se quase uniformes em seguida aos seus cruzamentos constantes, de modo que um grande número de indivíduos modificando-se simultâneamente, caracterizando o conjunto das modificações uma fase dada, não será devido à descendência de uma origem única. Para bem fazer compreender o que eu penso: os nossos cavalos de corrida diferem de todas as outras raças, mas não devem a sua diferença e superioridade à descendência de um só par, mas aos cuidados incessantes produzidos pela selecção e ao treinamento de um grande número de indivíduos durante cada geração.

Antes de discutir as três classes de factos que escolhi como apresentando as maiores dificuldades que se podem levantar contra a teoria dos «centros únicos de criação», devo dizer algumas palavras sobre os meios de dispersão.

MEIOS DE DISPERSÃO editar

Sir C. Lyell e outros autores trataram admiràvelmente esta questão; limitar-me-ei, pois, a reunir aqui os factos mais importantes. As alterações climatéricas devem ter exercido poderosa influência sobre as emigrações; uma região, infranqueável hoje, pode ter sido um grande caminho de emigração, quando o seu clima era diferente do que é hoje. Terei, pois, demais a mais, de discutir este lado da questão com todas as suas minúcias. As mudanças do nível do solo deviam também representar um papel importante; um istmo estreito separa hoje duas faunas marinhas; quando se submergir ou tenha já sido submerso, as duas faunas misturar-se-ão, ou terão sido já misturadas. Onde hoje existe mar, terras teriam podido outrora ligar ilhas ou os continentes, e permitir às produções terrestres passar de umas para outras. Nenhum geólogo contesta as grandes alterações de nível que se têm produzido durante o período actual, alterações de que os organismos vivos têm sido contemporâneos. Eduardo Forbes insistiu no facto de todas as ilhas do Atlántico deverem ter sido, em época recente, ligadas à Europa ou à Africa, da mesma forma como a Europa estava ligada à América. Outros sábios têm igualmente lançado pontes hipotéticas sobre todos os oceanos, e ligado quase todas as ilhas a um continente. Se pudesse prestar-se inteira confiança nos argumentos de Forbes, necessário seria admitir que todas as ilhas foram recentemente ligadas a um continente. Esta hipótese corta o nó górdio da dispersão de uma mesma espécie para os pontos mais distantes, e remove muitas dificuldades; mas, tanto quanto o posso julgar, não creio que estejamos autorizados a admitir que houvesse alterações geográficas tão extraordinárias nos limites do período das espécies existentes. Parece-me que temos numerosas provas de grandes oscilações do nível da terra e do mar, mas não alterações bastante consideráveis na posição e na extensão dos nossos continentes para nos dar o direito de admitir que, numa época recente, todos tenham sido ligados entre si assim como às diversas ilhas oceânicas. Admito de boa vontade a existência anterior de muitas ilhas, actualmente submersas, que podiam ter servido de estâncias, de lugares de repouso, às plantas e aos animais durante as suas emigrações. Nos mares em que se produz o coral, estas ilhas submergidas são ainda marcadas hoje pelos anéis de coral ou atóis que as encimam. Quando se admitir completamente, como se fará um dia, que cada espécie saiu de um berço único, e que por fim acabemos por conhecer qualquer coisa de mais preciso sobre os meios de dispersão dos seres organizados, poderemos especular com mais certeza sobre a antiga extensão das terras. Mas não penso em que jamais se chegue a provar que, durante o período recente, a maior parte dos nossos continentes, hoje completamente separados, tenham sido reunidos de uma maneira contínua ou quase contínua uns aos outros, assim como com as grandes ilhas oceânicas. Muitos factos relativos à distribuição geográfica, tais como, por exemplo, a grande diferença das faunas marinhas sobre as costas opostas de quase todos os continentes; as estreitas relações que ligam os habitantes actuais às formas terciárias de muitos continentes e mesmo de muitos oceanos; o grau de afinidade que se observa entre os mamíferos que habitam as ilhas e os do continente mais próximo, afinidade que é em parte determinada, como veremos mais adiante, pela profundidade do mar que os separa; todos estes factos e alguns outros análogos me parecem opor-se a que se admita que revoluções geográficas tão consideráveis como o exigiriam as opiniões sustentadas por Forbes. e seus partidários, fossem produzidas numa época recente. As proporções relativas e a natureza dos habitantes das ilhas oceânicas me parecem igualmente opor-se à hipótese de que estas foram outrora ligadas com os continentes. A constituição quase universalmente vulcânica destas ilhas não é favorável à ideia de elas representarem restos de continentes submersos; porque, se fossem primitivamente cadeias de montanhas continentais, algumas pelo menos seriam, como outras são, formadas de granito, de xistos metamórficos de antigas rochas fossilíferas ou outras análogas, em lugar de serem empastamentos de matérias vulcânicas.

Devo agora dizer algumas palavras sobre o que se tem chamado meios acidentais de dispersão, meios que melhor se chamariam ocasionais; falarei aqui apenas das plantas. Diz-se, nas obras de botânica, que determinada planta se presta mal a uma grande disseminação; mas pode dizer-se que se ignora quase absolutamente se tal ou tal planta pode atravessar o mar com mais ou menos facilidade. Não se sabia mesmo, antes de algumas experiências que empreendi sobre este ponto com o concurso de M. Berkeley, durante quanto tempo as sementes podem resistir à acção nociva da água do mar. Verifiquei, com grande surpresa minha, que, de oitenta e sete espécies, sessenta e quatro germinaram após uma imersão de vinte e oito dias, e algumas resistiram mesmo depois de uma imersão de cento e trinta e sete dias. É bom notar que certas ordens se mostram muito menos aptas que outras a resistir a esta prova; nove leguminosas, com excepção de uma só, resistiram mal à acção da água salgada; sete espécies pertencendo às duas ordens associadas, hidrofiláceas e polemoniáceas, foram todas destruídas por um mês de imersão. Para mais comodidade, experimentei principalmente com os pequenos grãos despojados do fruto, ou da cápsula; ora, como todas foram ao fundo ao fim de poucos dias, não teriam podido atravessar grandes braços de mar quer fossem ou não danificadas pela água salgada. Experimentei em seguida com alguns frutos e algumas cápsulas, etc., de maiores dimensões; alguns flutuaram por muito tempo. Sabe-se que a madeira verde flutua muito menos tempo que a madeira seca. Pensei que as inundações devem muitas vezes arrastar para o mar plantas ou ramos secos carregados de cápsulas e de frutos. Esta ideia conduziu-me a fazer secar hastes e ramos de noventa e quatro plantas tendo frutos maduros, e colocá-los em seguida em água do mar. A maior parte foi prontamente ao fundo, mas algumas que, verdes, só flutuavam pouco tempo, resistiram bastante depois de secas; assim, as avelãs verdes mergulharam ràpidamente; secas, porém, flutuaram durante noventa dias, e germinaram depois de ter sido postas em terra; uma planta de espargo tendo bagas maduras flutua vinte e três dias; depois de seca, flutua oitenta e cinco dias, e as sementes germinam em seguida. As sementes maduras do Helosciadium, que iam ao fundo no fim de dois dias, flutuaram durante mais de noventa dias depois de secas, e germinaram em seguida. Ao todo, de noventa e quatro plantas secas, dezoito flutuaram durante mais de vinte e oito dias, e algumas passaram este termo. Disto resulta que 64/87 das sementes que submeti à experiência germinaram após uma imersão de vinte e oito dias, e que 18/94 das plantas com frutos maduros (nem todas pertenciam às mesmas espécies da experiência precedente) flutuaram, após dessecação, mais de vinte e oito dias. Podemos pois concluir, tanto pelo menos quanto é permitido tirar uma conclusão de um tão pequeno número de factos, que as sementes de 14/100 das plantas de um país qualquer podem ser arrastadas durante vinte e oito dias pelas correntes marítimas sem perder a faculdade de germinar. Segundo o atlas físico de Johnston, a velocidade média das diversas correntes do Atlântico é de 53 quilómetros aproximadamente por dia; algumas atingem mesmo a velocidade de 96 quilómetros e meio por dia; por esta média, os 14/100 das sementes das plantas de um país poderiam, pois, ser transportadas através de um braço de mar com a largura de 1 487 quilómetros até um outro país, e germinar se, depois de ter alcançado a margem, o vento as levasse para um lugar favorável ao seu desenvolvimento.

M. Martens empreendeu subsequentemente experiências semelhantes às minhas, mas em melhores condições; colocou, com efeito, as sementes numa caixa mergulhada no próprio mar, de modo que se encontraram alternadamente submetidas à acção do ar e da água, como plantas realmente flutuantes. Experimentou com noventa e oito sementes na maior parte diferentes das minhas; mas escolheu grandes frutos e sementes de plantas vivendo nas costas, circunstância de natureza a aumentar o comprimento médio da sua flutuação e resistência à acção nociva da água salgada. Por outra parte, não secou prèviamente as plantas que sustentavam o fruto; facto que, como temos visto, teria permitido a algumas flutuar ainda mais tempo. O resultado obtido foi que 18/98 destas sementes flutuaram durante quarenta e dois dias e germinaram em seguida. Creio, contudo, que plantas expostas às vagas não devem flutuar tanto tempo como as que, como nestas experiências, estão ao abrigo de uma violenta agitação. Seria, pois, mais seguro admitir que as sementes de cerca de 10/100 das plantas de uma flora podem, depois da dessecação, flutuar através de um braço de mar da largura de 1 450 quilómetros pouco mais ou menos, e germinar em seguida. O facto dos frutos maiores serem aptos a flutuar mais tempo que os pequenos é interessante, porque não há outro meio de dispersão para as plantas de grandes frutos e de grandes sementes; demais, assim como o demonstrou Afonso de Candolle, estas plantas têm geralmente uma extensão limitada.

As sementes podem ser ocasionalmente transportadas de uma outra maneira. As correntes lançam madeira sobre as costas da maior parte das ilhas, mesmo naquelas que se encontram em meio dos mais vastos mares; os naturais das ilhas de coral do Pacífico não podem obter as pedras com que confeccionam as ferramentas senão tomando as que se encontram presas nas raízes das árvores flutuantes; estas pedras pertencem ao rei, que daí tira grandes proventos. Observei que, quando pedras de forma irregular são apanhadas nas raízes das árvores, pequenas parcelas de terra enchem muitas vezes os interstícios que podem encontrar-se entre elas e a madeira, e são muito bem protegidas para que a água não possa tirá-las durante a mais longa travessia. Vi germinar três dicotiledóneas contidas numa parcela de terra assim apertada nas raízes de um carvalho que tinha cerca de cinquenta anos; posso garantir a exactidão desta observação. Poderia também demonstrar que os cadáveres de aves, flutuando no mar, nem sempre são imediatamente devorados, ora, um grande número de sementes podem conservar por muito tempo a sua vitalidade no papo das aves que flutuam; assim, as ervilhas e as ervilhacas são mortas por alguns dias de imersão em água salgada, mas, com grande surpresa minha, algumas destas sementes, tomadas do papo de um pombo que tinha flutuado em água salgada durante trinta dias, germinaram quase todas.

As aves vivas não podem deixar de ser agentes muito eficazes para o transporte de sementes. Poderia citar um grande número de factos que provam que as aves de diversas espécies são frequentemente arrastadas pelas tempestades a imensas distâncias no mar. Podemos com toda a segurança admitir que, nestas circunstâncias, devem atingir uma velocidade de voo cerca de 56 quilómetros por hora; e alguns autores avaliam-na em muito mais ainda. Não creio que as sementes alimentares possam atravessar intactas o intestino da ave, mas os caroços dos frutos passam sem alteração, através dos órgãos digestivos do próprio peru. Recolhi em dois meses, no meu jardim, doze espécies de sementes tomadas no excremento de pequenas aves; estas sementes pareciam intactas, e algumas germinaram. Mas eis um facto mais importante. O papo das aves não segrega suco gástrico e não exerce acção alguma nociva sobre a germinação das sementes, assim como o verifiquei com numerosos ensaios. Ora, quando uma ave encontrou e absorveu grande quantidade de alimento, está reconhecido que são necessárias de doze a dezoito horas para que todos os grãos tenham passado na moela. Uma ave pode, neste intervalo, ser conduzida por uma tempestade a uma distância de 800 quilómetros, e como as aves de rapina procuram aves fatigadas, o conteúdo do papo dilacerado pode ser assim disperso. Certos falcões e certos mochos engolem a presa inteira, e, após um intervalo de doze a vinte horas, vomitam pequenos novelos nos quais, como resulta das experiências feitas por Zoological Gardens, há sementes aptas a germinar. Algumas sementes de aveia, de trigo, de milho miúdo, de linho, de cânhamo, de trevo e de beterraba germinaram depois de uma demora de doze a vinte e quatro horas no estômago de diversas aves de rapina; duas sementes de beterraba germinaram tendo uma demora de sessenta e duas horas em iguais condições. Os peixes de água doce engolem sementes de muitas plantas terrestres e aquáticas; ora, as aves que devoram muitas vezes os peixes, tornam-se assim os agentes do transporte de sementes. Introduzi uma quantidade de sementes no estômago de peixes mortos que fazia em seguida devorar por águias pescadoras, por cegonhas e por pelicanos; após um intervalo de muitas horas, estas aves vomitavam os grãos em novelos, ou os lançavam nos excrementos, e muitos germinaram perfeitamente; há todavia sementes que não resistem a este tratamento.

Os gafanhotos são por vezes transportados a grandes distâncias das costas; eu mesmo capturei um a 595 quilómetros da costa de África, e têm-se recolhido a distâncias muito maiores. O reverendo R. T. Lowe informou sir C. Lyell que em Novembro de 1844 nuvens de gafanhotos invadiram a ilha da Madeira. Eram em quantidades inúmeras, tão cerradas como os flocos nas grandes nevadas, e estendiam-se no ar a tão grande distância que se podiam ver com o telescópio. Durante dois ou três dias descreveram lentamente nos ares uma imensa elipse tendo 5 a 6 quilómetros de diâmetro, e à tarde desceram sobre as árvores mais elevadas que ficaram logo cobertas. Desapareceram em seguida tão sùbitamente como tinham vindo e não mais reapareceram na ilha. Os lavradores de certas partes do Natal julgam, sem provas bem seguras contudo, que as sementes nocivas são introduzidas nos seus prados pelos excrementos que aí deixam as imensas nuvens de gafanhotos que muitas vezes invadem o país. M. Weale enviou-me, para experimentar este facto, um pacote de excremento seco proveniente destes insectos, e encontrei, com o auxílio do microscópio, muitas sementes que me deram sete gramíneas pertencendo a duas espécies e a dois géneros. Uma invasão de gafanhotos, como a que houve na Madeira, poderia, pois, fàcilmente introduzir muitas plantas variadas numa ilha situada muito longe do continente.

Posto que o bico e as patas das aves sejam geralmente próprias, adere-lhes por vezes um pouco de terra; obtive, numa ocasião, cerca de 4 gramas, e noutra 1,4 grama de terra argilosa na pata de uma perdiz; nesta terra, encontrava-se uma pedra do tamanho de uma semente de cânhamo. Eis aqui um exemplo frisante: um amigo enviou-me a pata de uma galinhola da qual salientei um fragmento de terra seca pesando 58 centigramas sòmente, mas que continha uma semente de Juncus bufonius, que germinou e floriu. M. Swoysland, de Brighton, que, há quarenta anos, estuda com muito cuidado as nossas aves de arribação, informa-me que tendo muitas vezes apanhado alvéloas (Motacillae), tarambolas e papa-figos (Saxicolae), à sua chegada, antes mesmo que tenham pousado nas nossas costas, tem notado bastantes vezes que trazem nas patas pequenas parcelas de terra seca. Poderiam citar-se muitos factos que mostram como o solo é por toda a parte carregado de sementes. O professor Newton, por exemplo, enviou-me uma pata de perdiz (Caccabis rufa) tornada, devido a uma ferida, incapaz de voar, e à qual aderiu uma bola de terra endurecida que pesava aproximadamente 200 gramas. Esta terra, que foi guardada três anos, foi em seguida esmagada, regada e colocada num copo de vidro; não continha menos de oitenta e duas plantas, consistindo em doze monocotiledóneas, compreendendo a aveia comum, e pelo menos uma espécie de erva; e setenta dicotiledóneas, que a julgar pelas folhas novas, pertenciam a três espécies distintas pelo menos. Tais factos autorizam-nos a concluir que as numerosas aves que são anualmente arrastadas pelas tempestades a distâncias consideráveis no mar, assim como as que emigram cada ano, os milhões de codornizes que atravessam o Mediterrâneo, por exemplo, devem ocasionalmente transportar algumas sementes escondidas na lama que lhes adere ao bico e às patas. Mas breve voltarei a este assunto.

Sabe-se que os gelos flutuantes são muitas vezes carregados de pedras e de terra, e que mesmo se têm encontrado tojos, ossos e o ninho de uma ave terrestre; não seria lícito duvidar-se pois, que não possam algumas vezes, assim como o sugere Lyell, transportar sementes de um ponto para outro das regiões árcticas e antárcticas. Durante o período glaciário, este meio de disseminação pôde estender-se aos nossos países actualmente temperados. Nos Açores, o número considerável das plantas europeias, em comparação das que crescem nas outras ilhas do Atlântico mais próximas do continente, e os seus caracteres algum tanto setentrionais para a latitude em que vivem, como o frisou M. H. C. Watson, levam-me a crer que estas ilhas deviam ter sido povoadas em parte por sementes conduzidas pelos gelos durante a época glaciária. A meu pedido, sir C. Lyell escreveu a M. Hartung a perguntar-lhe se tinha observado blocos erráticos nestas ilhas, e este respondeu que vira com efeito grandes fragmentos de granito e de outras rochas que se não encontravam no arquipélago. Podemos, pois, concluir que os gelos flutuantes depositaram outrora as suas cargas de pedra sobre as costas destas ilhas oceânicas, e que, por consequência, é muito possível que tivessem conduzido também sementes de plantas setentrionais.

Se se pensa que estes diversos modos de transporte, assim como outros que, sem dúvida alguma, estão ainda por descobrir, têm actuado constantemente desde milhares e milhares de anos, seria verdadeiramente maravilhoso que um grande número de plantas não fossem transportadas a grandes distâncias. Qualificam-se estes meios de transporte com o termo pouco correcto de acidentais; com efeito, as correntes marítimas, assim como a direcção dos ventos dominantes, não são acidentais. É necessário observar que há poucos modos de transporte aptos a levar grãos a distâncias muito consideráveis, porque as sementes não conservam a sua vitalidade quando são submetidas durante um tempo muito prolongado à acção da água salgada, e não podem ficar muito tempo no papo ou no intestino das aves. Estes meios podem, todavia, bastar para os transportes ocasionais através de um braço de mar de algumas centenas de quilómetros, ou de ilha para ilha, ou de um continente para uma ilha vizinha, mas não de um continente para outro muito afastado. A sua intervenção não deve, pois, trazer a mistura de floras de continentes muito distantes, e estas floras devem ter ficado distintas como o são hoje, com efeito. As correntes, em virtude da sua direcção, não transportarão jamais sementes da América do Norte para a Inglaterra, se bem que as possam conduzir e conduzem, em verdade, das Antilhas até às nossas costas de oeste, onde, se não estavam já danificadas pela sua longa permanência na água salgada, não poderiam, além disso, suportar o nosso clima. Todos os anos, uma ou duas aves terrestres são lançadas pelo vento, através de todo o Atlântico, desde a América do Norte até às nossas costas ocidentais da Irlanda e da Inglaterra; mas estes raros viajantes só poderiam transportar sementes que encerrasse a lama aderente às patas e ao bico, circunstância que pode ser ùnicamente muito acidental. Mesmo no caso em que ela se apresentasse, a probabilidade de que esta semente caísse em solo favorável, e chegasse à maturação, seria muito fraca. Seria não obstante um erro grave concluir que uma ilha muito povoada, como a Grã-Bretanha, não tenha, tanto como se sabe, e o que é além disso bastante difícil de provar, recebido durante os últimos séculos, por um ou outros destes modos ocasionais de transporte, imigrantes da Europa ou de outros continentes, como uma ilha pobremente povoada, posto que mais afastada da terra firme, não pudesse receber, por meios semelhantes, colonos vindos de outras partes. É possível que, em cem espécies de animais ou de sementes transportadas a uma ilha, mesmo pobre em habitantes, se encontrasse uma bem adaptada à nova pátria para aí se neutralizar; isto, porém, não seria, a meu ver, um argumento valioso contra o que se pode ter efectuado por meios ocasionais de transporte no decorrer tão longo das épocas geológicas, durante o lento levantamento de uma ilha e antes que fosse suficientemente povoada. Num terreno ainda estéril, que nem insecto nem ave destruidora habita, uma semente, uma vez chegada, germinaria e sobreviveria provàvelmente, com a condição todavia de o clima lhe não ser absolutamente contrário.

DISPERSÃO DURANTE PERIODO GLACIÁRIO editar

A identidade de muitas plantas e animais que vivem nos cumes das cadeias de montanhas, separadas por planícies de centenas de milhas, nas quais as espécies alpinas não poderiam existir, é um dos casos mais frisantes de espécies idênticas viverem em pontos muito afastados, sem que se possa admitir a possibilidade da sua migração de um a outro destes pontos. É realmente um facto notável ver tantas plantas da mesma espécie viver nos nevados vértices dos Alpes e dos Pirenéus, ao mesmo tempo que no extremo norte da Europa; mas mais extraordinário é ainda que as plantas das montanhas Brancas, nos Estados Unidos, sejam todas semelhantes às do Lavrador e quase semelhantes, como nos ensina Asa Gray, às das montanhas mais elevadas da Europa. Já, em 1747, a observação dos factos deste género levou Gmelin a concluir que houve criação independente de uma mesma espécie em muitos pontos diferentes; e talvez seria necessário ficar nesta hipótese, se os estudos de Agassiz e de outros não tivessem chamado cuidadosa atenção para o período glaciário, que, como acabamos de ver, forneceu uma explicação muito simples desta ordem de factos. Temos as provas mais variadas, orgânicas e inorgânicas, de que, num período gerológico recente, a Europa central e a América do Norte sofreram um clima árctico. As ruínas de uma casa consumida pelo fogo não frisam mais claramente a catástrofe que a destruiu do que as montanhas da Escócia e do País de Gales, com os seus flancos trabalhados, as suas superfícies polidas e os seus blocos erráticos, testemunham a presença das geleiras que ùltimamente ainda ocupavam os vales. O clima da Europa tem mudado tão consideràvelmente que, no norte da Itália, os cômoros gigantescos deixados pelas antigas geleiras estão actualmente cobertos de vinhas e milheirais. Numa grande parte dos Estados Unidos, blocos erráticos e rochas estriadas revelam claramente a existência passada de um período de frio.

Vamos indicar, em poucas palavras, a influência que exerceu outrora a existência de um clima glacial na distribuição dos habitantes da Europa, segundo a admirável análise feita por E. Forbes. Para melhor compreender as modificações causadas por este clima, supusemos a aparição de um novo período glaciário começando lentamente, depois desaparecendo, como devia ter produzido outrora. À medida que o frio aumenta, as zonas mais meridionais tornam-se mais próprias para receber os habitantes do Norte; estes dirigem-se para aí e substituem as formas das regiões temperadas que lá se encontravam primeiramente. Estas últimas, por seu turno e pela mesma razão, descem cada vez mais para o Sul, salvo se forem impedidas por algum obstáculo, caso em que morrem. Cobrindo-se as montanhas de neves e de gelo, as formas alpinas descem para as planícies, e, quando o frio tiver atingido o seu máximo, uma fauna e uma flora árcticas ocuparão toda a Europa central até aos Alpes e Pirenéus, estendendo-se mesmo até Espanha. As partes actualmente temperadas dos Estados Unidos seriam igualmente povoadas de plantas e animais árcticos, que seriam quase idênticas às da Europa; porque os habitantes actuais da zona glacial. que, por toda a parte, teriam emigrado para o sul, são notàvelmente uniformes em volta do pólo.

Na volta do calor, as formas árcticas retirar-se-ão para o norte, seguidas na retirada pelas produções das regiões mais temperadas. A medida que a neve deixar o sopé das montanhas, as formas árcticas apoderar-se-ão deste terreno livre, e subirão sempre cada vez mais pelos flancos à medida que, aumentando o calor, a neve se funda a uma maior altura, enquanto que as outras continuarão a subir para o norte. Por conseguinte, quando o calor voltar por completo, as mesmas espécies que tiverem vivido precedentemente nas planícies da Europa e da América do Norte encontrar-se-ão tanto nas regiões árcticas do antigo e do novo mundo, como nos vértices de montanhas muito afastadas entre si.

Assim se explica a identidade de numerosas plantas que habitam pontos muito distantes como são as montanhas dos Estados Unidos e as da Europa. Assim se explica também o facto de muitas plantas alpinas de cada cadeia de montanhas se ligarem mais particularmente às formas árcticas que vivem mais ao norte, exactamente ou quase exactamente nos mesmos graus de longitude; porque as emigrações provocadas pela chegada do frio, e o movimento contrário resultante da vinda do calor, deviam ter-se geralmente produzido do norte para o sul e do sul para o norte. Assim. as plantas alpinas da Escócia, segundo as observações de M. II. C. Watson, e as dos Pirenéus segundo Ramond, aproximam-se sobretudo das plantas do norte da Escandinávia; as dos Estados Unidos, as do Lavrador, e as das montanhas da Sibéria, das das regiões árcticas deste pais. Estas deduções, baseadas na existência bem demonstrada de uma época glaciária anterior, parecem explicar-me de uma maneira tão satisfatória a distribuição actual das produções alpinas e árcticas da Europa e da América, que, quando encontramos, noutras regiões, as mesmas espécies sobre cumes afastados, podemos quase concluir, sem outra prova, a existência de um clima mais frio, que permitiu outrora a sua migração através das baixas planícies intermediárias, tornadas actualmente mais quentes para elas.

Durante a sua migração para o sul e a sua retirada para o norte, causadas pela mudança de clima, as formas árcticas não deviam ter sido expostas, mais tempo do que a viagem, a uma grande diversidade de temperatura; além disso, como deviam ter sempre avançado em massa, as suas relações mútuas não foram alteradas sensivelmente. Daqui resulta que estas formas, segundo os princípios que temos estabelecido nesta obra, não deviam ter sido submetidas a grandes modificações. Mas, com respeito às produções alpinas, isoladas desde a época da volta do calor, a princípio no sopé das montanhas, depois no vértice, o caso devia ter sido diferente. Não é provável, com efeito, que precisamente as mesmas espécies árcticas tenham ficado nos vértices muito afastados uns dos outros e tenham podido em seguida sobreviver aí. Sem dúvida, ter-se-iam misturado com as espécies alpinas mais antigas que, habitando as montanhas antes do começo da época glaciária, deviam, durante o período de maior frio, ter descido à planície. Enfim, devem também ter sido expostas a influências climatéricas um pouco diversas. Estas variadas causas devem ter perturbado as suas relações mútuas, e são por isso tornadas susceptíveis de modificações. É o que notamos com efeito, se compararmos entre si as formas alpinas de animais e plantas de diversas grandes cadeias de montanhas europeias; porque, ainda que muitas espécies fiquem idênticas, umas oferecem os caracteres de variedades, outras os de formas duvidosas ou subespécies; outras, enfim, os de espécies distintas, se bem que muito estreitamente aliadas e representando-se mutuamente nas diversas estações que ocupam.

No exemplo que precede, supus que, no começo da nossa época glaciária imaginária, as produções árcticas eram também uniformes como o são em nossos dias nas regiões que cercam o pólo. Mas é necessário supor igualmente que muitas das formas subárcticas e mesmo algumas formas dos climas temperados. eram idênticas em todo o globo, porque se encontram espécies idênticas nas encostas inferiores das montanhas e nas planícies, tanto na Europa como na América do Norte. Ora, poderia perguntar-se como explico esta uniformidade das espécies subárcticas e das espécies temperadas na origem da verdadeira época glaciária. Actualmente, as formas pertencendo a estas duas categorias, no velho e no novo mundo, são separadas pelo oceano Atlântico e pela parte setentrional do oceano Pacífico. Durante o período glaciário, quando os habitantes do antigo e novo mundo viviam mais ao sul que hoje, deviam ser ainda mais completamente separadas pelos mais vastos oceanos. De modo que se pode perguntar com razão como as mesmas espécies têm podido introduzir-se em dois continentes afastados. Creio que este facto pode explicar-se pela natureza do clima que devia ter precedido a época glaciária. Nesta época, isto é, durante o período do novo pliocénio, os habitantes do mundo eram, na grande maioria, especificamente os mesmos de hoje, e temos toda a razão de acreditar que o clima era mais quente do que actualmente. Podemos supor, por consequência, que os organismos que vivem agora numa latitude de 60° devem ter, durante o período pliocénio, vivido mais perto do círculo polar, a 66 ou 67 graus de latitude, e que as produções árcticas actuais ocupavam as terras esparsas mais aproximadas do pólo. Ora, se examinarmos uma esfera, vemos que, no círculo polar, as terras são quase contínuas desde o oeste da Europa, pela Sibéria, até à América oriental. Esta continuidade das terras circumpolares, junta a uma grande facilidade de migração, resultando de um clima mais favorável, pode explicar a suposta uniformidade das produções subárcticas e temperadas do antigo e do novo mundo numa época anterior à do período glaciário.

Julgo poder admitir, em face das razões precedentes, que os nossos continentes ficaram desde muito tempo quase na mesma posição relativa, se bem que tivessem sofrido grandes oscilações de nível; estou, pois, muito disposto a estender a ideia acima desenvolvida, e a concluir que, durante um período anterior e ainda mais quente, tal como o antigo pliocénio, um grande número de plantas e animais semelhantes habitaram a região quase continua que cerca o pólo. Estas plantas e estes animais. devem ter, nos dois mundos, começado a emigrar lentamente para o sul, à medida que a temperatura baixava, muito tempo antes do começo do período glaciário. São, creio eu, os seus descendentes, modificados por toda a parte, que ocupam agora as porções centrais da Europa e dos Estados Unidos. Esta hipótese permite-nos compreender o parentesco, aliás muito afastado da identidade, que existe entre as produções da Europa e as dos Estados Unidos; parentesco muito notável, vista a distância que existe entre os dois continentes, e a separação por um oceano tão considerável como o Atlântico. Compreendemos igualmente este facto singular, notado por muitos observadores, que as produções dos Estados Unidos e as da Europa eram mais vizinhas entre si durante os últimos estádios da época terciária do que o são hoje. Com efeito, durante estes períodos mais quentes, as partes setentrionais do velho e do novo mundo deviam ter sido quase completamente reunidas por terras que serviram de verdadeiras pontes, permitindo as migrações recíprocas dos seus habitantes, pontes que o frio interceptou em seguida totalmente.

O calor decrescendo lentamente durante o período pliocénio, as espécies comuns ao velho e ao novo mundo deviam ter emigrado para o sul; desde que passaram os limites do círculo polar, toda a comunicação entre elas foi interceptada, e esta separação, sobretudo no que diz respeito às produções correspondentes a um clima mais temperado, devia realizar-se numa época mais remota. Descendo para o sul, devem as plantas e os animais, numa destas regiões, ter-se misturado com as produções indígenas da América, e entrar em concorrência com elas, e, numa outra grande região, com as produções do velho mundo. Encontramos, pois, aí todas as condições requeridas para modificações bem mais consideráveis que para as produções alpinas, que ficaram, desde uma época mais recente, isoladas pelas diversas cadeias de montanhas e nas regiões árcticas da Europa e da América do Norte. Resulta que, quando comparamos umas com outras as produções actuais das regiões temperadas do velho e do novo mundo, encontramos muito poucas espécies idênticas, se bem que Asa Gray tenha recentemente demonstrado que há muitas mais do que se supunha outrora; mas, ao mesmo tempo, encontramos, em todas as grandes classes, um número considerável de formas que alguns naturalistas julgam como raças geográficas, e outros como espécies distintas; encontramos, enfim, um conjunto de formas estreitamente aliadas ou representativas, que todos os naturalistas concordam em considerar como especificamente distintas.

O mesmo sucede tanto no mar como na terra; a lenta migração para o sul de uma fauna marítima, cercando quase uniformemente as costas contínuas situadas debaixo do círculo polar na época pliocénia, ou mesmo numa época ou pouco anterior, permite-nos tomar nota, segundo a teoria da modificação, da existência de um grande número de formas aliadas, vivendo actualmente em mares completamente separados. É assim que podemos explicar a presença nas costas ocidental e oriental da parte temperada da América do Norte, de formas estreitamente aliadas existindo ainda ou que foram extintas durante o período terciário; e o facto ainda mais frisante da presença de muitos crustáceos, descritos na admirável obra de Dana, de peixes e de outros animais marinhos estreitamente aliados, no Mediterrâneo e nos mares do Japão, duas regiões que são actualmente separadas por todo um continente, e por imensos oceanos.

Estes exemplos de parentesco íntimo entre espécies que habitaram ou habitam ainda os mares das costas ocidentais e orientais da América do Norte, do Mediterrâneo, dos mares do Japão e das zonas temperadas da América e da Europa, não podem explicar-se pela teoria das criações independentes. É impossível sustentar que estas espécies receberam logo na sua criação caracteres idênticos, em razão da semelhança das condições físicas dos meios; porque, se compararmos por exemplo certas partes da América do Sul com outras partes da África meridional ou da Austrália, vemos países de que todas as condições físicas são exactamente análogas, mas de que os habitantes são inteiramente diferentes.

PERÍODOS GLACIÁRIOS ALTERNANTES AO NORTE E AO SUL editar

Para chegar ao nosso assunto principal, estou convencido que pode largamente generalizar-se a hipótese de Forbes. Encontramos, na Europa, as mais evidentes provas da existência de um período glaciário, desde as costas ocidentais da Inglaterra até à cadeia do Ural, e até aos Pirenéus ao sul. Os mamíferos congelados e a natureza da vegetação das montanhas da Sibéria testemunham o mesmo facto: O Dr. Hooker afirma que o eixo central do Líbano foi outrora coberto de neves eternas, alimentando geleiras que desciam de uma altura de 4 000 pés para os vales. O mesmo observador descobriu recentemente imensas orlas no nível mais elevado da cadeia do Atlas, na África setentrional. Nos flancos do Himalaia, nos pontos afastados entre si de 1 450 quilómetros, as geleiras têm deixado os vestígios da sua descida gradual nos vales; no Sikhim, o Dr. Hooker viu nascer milho nas velhas e gigantescas encostas. Ao sul do continente asiático, do outro lado do equador, as sábias pesquisas do Dr. J. Haast e do Dr. Hector ensinam-nos que imensas geleiras desceram outrora a um nível relativamente pouco elevado na Nova Zelândia; o Dr. Hooker encontrou nesta ilha, sobre as montanhas mais distantes entre si, plantas análogas que testemunham também a existência de um antigo período glaciário. Resulta dos factos que me foram comunicados pelo reverendo W. B. Clarke, que as montanhas do ângulo sudesde da Austrália têm também vestígios de uma acção glaciária antiga.

Na metade setentrional da América tem-se observado, na costa oriental deste continente, blocos de rochedos transportados pelos gelos para o sul até 36 ou 37 graus de latitude, e, sobre as costas do Pacífico, em que o clima é actualmente tão diferente, até 46 graus de latitude. Têm-se notado também blocos erráticos nas Montanhas Rochosas. Nas Cordilheiras da América do Sul, quase no equador, as geleiras desciam outrora muito abaixo do seu nível actual. Examinei, no Chile central, um imenso montão de detritos contendo grandes blocos erráticos, atravessando o vale de Portillo, restos sem dúvida alguma de uma gigantesca moreia. M. D. Forbes diz-me que encontrou em diversos pontos das Cordilheiras, a uma altura de 12 000 pés aproximadamente, entre os graus 13° e 30° de latitude sul, rochas profundamente estriadas, semelhantes às que estudou na Noruega e igualmente grandes massas de detritos encerrando calhaus estriados. Não existe actualmente, em todo este espaço das Cordilheiras, mesmo a alturas bem mais consideráveis, nenhuma geleira verdadeira. Mais ao sul, nas duas costas do continente, desde o grau 41° de latitude até à extremidade meridional, encontram-se as mais evidentes provas de uma antiga acção glaciária na presença de numerosos e imensos blocos erráticos, que foram transportados muito longe das localidades de onde provieram.

A extensão da acção glaciária em torno de todo o hemisfério boreal e do hemisfério austral; um pouco de antiguidade, no sentido geológico do termo, do período glaciário num e noutro hemisfério; a sua duração considerável, avaliada pela importância dos efeitos que produziu; enfim, o nível inferior a que as geleiras baixaram recentemente a todo o comprimento das Cordilheiras, são outros tantos factos que me levaram noutro tempo a pensar que provavelmente a temperatura de todo o globo devia, durante o período glaciário, ter baixado de uma maneira simultânea. Mas M. Croll procurou recentemente demonstrar, numa admirável série de memórias, que o estado glacial de um clima é o resultado de diversas causas físicas, determinadas por um aumento na excentricidade da órbita da Terra. Todas estas causas tendem ao mesmo fim, mas a mais poderosa parece ser a influência da excentricidade da órbita sobre as correntes oceânicas. Resulta dos estudos de M. Croll que períodos de resfriamento voltam regularmente todos os dez ou quinze mil anos; mas que em intervalos muito mais consideráveis, em seguida a certas eventualidades, de que a mais importante, como o demonstrou sir C. Lyell, é a posição relativa da terra e das águas, o frio torna-se extremamente rigoroso. M. Croll julga que o último grande período glaciário sobe a 240 000 anos e durou, com ligeiras variações de clima, cerca de 160 000 anos. Quanto aos períodos glaciários mais antigos, muitos geólogos estão convencidos, e fornecem a este respeito provas directas, que deviam ter-se produzido durante as épocas miocénia e eocénia, sem falar das formações mais antigas. Mas, para voltar ao assunto imediato da nossa discussão, o resultado mais importante a que chegou M. Croll é que, quando o hemisfério boreal atravessa um período de esfriamento, a temperatura do hemisfério austral eleva-se sensivelmente; os invernos tornam-se menos rudes, principalmente em seguida a alterações na direcção das correntes do Oceano. Dá-se o inverso no hemisfério boreal, quando o hemisfério austral passa por seu turno por um período glaciário. Estas conclusões lançam tanta luz na distribuição geográfica, que estou disposto a aceitá-las; mas começo pelos factos que reclamam uma explicação.

O Dr. Hooker demonstrou que, na América do Sul, além de um grande número de espécies estreitamente aliadas, cerca de quarenta ou cinquenta plantas fanerogâmicas da Terra do Fogo, constituindo uma parte importante da magra flora desta região, são comuns à América do Norte e à Europa, tão afastadas como estão estas regiões situadas nos dois hemisférios opostos. Encontra-se, nas montanhas elevadas da América equatorial, um conjunto de espécies particulares pertencendo aos géneros europeus. Gärdner encontrou nos montes Órgãos, no Brasil, algumas espécies pertencentes às regiões temperadas da Europa, espécies antárcticas, e alguns géneros dos Andes, que não existiam nas planícies quentes intermediárias. O ilustre Humboldt encontrou também, há muito tempo, na Sila de Caracas, espécies pertencendo a géneros característicos das Cordilheiras.

Em África encontram-se, nas montanhas da Abissínia, muitas formas tendo um carácter europeu e algumas representantes da flora do Cabo da Boa Esperança. Encontram-se no Cabo da Boa Esperança algumas espécies europeias que não parecem ter sido introduzidas pelo homem, e, nas montanhas, muitas formas representativas europeias que se não encontram nas partes intertropicais da África. O Dr. Hooker também recentemente demonstrou que muitas plantas habitando as partes superiores da ilha de Fernando Pó, assim como as montanhas vizinhas dos Camarões, no golfo da Guiné, se aproximam estreitamente das que vivem nas montanhas da Abissínia e também das plantas da Europa temperada. O Dr. Hooker diz-me, além disso, que algumas dessas plantas, pertencentes a regiões temperadas, foram descobertas pelo reverendo F. Lowe nas montanhas das ilhas de Cabo Verde. Esta extensão das mesmas formas temperadas, quase no equador, através de todo o continente africano até às montanhas do arquipélago de Cabo Verde, é sem contestação um dos casos mais frisantes que se conhecem quanto à distribuição das plantas.

No Himalaia e nas cadeias de montanhas isoladas da península indiana, nas alturas de Ceilão e nos cones vulcânicos de Java, encontram-se muitas plantas, quer idênticas, quer representando-se reciprocamente, e, ao mesmo tempo, representando plantas europeias, mas que não aparecem nas regiões baixas e quentes intermédias. Uma lista dos géneros recolhidos nos picos mais elevados de Java parece formar uma colecção feita numa colina da Europa. Um facto ainda mais frisante, é encontrarem-se formas especiais à Austrália, representadas por certas plantas que crescem nos píncaros das montanhas de Bornéu. Segundo o Dr. Hooker, algumas destas formas australianas estendem-se ao longo das elevações da península de Malaca, e são muito pouco disseminadas numa parte da India, e, demais, tão longe para o norte como o Japão.

O Dr. F. Müller descobriu muitas espécies europeias nas montanhas da Austrália meridional; outras espécies, não introduzidas pelo homem, encontram-se nas regiões baixas; e, segundo o Dr. Hooker, poderia confeccionar-se uma grande lista de géneros europeus que existem na Austrália, e que, contudo, não existem nas regiões tórridas intermédias. Na admirável Introdução à flora da Nova Zelândia, o Dr. Hooker indica factos análogos e não menos característicos às plantas desta grande ilha. Vemos, pois, que certas plantas vivendo nas mais altas montanhas dos trópicos em todas as partes do globo e nas planícies das regiões temperadas, nos dois hemisférios do norte e do sul, pertencem às mesmas espécies, ou são variedades das mesmas espécies. É necessário observar, todavia, que estas plantas não são rigorosamente formas árcticas, porque, assim como o faz notar M. H. C. Watson «à medida que se desce das latitudes polares para o equador, as floras das montanhas, ou floras alpinas, perdem cada vez mais os seus caracteres árcticos». Demais a mais estas formas idênticas e muito estreitamente aliadas, muitas espécies, habitando estes mesmos pontos tão completamente separados, pertencem aos géneros que se não encontram actualmente nas baixas regiões tropicais intermédias.

Estas breves notas aplicam-se apenas às plantas; poder-se-iam, todavia, citar alguns factos análogos relativos aos animais terrestres. Estas mesmas notas aplicam-se igualmente aos animais marinhos; ou poderia citar, por exemplo, uma asserção de uma grande autoridade, o professor Dana: «É certamente curioso ver, diz ele, que os crustáceos da Nova Zelândia tenham com os da Inglaterra, seus antípodas, uma semelhança mais estreita que com os de toda a outra parte do globo». Sir J. Richardson fala também da reaparição nas costas da Nova Zelândia, da Tasmânia, etc., de formas de peixes todas setentrionais. O Dr. Hooker ensina-me que vinte e cinco espécies de algas, comuns à Nova Zelândia e à Europa, não se encontram nos mares tropicais intermédios.

Os factos que precedem, isto é, a presença de formas temperadas nas regiões elevadas de toda a Africa equatorial, da península indiana até Ceilão e arquipélago malaio, e, de uma maneira menos característica, nas vastas regiões da América tropical do Sul, autorizam-nos a pensar que em época remota, provavelmente durante a parte mais fria do período glaciário, as baixas regiões equatoriais destes grandes continentes foram habitadas por um número considerável de formas temperadas. Nesta época, é provável que ao nível do mar o clima fosse então no equador o que é hoje na altitude de 5 000 a 6 000 pés, ou talvez mesmo ainda um pouco mais frio. Durante este período muito frio, as regiões baixas no equador deviam ter sido cobertas por uma vegetação mista tropical e temperada, semelhante à que, segundo o Dr. Hooker, tapeta com exuberância os cabeços inferiores do Himalaia na altura de 4 000 a 5 000 pés, mas talvez com uma preponderância ainda maior de formas temperadas. Igualmente ainda M. Mann encontrou que formas europeias temperadas começam a aparecer a 5 000 pés de altura aproximadamente, na ilha montanhosa de Fernando Pó, no golgo da Guiné. Nas montanhas do Panamá, o Dr. Seemann encontrou, a 2 000 pés de altura sòmente, uma vegetação semelhante à do México, e apresentando uma «harmoniosa miscelânia de formas da zona tórrida com as das regiões temperadas».

Vejamos agora se a hipótese de M. Croll sobre um período mais quente no hemisfério austral, enquanto que o hemisfério boreal sofria o frio intenso da época glaciária, lança alguma luz sobre esta distribuição, inexplicável na aparência, dos diversos organismos nas partes temperadas dos dois hemisférios, e sobre as montanhas das regiões tropicais. Medido em anos, o período glaciário deve ter sido muito longo, mais que suficiente, numa palavra, para explicar todas as migrações, se se considerar quão poucos séculos são necessários para que certas plantas e certos animais naturalizados se espalhem em imensos espaços. Sabemos que as formas árcticas invadiram as regiões temperadas à medida que a intensidade do frio aumentava, e, depois destes factos que acabamos de citar, é necessário admitir que algumas das formas temperadas mais vigorosas, mais dominantes e mais espalhadas, deviam ter então penetrado até às planícies equatoriais. Os habitantes destas planícies equatoriais devem ter, ao mesmo tempo, emigrado para as regiões intertropicais do hemisfério sul, mais quente nesta época. No declive do período glaciário, tomando os dois hemisférios gradualmente a sua temperatura precedente, ocupando as formas temperadas setentrionais, as planícies equatoriais deviam ter sido repelidas para o norte, ou destruídas e substituídas pelas formas equatoriais vindas do sul. E, contudo, muito provável que algumas dessas formas temperadas se tenham retirado para as partes mais elevadas da região; ora, se estas partes fossem bastante elevadas, teriam sobrevivido aí e aí ficariam como as formas árcticas nas montanhas da Europa. No caso mesmo em que o clima não fosse perfeitamente conveniente, deviam ter podido sobreviver, porque a mudança de temperatura devia ter sido muito lenta, e o facto de as plantas transmitirem aos descendentes aptidões constitucionais diferentes para resistir ao calor e ao frio, prova que possuem incontestàvelmente uma certa aptidão à aclimatação.

Se o curso regular dos fenómenos trouxesse um período glaciário no hemisfério austral e superabundância de calor no hemisfério boreal, as formas temperadas meridionais deviam por seu turno ter invadido as planícies equatoriais. As formas setentrionais, outrora vivendo nas montanhas, deviam ter descido então e ter-se misturado com as formas meridionais. Estas últimas, na volta do calor, deviam ter-se retirado para o seu antigo habitat, deixando algumas espécies nos cumes, e arrastando consigo para o sul algumas das formas temperadas do norte que tinham descido das suas posições elevadas nas montanhas. Devemos, pois, encontrar algumas espécies idênticas nas zonas temperadas boreais e austrais e nos vértices das montanhas das regiões tropicais. Mas as espécies exiladas assim durante tanto tempo nas montanhas, ou num outro hemisfério, devem ter sido obrigadas a entrar em concorrência com as numerosas formas novas e encontraram-se expostas a condições físicas um pouco diferentes; estas espécies, por tais motivos, devem ter sofrido grandes modificações, e devem actualmente existir na forma de variedades ou de espécies representativas; ora, é isto o que se apresenta. É necessário também lembrar a existência de períodos glaciários anteriores nos dois hemisférios, facto que nos explica, segundo os mesmos princípios, o número de espécies distintas que habitam regiões análogas muito afastadas entre si, espécies pertencendo a géneros que se não encontram já hoje nas zonas tórridas intermédias.

É um facto notável no qual o Dr. Hooker muito insistiu com respeito à América, e Afonso de Candolle a respeito da Austrália, que um número muito maior de espécies idênticas ou levemente modificadas emigrou do norte para o sul do que do sul para o norte. Encontram-se, contudo, muitas formas meridionais nas montanhas de Bornéu e da Abissínia. Julgo que esta migração mais considerável do norte para o sul é devida à maior extensão de terras no hemisfério boreal e à maior quantidade de formas que as habitam; estas formas, por isso, devem ter-se encontrado, devido à selecção natural e à concorrência mais activa, num estado de perfeição superior, que lhes terá assegurado a preponderância sobre as formas meridionais. Também, quando as duas categorias de formas se misturaram nas regiões equatoriais, durante as alternativas dos períodos glaciários, as formas setentrionais, mais vigorosas, encontraram-se mais aptas a guardar o seu lugar nas montanhas, e em seguida avançar para o sul com as formas meridionais, enquanto que estas não têm podido subir para o norte com as formas setentrionais. É assim que vemos hoje numerosas produções europeias invadir o Prata, a Nova Zelândia, e, em grau menor, a Austrália, e vencer as formas indígenas; enquanto que muito poucas formas meridionais se naturalizam no hemisfério boreal, se bem que se tenham abundantemente importado do Prata para a Europa, há dois ou três séculos, e, nos quarenta e cinco últimos anos, da Austrália, peles, lãs e outros objectos de natureza a ocultar sementes. Os montes Nillgherrias da India oferecem, contudo, uma excepção parcial; porque, assim como mo diz o Dr. Hooker, neles se naturalizam as formas australianas. Não há dúvida que antes do último período glaciário as montanhas intertropicais foram povoadas por formas alpinas endémicas; mas essas por quase toda a parte foram substituídas por formas mais dominantes, produzidas nas regiões mais extensas e nos laboratórios mais activos do norte. Em muitas ilhas, as produções indígenas são quase igualadas ou mesmo já ultrapassadas por formas estrangeiras aclimatadas; circunstância que é o primeiro passo dado para a sua extinção completa. As montanhas são ilhas na terra firme, e os seus habitantes cederam o lugar aos provenientes das regiões mais vastas do norte, como os habitantes das verdadeiras ilhas por toda a parte têm desaparecido e desaparecerão ainda diante das formas continentais aclimatadas pelo homem.

Os mesmos princípios se aplicam à distribuição dos animals terrestres e das formas marinhas, tanto nas zonas temperadas do hemisfério boreal e do hemisfério austral como nas montanhas intertropicais. Quando, durante o apogeu do período glaciário, as correntes oceânicas eram muito diferentes do que hoje são, alguns habitantes dos mares temperados puderam atingir o equador. Um pequeno número de entre estes pôde talvez avançar imediatamente para o sul mantendo-se nas correntes mais frias, enquanto que outros ficaram estacionários em profundidades em que a temperatura era menos elevada e aí sobreviveram até que um período glaciário, começando no hemisfério austral, lhes permitisse continuar a sua marcha ulterior para o sul. As coisas passar-se-iam da mesma maneira como para esses espaços isolados que, segundo Forbes, existem em nossos dias nas partes mais profundas dos nossos mares temperados, partes povoadas de produções árcticas.

Estou longe de acreditar que as hipóteses que precedem tirem todas as dificuldades que apresentam a distribuição e as afinidades das espécies idênticas e aliadas que vivem hoje a tão grandes distâncias nos dois hemisférios e algumas vezes nas cadeias de montanhas intermédias. Não se saberiam traçar as rotas exactas das migrações, nem dizer porque certas espécies que não outras têm emigrado; porque certas espécies se modificaram e produziram formas novas, enquanto que outras ficaram intactas. Não podemos esperar a explicação de factos desta natureza senão quando soubermos dizer a razão de o homem poder aclimatar num país estranho esta e não aquela espécie; a razão de uma espécie se espalhar duas ou três vezes mais longe, ou ser duas ou três vezes mais abundante que outra, se bem que ambas estejam colocadas nas suas condições naturais.

Ficam ainda diversas dificuldades especiais para resolver: a presença, por exemplo, segundo o Dr. Hooker, das mesmas plantas em pontos prodigiosamente afastados tais como a terra de Kerguélen, a Nova Zelândia e a Terra do Fogo; mas, como sugere Lyell, os gelos flutuantes podem ter contribuído para a sua dispersão. A existência, em certos pontos e em muitos outros ainda do hemisfério austral, de espécies que, posto que distintas, fazem parte de géneros exclusivamente restritos a este hemisfério, constitui um facto ainda mais notável. Algumas destas espécies são tão distintas, que não podemos supor que o tempo decorrido desde o começo do último período glaciário tenha sido suficiente para a sua migração e para que as modificações necessárias tenham podido efectuar-se. Estes factos parecem-me indicar que espécies distintas pertencendo aos mesmos géneros têm emigrado de um centro comum seguindo linhas radiadas, e me levam a crer que, no hemisfério austral, do mesmo modo que no hemisfério boreal, o período glaciário foi precedido de uma época mais quente, durante a qual as terras antárcticas, actualmente cobertas de gelos, nutriram uma flora isolada e toda particular. Pode supor-se que antes de serem exterminadas durante o último período glaciário, algumas formas desta flora foram transportadas em numerosas direcções por meios acidentais, e, com auxílio de ilhas intermediárias, em seguida submersas, para diversos pontos do hemisfério austral.

É assim que as costas meridionais da América, da Austrália, e da Nova Zelândia poderiam apresentar em comum estas formas particulares de seres organizados.

Sir C. Lyell discutiu, em páginas notáveis, em linguagem quase idêntica à minha, os efeitos das grandes alternativas do clima sobre a distribuição geográfica no universo inteiro. Acabamos de ver que a conclusão à qual chegou M. Croll, relativamente à sucessão de períodos glaciários num dos hemisférios, coincidindo com períodos de calor no outro hemisfério, junta à lenta modificação das espécies, explicar a maior parte dos factos que apresentam, na distribuição por todos os pontos do globo, as formas organizadas idênticas, e as que são estreitamente aliadas. As ondas vivas têm, durante certos períodos, corrido do norte para o sul e reciprocamente, e, nos dois casos, têm atingido o equador; mas a corrente da vida foi sempre muito mais considerável do norte para o sul do que no sentido inverso, e é, por conseguinte, a do norte que mais largamente inundou o hemisfério austral. Da mesma forma que o fluxo depõe em linhas horizontais os detritos que arrasta às praias, elevando-se mais alto nas costas em que a maré é mais forte, da mesma maneira as ondas vivas deixaram nos altos píncaros os seus fragmentos vivos, seguindo uma linha que se eleva lentamente desde as baixas planícies arcticas à grande altitude no equador. Podem comparar-se os seres diversos assim naufragados a essas tribos de selvagens que, expulsas de toda a parte, sobrevivem nas partes retiradas das montanhas de todos os países, e aí perpetuam os vestígios e a lembrança, cheia de interesse para nós, dos antigos habitantes das planícies circunvizinhas.