Origem das espécies/Objecções diversas feitas à teoria da selecção natural

CAPITULO VII


Longevidade. — As modificações não são necessàriamente simultâneas. — As modificações não prestam na aparência serviço algum directo. — Desenvolvimento progressivo. — Constância maior dos caracteres tendo a menor importância funcional. — Pretendida incompetência da selecção natural para explicar as primeiras fases de conformações úteis. — Causas que se opõem à aquisição de estruturas úteis no meio da selecção natural. — Graus de conformação com alteração de funções. — Órgãos muito diferentes nos membros de uma mesma classe, provindo por desenvolvimento de uma única e mesma origem. — Razões para não acreditar nas modificações consideráveis e súbitas.

Consagrarei este capítulo ao exame das diversas objecções que se opõem ao meu modo de pensar, o que poderá esclarecer algumas discussões anteriores; mas seria inútil examiná-las todas, porque, no número, muitas provêm de autores que se não deram ao cuidado de compreender o assunto. Assim, um distinto naturalista alemão afirma que a parte mais fraca da minha teoria reside no facto de eu considerar todos os seres organizados como imperfeitos. Ora, o que eu disse realmente, é que eles não são tão perfeitos como poderiam ser, relativamente às condições de existência; o que prova isto, é que numerosas formas indígenas têm, em algumas partes do mundo, cedido o lugar a intrusos estranhos. Mas, os seres organizados, admitindo mesmo que numa época dada tenham sido perfeitamente adaptados às suas condições de existência, só podem, quando estas mudam, conservar as mesmas relações de adaptação com a condição de se transformar; ninguém pode também contestar que as condições físicas de todos os países, assim como o número e as formas dos habitantes, têm sofrido modificações consideráveis.

Um crítico sustentou recentemente, fazendo pompa de uma grande exactidão matemática, que a longevidade é uma grande vantagem para todas as espécies, de maneira que aquele que crê na selecção natural «deve dispor a sua árvore genealógicas de maneira que todos os descendentes tenham uma longevidade maior que os seus antepassados! O nosso critico não conceberia como uma planta bisanual, ou uma forma animal inferior, pudessem penetrar num clima frio e perecer aí cada Inverno; e, contudo, em razão de vantagens adquiridas pela selecção natural, sobreviver de ano para ano pelas suas sementes ou pelos seus ovos? M. E. Ray Lankester discutiu recentemente este assunto, e concluiu, pelo menos quanto a complexidade excessiva da questão lhe permite julgar, que a longevidade está ordinàriamente em relação com o grau que ocupa cada espécie na escala da organização, e também com a soma de despesa que ocasionam tanto a reprodução como a actividade geral. Ora, estas condições devem provavelmente ter sido largamente determinadas pela selecção natural.

Conclui-se daqui que nem as plantas nem os animais conhecidos no Egipto têm experimentado alterações há três ou quatro mil anos, e o mesmo sucede provavelmente com todos os das diversas partes do globo. Mas, assim como o fez notar M. G. H. Lewes, este modo de argumentação prova bem, por que as antigas raças domésticas figuradas sobre os monumentos egípcios, ou que nos chegaram embalsamadas, se parecem muito às actuais raças vivas, e são mesmo idênticas a elas; contudo, todos os naturalistas admitem que estas raças foram produzidas pelas modificações dos tipos primitivos. Os numerosos animais que não se modificaram após o começo do período glaciário, apresentariam um argumento incomparàvelmente mais forte, porque têm sido expostos a grandes mudanças de clima e têm emigrado para grandes distâncias; ao passo que, tanto quanto o podemos saber, as condições de existência são hoje exactamente as mesmas no Egipto que eram há alguns milhares de anos. O facto de poucas ou nenhumas modificações se produzirem depois do período glaciário teria algum valor contra os que crêem numa lei inata e necessária de desenvolvimento; mas é impotente contra a doutrina da selecção natural, ou da persistência do mais apto, porque esta implica a conservação de todas as variações e de todas as diferenças individuais e vantajosas que surjam, o que somente pode acontecer em circunstâncias favoráveis.

Bronn, o célebre paleontólogo, terminando a tradução alemã da presente obra, pergunta como, sendo dado o princípio da selecção natural, pode uma variedade viver lado a lado com a espécie mãe? Se as duas formas tomam hábitos diferentes ou se são adaptadas a novas condições de existência, podem viver juntamente; porque se excluirmos, de uma parte, as espécies polimorfas nas quais a variabilidade pode ser de uma natureza muito especial, e, por outra parte, as variações simplesmente temporárias tais como o talhe, o albinismo, etc., as variedades permanentes habitam em geral, o que eu pude verificar, estações distintas, tais como as regiões elevadas ou baixas, secas ou húmidas. Além disso, no caso de animais essencialmente errantes e cruzando-se livremente, as variedades parecem ser geralmente confinadas em regiões distintas.

Bronn insiste também no facto de as espécies distintas jamais diferirem por caracteres isolados, mas sob muitas relações; pergunta como sucede que numerosos pontos do organismo tenham sido sempre modificados simultâneamente pela variação e pela selecção natural. Mas nada obriga a supor que todas as partes de um indivíduo sejam modificadas simultâneamente. As modificações mais frisantes, adaptadas de uma maneira perfeita a um dado uso, podem ser, como o havemos notado precedentemente, o resultado das variações sucessivas, ligeiras, aparecendo numa parte, depois noutra; mas, como se transmitem todas em conjunto, parecem-nos ser simultâneamente desenvolvidas. De resto, a melhor refutação a fazer a esta objecção é fornecida pelas raças domésticas que têm sido modificadas principalmente com um fim especial, por meio da selecção natural operada pelo homem. Vede o cavalo de tiro e o cavalo de corrida, ou o galgo e o cão de fila. Toda a sua estrutura e mesmo os seus caracteres intelectuais foram modificados; mas, se pudéssemos delinear cada grau sucessivo da sua transformação — o que podemos fazer para aqueles que não vão muito além no passado — verificaríamos melhoramentos e modificações ligeiras, afectando tando uma parte como outra, mas nunca alterações consideráveis e simultâneas. Mesmo quando o homem aplicou a selecção apenas a um único carácter — de que as plantas cultivadas oferecem os melhores exemplos — encontra-se invariàvelmente que se um ponto especial, quer seja a flor, o fruto ou a folhagem, sofre grandes alterações, quase todas as outras partes têm sido a sede de modificações. Podem atribuir-se estas modificações em parte ao princípio da correlação do crescimento, e em parte ao que se chama a variação espontânea.

Uma objecção mais séria feita por M. Bronn, e recentemente por M. Broca, é que muitos caracteres parecem não prestar serviço algum aos seus possuidores, e não podem, por consequência, ter dado lugar à selecção natural. Bronn cita o alongamento das orelhas e da cauda nas diferentes espécies de lebres e de ratos, os complicados sulcos do esmalte dentário existindo em muitos animais, e uma multidão de casos análogos. No ponto de vista dos vegetais, este assunto foi discutido por Nageli numa admirável memória. Admite uma acção importante da seleção natural, mas insiste sobre o facto de as familias de plantas diferirem sobretudo pelos caracteres morfológicos, que parecem não ter importància alguma para a prosperidade da espécie. Admite, por conseguinte, uma tendência inata a um desenvolvimento progressivo e mais completo. Indica a disposição das células nos tecidos, e das folhas sobre o eixo, como casos onde a selecção natural não pôde exercer acção alguma. Podem também acrescentar-se as divisões numéricas das partes da flor, a posição dos óvulos, a forma da semente, quando não favorece a sua disseminação, etc.

Esta objecção é séria. Todavia, é necessário em primeiro lugar, mostrar-se muita prudência quando se trata de determinar quais são actualmente, ou quais podem ter sido no passado as conformações vantajosas a cada espécie. Em segundo lugar, é necessário pensar que quando uma parte se modifica, outras se modificam também, em razão de causas que a custo se entrevêem, tais como o aumento ou a diminuição do excesso de nutrição de uma parte, a pressão recíproca, a influência do desenvolvimento de um órgão precoce sobre outro que se não forma a não ser mais tarde, etc. Há ainda outras causas que não compreendemos, que provocam casos misteriosos e numerosos de correlação. Para abreviar, podem agrupar-se juntamente estas influências debaixo desta expressão: leis do crescimento. Em terceiro lugar, temos de tomar em conta a acção directa e definida de alterações nas condições de existência, e também do que se chamam variações espontâneas, nas quais a natureza dos meios parece ter apenas uma influência insignificante. As variações dos rebentos, tais como a aparição de uma rosa de musgo numa roseira comum, ou de um pêssego liso num pessegueiro ordinário, oferecem bons exemplos de variações espontâneas; mas, nestes casos, se reflectirmos no poder da gota infinitesimal de veneno que produz o desenvolvimento de galhas complexas, não poderíamos estar bem certos de que as variações indicadas não são efeito de qualquer alteração local na natureza da seiva, resultando de alguma modificação dos meios. Toda a diferença individual ligeira assim como as variações mais pronunciadas, que surgissem acidentalmente, devem ter uma causa; ora, é quase certo que se esta causa desconhecida actuasse de uma forma persistente, todos os indivíduos da espécie seriam semelhantemente modificados.

Nas edições anteriores desta obra, não tenho, isto parece agora provável, atribuído bastante valor à frequência e à importância das modificações devidas à variabilidade espontânea. Mas é impossível atribuir a esta causa as inumeráveis conformações perfeitamente adaptadas aos hábitos vitais de cada espécie. Jamais posso acreditar nisto como não posso explicar por este meio a forma perfeita do cavalo de corrida ou do galgo, adaptação que maravilhava do mesmo modo os antigos naturalistas, quando o princípio da selecção pelo homem não era ainda bem compreendido.

Pode ser útil citar alguns exemplos em auxílio de algumas notas que precedem. No que diz respeito à inutilidade suposta de diversas partes e de diferentes órgãos, é apenas necessário lembrar que existem, mesmo nos animais mais elevados e melhor conhecidos, conformações bastante desenvolvidas para que ninguém ponha em dúvida a sua importância; todavia, o seu uso foi reconhecido por completo apenas recentemente. Bronn cita o comprimento das orelhas e da cauda, em muitas espécies de ratos, como exemplos, insignificantes é verdade, de diferença de conformações sem uso especial; ora, notarei que o Dr. Schöbl verifica, nas orelhas externas do rato comum, um desenvolvimento extraordinário dos nervos, de tal maneira que as orelhas servem provavelmente de órgãos tácteis; o comprimento das orelhas não é pois sem importância. Veremos em breve que, em algumas espécies, a cauda constitui um órgão preênsil muito útil; o seu comprimento deve pois contribuir para exercer uma influência sobre o seu uso.

A propósito das plantas, limito-me, seguindo a memória de Nageli, às notas seguintes; admite-se, penso eu, que as flores das orquídeas apresentam uma série de conformações curiosas, que se teriam considerado, há alguns anos, como simples diferenças morfológicas sem função especial. Ora, sabe-se hoje que têm uma importância enorme para a fecundação da espécie por meio dos insectos, e que foram adquiridas provavelmente pela acção da selecção natural. Quem, até há muito pouco tempo, imaginaria que, nas plantas dimorfas e trimorfas, os comprimentos diferentes dos estames e dos pistilos, assim como a sua disposição, podiam ter alguma utilidade? Sabemos hoje que a têm e considerável.

Em certos grupos completos de plantas, os óvulos são erectos, em outros são inclinados; ora, num mesmo ovário de certas plantas, um óvulo ocupa a primeira posição, e um segundo a segunda. Estas posições parecem a princípio puramente morfológicas, ou sem significação fisiológica; mas o Dr. Hooker diz-me que, no mesmo ovário, há somente fecundação dos óvulos superiores, em alguns casos, e dos óvulos inferiores em outros; supõe que o facto depende provavelmente da direcção que os tubos polínicos tomam penetrando no ovário. A posição dos óvulos, se assim for, mesmo quando um é erecto e o outro inclinado no mesmo ovário, resultaria da selecção de todo o ligeiro desvio na sua posição, favorável à fecundação e à produção das sementes.

Há plantas pertencendo a ordens distintas, que produzem habitualmente flores de duas espécies — umas abertas, conformação comum, outras fechadas e imperfeitas. Estas duas espécies de flores diferem de uma maneira extraordinária; podem, contudo, passar gradualmente de uma à outra na mesma planta. As flores abertas ordinárias, podendo entrecruzar-se, estão seguras de certos benefícios resultantes desta circunstância. As flores fechadas e incompletas têm algumas vezes uma alta importância, que se traduz pela produção de uma grande quantidade de sementes e uma dissipação de pólen excessivamente pequena. Como acabamos de dizer, a conformação de duas espécies de flores difere muito. Nas flores imperfeitas, as pétalas consistem quase sempre apenas em simples rudimentos, e os grãos de pólen são reduzidos em diâmetro. Na Ononis columnae cinco dos estames alternantes são rudimentares, estado que se observa também em três estames de algumas espécies de Viola, enquanto que as outras duas, apesar da sua pequenez, conservam as funções próprias. Entre trinta flores fechadas de uma violeta indiana (cujo nome me é desconhecido, não tendo as plantas produzido jamais em minha casa flores completas), em seis, encontram-se as sépalas, em vez de o número normal de cinco, reduzidas apenas a três. Em uma secção dos Malpighiaceae, as flores fechadas, segundo A. de Jussieu, são ainda mais modificadas, porque os cinco estames colocados em face das sépalas são todos atrofiados, sendo um sexto estame, situado diante de uma pétala, o único desenvolvido. Este estame não existe nas flores ordinárias das espécies nas quais o estilete está atrofiado e os ovários reduzidos a dois ou três. Hoje, posto que a selecção natural possa ter impedido o desabrochamento de algumas flores, e reduzido a quantidade de pólen tornado assim supérfluo quando está encerrado no invólucro floral, é provável que tenha contribuído apenas muito pouco para as modificações especiais pré-citadas, mas que estas modificações resultem das leis do crescimento, compreendendo a inactividade funcional de certas partes durante os progressos da diminuição do pólen e da oclusão das flores.

É tão importante apreciar bem os efeitos das leis do crescimento, que creio necessário citar alguns exemplos de um outro género: assim, as diferenças que provocam, na mesma parte ou no mesmo órgão, diferenças de situação relativa na mesma planta. No castanheiro de Espanha e em certos pinheiros, segundo Schacht, os ângulos de divergência das folhas diferem conforme os ramos que os sustentam são horizontais ou verticais. Na arruda comum e em algumas outras plantas, uma flor, ordinàriamente a flor central ou a flor terminal, abre-se primeiro, e apresenta cinco sépalas e, pétalas, e cinco divisões no ovário; enquanto que todas as outras flores são tetrâmeras. Na Adoxa inglesa, a flor mais elevada tem ordinàriamente dois lóbulos no cálice, e os outros grupos são tetrâmeros; enquanto que as flores que a cercam têm três lóbulos no cálice, e os outros órgãos são pentâmeros. Em muitas compostas e umbelíferas (e outras plantas), as corolas das flores colocadas nas circunferências são muito mais desenvolvidas que as das flores colocadas no centro; o que parece algumas vezes ligado à atrofia dos órgãos reprodutores. Um facto mais curioso, já indicado, é que se podem notar diferenças na forma, na cor e nos outros caracteres das sementes da periferia e das do centro. Nos Carthamus e outras compostas, as sementes centrais trazem sòmente um tufo; nos Hyoseris, a mesma flor produz três sementes de formas diversas. Em certas umbelíferas, segundo Tausch, as sementes exteriores são ortospérmicas, e a semente central coelospérmica; carácter que de Candolle considerava, em outras espécies, como tendo uma importância sistemática muito grande. O professor Braun menciona um género de fumariáceas no qual as flores têm, na parte inferior da espiga, pequenas avelãs ovais, aos lados, contendo uma semente; e na porção superior, silíquas lanceoladas, bivalves, contendo duas sementes. A selecção natural, tanto quanto o podemos julgar, não pôde desempenhar papel algum, ou tem desempenhado apenas um papel insignificante, nestes diversos casos, à excepção do desenvolvimento completo dos florões da periferia, que são úteis para tornar a planta vistosa e para atrair os insectos. Todas estas modificações resultam da situação relativa e da acção recíproca dos órgãos; ora, não se pode pôr em dúvida que, se todas as flores e todas as folhas da mesma planta tivessem sido submetidas às mesmas condições externas e internas, como são as flores e as folhas em certas posições, seriam todas modificadas da mesma forma.

Observamos, em muitos outros casos, modificações de estrutura, consideradas pelos botânicos como tendo a mais alta importância, que afectam somente algumas flores da planta, ou que se manifestam em plantas distintas, cruzando juntamente nas mesmas condições. Estas variações, não tendo aparència alguma de utilidade para a planta, não podem ter sofrido a influencia da selecção natural. A causa é-nos inteiramente desconhecida; não podemos mesmo atribuí-las, como as da última classe, a uma acção pouco afastada, tal como a posição relativa. Eis alguns exemplos. É tão frequente observar na mesma planta flores tetrâmeras, pentâmeras, etc., que não tenho necessidade de me demorar neste ponto; mas como as variações numéricas são comparativamente raras quando os próprios órgãos são em pequeno número, posso acrescentar que, segundo de Candolle, as flores do Papaver bracteatum possuem duas sépalas e quatro pétalas (tipo comum na papoila), ou três sépalas e seis pétalas. A forma como estas últimas são dobradas no botão è um caracter morfológico muito constante na maior parte dos grupos; mas o professor Asa Gray nota que, em algumas espécies de Mimulus, a prefloração é quase tão frequentemente a das rinantideas como a das antirrinideas, à última das quais pertence o género atrás mencionado. Augusto Saint-Hilaire indica os casos seguintes: o género Zanthoxylon pertence a uma divisão das rutáceas de um só ovário; encontra-se, contudo, em algumas espécies, muitas flores na mesma planta e mesmo em uma única panícula, tendo quer um, quer dois ovários. No Helianthemum, a cápsula foi descrita como unilocular ou trilocular; na Helianthemum mutabile, «uma lâmina mais ou menos larga se estende entre o pericarpo e placenta». Nas flores da Saponária officinalis, o Dr. Masters observou casos de placentações livres tanto marginais como centrais. Saint-Hilaire encontrou no limite extremo meridional da região que ocupa a Gomphia oleaeformis, duas formas de que não pôs a princípio em dúvida a especialidade distinta; mas encontrando-as ulteriormente no mesmo arbusto, teve de ajuntar: «Eis aqui, pois, num mesmo indivíduo, septos e um estilete que se prendem ora a um eixo vertical ora a uma ginobase».

Vemos, pelo que precede, que se pode atribuir, independentemente da selecção natural, às leis do crescimento e à acção recíproca das partes, um grande número de modificações morfológicas nas plantas. Mas pode dizer-se que, nos casos em que estas variações são tão fortemente pronunciadas, temos ante nós plantas tendentes a um estado de desenvolvimento mais elevado, segundo a doutrina de Nägeli, que crê numa tendência inata para a perfeição ou para um aperfeiçoamento progressivo? Pelo contrário, o simples facto de as partes em questão diferirem e variarem muito numa planta qualquer, não deve levar-nos a concluir que estas modificações têm muita pouca importância para ela, ainda que possam tê-la muito considerável para nós no que respeita às nossas classificações? Não se poderia dizer que a aquisição de uma parte inútil faz subir um organismo na escala natural; porque, no caso das flores fechadas e imperfeitas que descrevemos mais acima, se se invoca um princípio novo, este será de natureza retrógrada mais que progressivo; ora, o mesmo deve suceder em muitos animais parasitas e degenerados. Ignoramos a causa determinante das modificações pré-citadas; mas se esta causa desconhecida devia actuar uniformemente durante um lapso de tempo muito longo, podíamos pensar que os resultados seriam quase uniformes; neste caso, todos os indivíduos da espécie seriam modificados da mesma forma.

Não tendo os caracteres pré-citados importância alguma para a prosperidade da espécie, a selecção natural não devia nem acumular nem aumentar as ligeiras variações acidentais. Uma conformação que se desenvolveu por uma selecção durante longo tempo, torna-se ordinàriamente variável, quando cessa a utilidade que tinha para a espécie, como vemos pelos órgãos rudimentares, cessando a selecção natural nesse momento de actuar sobre estes órgãos. Mas, quando as modificações sem importância para a prosperidade da espécie têm sido produzidas pela natureza do organismo e das condições, podem transmitir-se, e parecem algumas vezes ter sido transmitidas quase no mesmo estado a uma numerosa descendência, além disso diversamente modificada. Não pode ter sido muito importante para a maior parte dos mamíferos, das aves ou dos répteis, ser cobertos de pêlos, de penas ou escamas, e contudo os pêlos são transmitidos à quase totalidade dos mamíferos, as penas a todas as aves e as escamas a todos os verdadeiros répteis. Uma conformação, qualquer que possa ser, comum a numerosas formas vizinhas, foi considerada por nós como tendo uma grande importância sistemática, e é, por consequência, muitas vezes avaliada como tendo uma importância vital essencial para a espécie. Estou pois disposto a acreditar que as diferenças morfológicas que consideramos como importantes — tais como a disposição das folhas, as divisões da flor ou do ovário, a posição dos óvulos, etc. — têm muitas vezes aparecido na origem como variações flutuantes, tornando-se constantes mais cedo ou mais tarde, em razão da natureza do organismo e das condições ambientes, assim como pelo cruzamento de indivíduos distintos, mas não em virtude da selecção natural. A acção da selecção não pode, com efeito, ter regulado nem acumulado as ligeiras variações dos caracteres morfológicos que não afectam de modo algum a prosperidade da espécie. Chegamos assim a este singular resultado, que tendo os caracteres a maior importância para o sistematista, têm apenas importância muito leve, no ponto de vista vital, para a espécie; mas esta proposição está longe de ser tão paradoxal como pode parecer à primeira vista, assim como veremos mais adiante tratando do principio genético da classificação.

Posto que não tenhamos prova alguma certa da existência de uma propensão inata dos seres organizados para um desenvolvimento progressivo, este progresso resulta necessàriamente da acção contínua da selecção natural, como procurei demonstrá-lo no quarto capítulo. A melhor definição que jamais se tenha dado da elevação a um grau mais superior dos tipos da organização, repousa sobre o grau de especialização ou diferenciação que os órgãos têm atingido; ora, esta divisão do trabalho parece ser o fim para que tende a selecção natural, porque as partes ou órgão estão neste caso dispostos a desempenhar por si mesmos as diversas funções de uma maneira sempre mais eficaz.


M. Saint-George Mivart, zoólogo distinto, reuniu recentemente todas as objecções suscitadas por mim e por outros contra a teoria da selecção natural, tal como lhe tem sido apresentada por M. Wallace e por mim, apresentando-as com muita arte e poder. Assim agrupadas, têm um aspecto formidável; ora, como não entrava no plano de M. Mivart verificar os factos e as diversas considerações contrárias às suas conclusões, é necessário que o leitor faça grandes esforços de raciocínio e de memória, se quer pesar com cuidado todos os argumentos pró e contra. Na discussão de casos especiais, M. Mivart despreza os efeitos do aumento ou da diminuição do uso das partes, de que sustentei sempre a alta importância, e que tratei mais largamente, creio eu, que qualquer outro autor, na obra Da Variação no Estado Doméstico. Afirma muitas vezes que nada atribuo à variação, fora da selecção natural, enquanto que, na obra citada, colhi um número de casos bem demonstrados e bem estabelecidos de variações, número bem mais considerável do que aquele que se poderia encontrar em qualquer obra que eu conheça. A minha opinião pode não merecer confiança, mas, depois de ter lido a obra de M. Mivart com a maior atenção, depois de ter comparado o conteúdo de cada uma das suas partes com o que tenho afirmado sobre os mesmos pontos, fiquei mais convencido do que nunca que cheguei a conclusões geralmente verdadeiras, todavia com esta reserva, que, num assunto tão complicado, estas conclusões podem ainda apresentar muitos erros parciais.

Todas as objecções de M. Mivart foram ou serão examinadas no presente volume. O novo ponto que parece ter impressionado muitos leitores é «que a selecção natural é insuficiente para explicar as fases primeiras ou nascentes das conformações úteis». Este assunto está em conexão íntima com o da gradação dos caracteres, muitas vezes acompanhada de uma alteração de funções — a conversão de uma bexiga natatória em pulmões, por exemplo — factos que discutimos no capítulo precedente em dois pontos de vista diferentes. Quero, todavia, examinar tão minuciosamente quanto possível muitos casos avançados por M. Mivart, escolhendo os mais frisantes; a falta de lugar impede-me, contudo, de os considerar a todos.

A alta estatura da girafa, o comprimento do pescoço, dos membros anteriores, da cabeça e da língua, tornam-na um animal admiràvelmente adaptado para se alimentar dos ramos elevados das árvores. Pode assim encontrar alimentos colocados fora do alcance dos outros ungulados habitando o mesmo país; o que deve, em tempo de falta, alcançar-lhe grandes vantagens. O exemplo do gado niata da América meridional prova-nos, com efeito, que uma pequena diferença basta para determinar, nos momentos de carência, uma diferença muito importante no ponto de vista da conservação da vida de um animal. Este gado come erva como os outros, mas a projecção da sua mandíbula inferior impede-o, durante as secas frequentes, de comer os ramos das árvores, as canas, etc., às quais as raças ordinárias de bois e de cavalos são, durante este período, obrigados a recorrer. Os niatas morrem então se os seus proprietários os não alimentarem. Antes de voltar às objecções de M. Mivart, creio dever explicar, uma vez ainda, como a selecção natural actua em todos os casos ordinários. O homem modificou alguns animais, sem se prender necessàriamente com os pontos especiais da conformação; produziu o cavalo de corrida ou o galgo lebreiro contentando-se em conservar e fazer reproduzir os animais mais rápidos, ou o galo de combate, consagrando à reprodução os únicos machos vitoriosos nas lutas. Além disso, para a girafa que nasceu no estado selvagem, os indivíduos mais elevados e capazes de comer uma polegada ou duas mais acima do que os outros, têm muitas vezes podido ser conservados em tempo de fome; porque têm de percorrer todo o país à procura de alimentos. Verifica-se em muitos tratados de história natural dando os extractos de medidas exactas, que os individuos de uma mesma especie diferem muitas vezes ligeiramente pelos comprimentos relativos das suas diversas partes. Estas diferenças proporcionalmente muito pequenas, devidas às leis de crescimento e da variação, não têm a menor importância ou a menor utilidade na maior parte das espécies. Mas se se têm em conta os hábitos prováveis da girafa nascente, esta última observação não pode aplicar-se, porque os indivíduos, tendo uma ou muitas partes mais alongadas que de ordinário, devem em geral ser os únicos a sobreviver. O cruzamento produziu descendentes que herdaram, quer as mesmas particularidades corporais, quer uma tendência a variar na mesma direcção; enquanto que os indivíduos menos favorecidos sob as mesmas relações devem estar mais expostos a perecer.

Vemos, pois, que não é necessário separar casais isolados, como faz o homem, quando quer melhorar sistemàticamente uma raça; a selecção natural preserva e isola assim todos os individuos superiores, permite-lhes eruzarem-se livremente e destroi todos os da ordem inferior. Por esta marcha longamente continuada, que corresponde exactamente ao que chamei a selecção inconsciente que pratica o homem, combinada sem dúvida em grande proporção com os efeitos hereditários do aumento do uso das partes, parece-me quase certo que um quadrúpede ungulado ordinário poderia converter-se em girafa.

M. Mivart opõe duas objecções a esta conclusão. Uma é que o aumento do volume do corpo reclama evidentemente um aumento de nutrição; considera então «como muito problemático que os inconvenientes resultando da insuficiência de nutrição nos tempos de carestia, não prevaleçam muito sobre as vantagens». Mas como a girafa existe actualmente em grande número na África meridional, onde abundam também algumas espécies de antílopes maiores que o boi, porque duvidaremos, no que diz respeito ao talhe, que não tenham existido outrora gradações intermediárias, expostas como hoje a rigorosas carências? É certo que a possibilidade de atingir um aumento de nutrição que os outros quadrúpedes ungulados do país deixam intacto, deve constituir alguma vantagem para a girafa em via de formação e à medida que se desenvolver. Não devemos jamais esquecer que o desenvolvimento do talhe constitui uma protecção contra quase todos os animais de presa, à excepção do leão; mesmo em frente deste último, o pescoço alongado da girafa — e quanto mais longo melhor — desempenha o papel de vigia, segundo a observação de M. Chauncey Wright. Sir S. Baker atribui a esta causa o facto de não haver animal mais difícil de caçar do que a girafa. Serve-se também do longo pescoço como de uma arma ofensiva ou defensiva, utilizando as contracções rápidas para projectar com violência a sua cabeça armada de cotos de chifres. Ora, a conservação de uma espécie não só pode ser raramente determinada por uma vantagem isolada, mas pelo conjunto de diversas vantagens, grandes e pequenas.

M. Mivart pergunta então, e é esta a sua segunda objecção, como é que, sendo a selecção natural eficaz, e constituindo a aptidão para comer a uma grande altura uma tão grande vantagem, como é que, digo eu, fora a girafa, e em menor grau o camelo, o guanaco e o macrauquénia, qualquer outro mamífero de cascos não tenha adquirido um pescoço alongado e um talhe elevado? ou ainda como é que qualquer membro do grupo não tenha adquirido uma longa tromba? A explicação é fácil no que respeita à África meridional que foi todavia povoada de numerosos rebanhos de girafas e o melhor será citar um exemplo à maneira de resposta. Em todas as campinas da Inglaterra contendo árvores, vemos que todos os ramos inferiores são mondados a uma altura horizontal correspondendo exactamente ao nível que podem atingir os cavalos ou o gado que come de cabeça levantada; ora, que vantagem teriam os carneiros que aí se tratam, se o pescoço se alongasse um pouco? Em toda a região, uma espécie come certamento mais alto do que as outras, e é quase igualmente certo que essa espécie sòmente pode adquirir também com este fim um pescoço alongado, em virtude da selecção natural, e pelos efeitos do aumento do uso. Na África meridional, a concorrência no ponto de vista do consumo dos altos ramos das acácias e de diversas outras árvores pode existir apenas entre as girafas, e não entre estes e outros animais ungulados.

Não saberia dizer-se positivamente por que, em outras partes do globo, diversos animais pertencendo à mesma ordem não adquirem nem pescoço nem tromba; mas esperar uma resposta satisfatória para uma questão deste género seria tão impertinente como perguntar o motivo por que um acontecimento da história da humanidade falta num país, enquanto que se produziu em outro. Ignoramos as condições determinantes do número e da distribuição de uma espécie, e não podemos mesmo conjecturar quais sejam as alterações de conformação próprias para favorecer o seu desenvolvimento num novo país. Contudo, podemos entrever de uma maneira geral que causas diversas podem ter impedido o desenvolvimento de um pescoço alongado ou de uma tromba. Para poder atingir a folhagem situada muito alto (sem ter necessidade de subir, o que a conformação dos ungulados torna impossível), é necessário que o volume do corpo tome um desenvolvimento considerável; ora, há países que apenas apresentam muito poucos dos grandes mamíferos, a América do Sul, por exemplo, não obstante a exuberante riqueza do país, enquanto que são abundantes num grau sem igual na Africa meridional. Não sabemos de forma alguma porque assim é nem por que os últimos períodos terciários têm sido, muito melhores do que a época actual, apropriados à existência dos grandes mamíferos. Sejam quais forem estas causas, podemos reconhecer que certas regiões e certos períodos têm sido mais favoráveis do que outros ao desenvolvimento de um mamífero tão volumoso como a girafa.

Para que um animal possa adquirir uma conformação especial bem desenvolvida, é quase indispensável que algumas outras partes do organismo se modifiquem e se adaptem a esta conformação. Posto que todas as partes do corpo variem ligeiramente, não resulta sempre que as partes necessárias o façam na direcção exacta e no grau exigido. Sabemos que as partes variam muito diferentemente em carácter e em grau nos diferentes animais domésticos, e que algumas espécies são mais variáveis do que outras. Não resulta mesmo da aparição de variações apropriadas, que a selecção natural possa actuar sobre elas e determinar uma conformação em aparência vantajosa para a espécie. Por exemplo, se o número dos indivíduos assistentes num país depende principalmente da destruição operada pelos animais de presa — pelos parasitas externos ou internos, etc. — casos que parecem apresentar-se muitas vezes, a selecção natural só pode modificar muito lentamente uma conformação em especial destinada a conseguir os alimentos; porque, neste caso, a sua intervenção é quase insensível. Enfim, a selecção natural tem uma marcha muito lenta, e exige, para produzir efeitos um pouco pronunciados, uma longa duração das mesmas condições favoráveis. É ùnicamente invocando razões tão gerais e tão vagas que podemos explicar porque, em muitas partes do globo, os mamíferos ungulados não adquirem pescoços alongados ou outros meios para comer os ramos das árvores colocados a uma certa altura.

Muitos autores têm levantado objecções análogas às que precedem. Em cada caso, fora das causas gerais que acabamos de indicar, há diversas outras que têm provavelmente impedido e embaraçado a acção da selecção natural, com respeito às conformações que se consideram como vantajosas para certas espécies. Um destes escritores pergunta porque é que o avestruz não adquiriu a faculdade de voar. Mas um instante de reflexão demonstra que enorme quantidade de nutrição seria necessária para dar a esta ave do deserto a força para mover o seu enorme corpo através do ar. As ilhas oceânicas são habitadas por morcegos e focas, mas não por mamíferos terrestres; alguns morcegos, representando espécies particulares, devem ter repousado por muito tempo no seu habitat actual. Sir C. Lyell pergunta pois (posto que respondendo por certas razões) porque é que as focas e os morcegos não têm dado origem, em tais ilhas, a formas adaptadas à vida terrestre? Mas as focas tornar-se-iam necessàriamente a princípio em animais carnívoros terrestres, de um comprimento considerável, e os morcegos em insectívoros terrestres. Não haveria presa para os primeiros; os morcegos encontrariam apenas como nutrição insectos terrestres; ora, estes últimos são já perseguidos pelos répteis e pelas aves que têm, em primeiro lugar, colonizado as ilhas oceânicas e que aí abundam. As modificações de estrutura, de que cada grau é vantajoso para a espécie variável, são apenas favorecidos em certas condições particulares. Um animal estritamente terrestre, caçando algumas vezes na baixa-mar, depois nos ribeiros e nos lagos, pode chegar a converter-se num animal assaz aquático para lutar com o Oceano. Mas não é nas ilhas oceânicas que as focas encontrariam condições favoráveis a um regresso gradual das formas terrestres. Os morcegos, como já demonstrámos, adquiriram provavelmente as asas deslizando primitivamente no ar para se transportarem de uma árvore para outra, como os supostos esquilos voantes, quer para escapar aos inimigos, quer para evitar as quedas; mas a aptidão ao verdadeiro voo, uma vez desenvolvida, jamais se reduziria, pelo menos no que diz respeito aos fins citados, de maneira a tornar menos eficaz a aptidão de pairar no ar. As asas dos morcegos poderiam, é verdade, como as de muitas aves, diminuir de tamanho ou mesmo desaparecer completamente por causa da falta de uso; mas seria necessário, neste caso, que estes animais tivessem adquirido de começo a faculdade de correr com rapidez sobre o solo por meio sòmente dos membros posteriores, de forma a poderem lutar com as aves e com os outros animais terrestres; ora, é esta uma modificação para a qual o morcego parece muito mal apropriado. Enunciamos estas conjecturas ùnicamente para demonstrar que uma transição de estrutura de que cada grau constitui uma vantagem é uma coisa muito complexa e que não há, por consequência, nada de extraordinário em que, num caso particular, qualquer transição não seja produzida.

Enfim, mais do que um autor tem perguntado porque, em certos animais mais do que em outros, o poder mental adquiriu um mais elevado grau de desenvolvimento, quando o desenvolvimento era vantajoso para todos. Por que é que os macacos não adquirem as aptidões intelectuais do homem? Poder-se-iam indicar diversas causas; mas é inútil expô-las, porque são simples conjecturas; além de que, não podemos apreciar a sua probabilidade relativa. Não se poderia esperar resposta determinante à segunda questão, porque ninguém é capaz de resolver este problema bem mais simples: porque, sendo dadas duas raças de selvagens, uma atingiu um grau muito mais elevado que a outra na escala da civilização; facto este que parece envolver um aumento de forças cerebrais.

Voltando às outras objecções de M. Mivart. Os insectos, para escapar aos ataques dos seus inimigos, semelham algumas vezes objectos diversos tais como folhas verdes ou secas, musgos secos, fragmentos de líquenes, flores, espinhos, excrementos de aves, e mesmo outros insectos vivos; terei de voltar a este ponto. A semelhança é algumas vezes admirável; não se limita à cor, mas atende-se à forma e mesmo à postura. As larvas que se sustentam imóveis sobre os ramos, onde se nutrem, têm o aspecto de ramos mortos, e fornecem assim um excelente exemplo de uma semelhança deste género. Os casos de semelhança com certos objectos, tais como os excrementos de aves, são raros e excepcionais. Sobre este ponto, diz M. Mivart: «Como, segundo a teoria de M. Darwin, há uma tendência constante a uma variação indefinida, e como as variações nascentes que daí resultam devem produzir-se em todas as direcções, devem tender a neutralizar-se reciprocamente e a formar modificações tão instáveis, que é difícil, senão impossível, ver como estas oscilações indefinidas de princípios infinitesimais podem chegar a produzir semelhanças apreciáveis com folhas, bambus, ou outros objectos, semelhanças de que a selecção natural deve apoderar-se para as perpetuar».

É provável que, em todos os casos citados, os insectos, no seu estado primitivo, tivessem qualquer semelhança grosseira e acidental com certos objectos comuns em todas as estações que habitavam. Demais, não há nada de improvável, se se considera o número infinito de objectos circunvizinhos e a diversidade de forma e de cor das miríades de insectos. A necessidade de uma imitação grosseira para ponto de partida permite-nos compreender por que os animais maiores e mais elevados (há uma excepção, a única que conheço, um peixe) não semelham, como meio defensivo, objectos especiais, mas somente a superfície da região que habitam, e esta sobretudo pela cor. Admitamos que um insecto se tenha tornado parecido primitivamente, até certo ponto, a um ramúsculo morto ou a uma folha seca, e que tenha variado ligeiramente em diversas direcções; toda a variação que aumentasse a semelhança, e favorecesse, por consequência, a conservação do insecto, devia conservar-se, enquanto que as outras variações desprezadas terminam por perder-se inteiramente; ou melhor, deviam ser eliminadas se diminuíssem a semelhança com o objecto imitado. A objecção de M. Mivart teria, com efeito, algum valor se procurássemos explicar estas imitações, por uma simples variabilidade vacilante, sem o concurso da selecção natural, o que não é o caso.

Não compreendo tão-pouco alcance da objecção que M. Mivart apresenta relativamente aos «últimos graus de perfeição da imitação ou da mímica», como no exemplo citado por M. Wallace, relativo a um insecto Ceroxylus laceratus que se assemelha a uma varinha coberta de musgo, a ponto que um Diak indígena sustentava que as excrescências foliáceas eram na realidade do musgo. Os insectos são a presa das aves e de outros inimigos dotados de uma vista provavelmente mais penetrante do que a nossa; toda a imitação podendo contribuir para dissimular o insecto tende pois a assegurar tanto mais a sua conservação quanto esta semelhança é mais perfeita. Se se considera a natureza das diferenças que existem entre as espécies do grupo que compreende o Ceroxylus, não há improbabilidade alguma para que este insecto haja variado pelas irregularidades da sua superfície, que têm tomado uma coloração mais ou menos verde; porque, em cada grupo, os caracteres que diferem nas diversas espécies estão mais sujeitos a variar, enquanto que os da ordem genérica ou comuns a todas as espécies são mais constantes.

A baleia da Gronelândia é, entre todos os animais, um dos mais admiráveis, e as barbas que lhe revestem a maxila, um dos mais singulares caracteres. As barbas consistem, de cada lado da maxila superior, em uma fila de pouco mais ou menos trezentas placas ou lâminas aproximadas, colocadas transversalmente ao eixo mais longo da boca. Há, no interior da fila principal, algumas outras subsidiárias. As extremidades e os bordos internos de todas as placas cindem-se em espinhos rígidos, que cobrem o palatino gigantesco, e servem para tamizar ou filtrar a água e recolher assim os pequenos seres que servem de nutrição a estes grandes animais. A lâmina mediana, a mais comprida da baleia gronelandesa, tem dez, doze ou quinze pés de comprimento; mas há nas diferentes espécies de cetáceos gradações de comprimento; a lâmina mediana tem em uma, segundo de Scoresby, quatro pés, três em duas outras, dezoito polegadas numa quarta e pouco mais ou menos nove polegadas de comprimento no Balaenoptera rostrata. As qualidades das barbas diferem também nas diferentes espécies.

M. Mivart faz a propósito a observação seguinte: «Desde que a barba atinge um desenvolvimento que a torna útil, selecção natural bastaria sòmente, sem dúvida, para assegurar a sua conservação e o seu aumento em convenientes limites. Mas como explicar o principio de um desenvolvimento tão útil?» Pode, como resposta, perguntar-se: porque é que os antepassados primitivos das bacias com barba não tinham a boca construída no género do bico lamelar do ganso? Os gansos, como as baleias, nutrem-se filtrando a água e o lodo, o que faz dar algumas vezes à família o nome de Criblatores. Espero que ninguém se servirá destas observações para me fazer dizer que os antepassados das baleias eram realmente providos de bocas lamelares semelhantes ao bico do ganso. Quero somente fazer compreender que a suposição nada tem de impossível, e que as vastas barbas da baleia gronelandesa poderiam provir do desenvolvimento de lamelas semelhantes, devido a uma série de graus insensíveis todos úteis aos seus descendentes.

O bico do lavanco (Spatula clypeata) oferece uma conformação muito mais bela e mais complexa do que a boca da baleia. Em um espécimen que examinei, a maxila superior tem de cada lado uma fila ou um pente de lamelas delgadas, elásticas, em número de cento e oitenta e oito, talhadas obliquamente em bisel, de forma a terminar em ponta, e colocadas transversalmente sobre o eixo alongado da boca. Elevam-se sobre o palatino e são presas aos lados da maxila por uma membrana flexível. As mais compridas são as do meio; têm pouco mais ou menos um terço de polegada de comprimento e excedem o rebordo cerca de 0,14 da polegada. Observa-se na sua base uma curta fiada auxiliar de lamelas transversais oblíquas. Sob estas diversas relações, assemelham-se às barbas da boca da baleia; mas diferem muito para a extremidade do bico, porque se dirigem para a garganta em lugar de descer verticalmente. Toda a cabeça do lavanco é incomparàvelmente menos volumosa do que a do Balaenoptera rostrata de tamanho médio, espécie em que as barbas têm apenas nove polegadas de comprimento, porque representa pouco mais ou menos uns dezoito avos da cabeça deste último; de modo que, se déssemos à cabeça do lavanco o comprimento da do Balaenoptera, as lamelas teriam seis polegadas de comprimento — isto é, os dois terços do comprimento das barbas desta espécie de baleias. A maxila inferior do ganso lavanco está provida de lamelas que igualam em comprimento as da maxila superior, são, porém, mais finas, e diferem assim de uma maneira muito notável da maxila inferior da baleia, que é desprovida de barbas. Além disso, as extremidades destas lamelas inferiores são divididas em pontas finamente erriçadas, e parecem-se assim curiosamente às barbas. No género Prion, membro da distinta família dos alcatrazes, só a mandíbula superior é provida de lamelas bem desenvolvidas e passando além dos bordos, de maneira que o bico da ave parece-se, neste ponto de vista, com a boca da baleia.

Da estrutura altamente desenvolvida do lavanco, pode-se, sem que o intervalo seja muito considerável (como aprendi pelas particularidades e pelos espécimens que recebi de M. Salvin) com respeito à aptidão para a filtração, passar do bico do Merganetta armata, e sob algumas relações do Aix sponsa, para o bico do pato comum. Nesta última espécie, as lamelas são mais grosseiras do que no lavanco, e são firmemente ligadas aos lados da maxila; não há mais do que cerca de cinquenta de cada lado, e não fazem saliência por baixo dos bordos. Terminam em quadrado, são revestidas de um tecido resistente e translúcido, e parecem destinadas à trituração dos alimentos. Os bordos da mandíbula inferior são cruzados por numerosas arestas finas, mas pouco salientes. Posto que, como tamis (peneira), este bico seja muito inferior ao do lavanco, serve, como todos sabem, constantemente para este uso. M. Salvin ensinou-me que há outras espécies nas quais as lamelas são consideràvelmente menos desenvolvidas do que no pato comum; mas não sei se estas espécies se servem do bico para filtrar a água.

Passemos a um outro grupo da mesma família. O bico do pato egípcio (Chenalopex) parece-se muito com o do ganso comum; mas as lamelas são menos numerosas, menos distintas e fazem menos saliência no interior; todavia, como me ensina M. E. Bartlett, este pato «serve-se do bico como o ganso, e deita a água para fora pelos cantos». A sua nutrição principal é todavia a erva que come como o ganso comum, em que as lamelas. quase confluentes da maxila superior são muito mais grosseiras do que no pato comum; há vinte e sete de cada lado e terminam por cima em protuberâncias dentiformes. O palatino é também coberto de botões duros e redondos. Os bordos da maxila inferior são guarnecidos de dentes proeminentes, mais grosseiros e mais agudos do que no pato. O ganso comum não filtra a água: serve-se exclusivamente do bico para arrancar e cortar as ervas, a cujo uso está tão bem adaptado que a ave pode segar a erva de muito mais perto do que qualquer outro animal. Há outras espécies de gansos, como me refere M. Bartlett, em que as lamelas são menos desenvolvidas do que no ganso comum.

Vemos assim que um membro da família dos patos com um bico construido como o do ganso comum, adaptado únicamente para pastar, ou apresentando apenas lamelas pouco desenvolvidas, poderia, por ligeiras alterações, transformar-se numa espécie tendo um bico semelhante ao do ganso do Egipto — este por seu turno numa outra tendo um bico semelhante ao do pato comum — e enfim numa forma análoga ao lavanco, provida de um bico quase exclusivamente adaptado à filtração da água, e não podendo ser empregado para agarrar e dilacerar os alimentos sólidos a não ser com a extremidade em forma de gancho. Posso juntar que o bico do pato poderia, com pequenas alterações, transformar-se também em um outro provido de dentes recurvados, salientes, como os do mergulhão (da mesma família), servindo para o fim muito diferente de apanhar e assegurar a presa do peixe vivo.

Tornemos às baleias. O Hyperodon bidens é desprovido de verdadeiros dentes podendo servir eficazmente, mas o seu palatino, segundo Lacépède, é endurecido pela presença de pequenas pontas de chifre desiguais e duras. Nada há, pois, de improvável para que qualquer forma cetácea primitiva tenha tido o palatino provido de pontas córneas semelhantes, mais regularmente situadas, e que, como as protuberâncias do bico do pato, lhes servissem para apanhar ou dilacerar a presa. Sendo assim, pode-se apenas negar que a variação e a selecção natural tenham conseguido converter estas pontas em lamelas tão desenvolvidas como o são no ganso egípcio, servindo tanto para prender os objectos como para filtrar a água, depois em lamelas como as do pato doméstico, e progredindo sempre até que a sua conformação haja atingido a do lavanco, onde servem tão exclusivamente de aparelho para filtrar. Gradações, que podem observar-se nos cetáceos ainda vivos, conduzem-nos deste estado em que as lamelas têm adquirido os dois terços do comprimento das barbas da Balaena rostrata, às enormes barbas da baleia gronelandesa. Não há, pois, a menor razão para duvidar que cada passo dado nesta direcção foi tão favorável a certos cetáceos antigos, alterando-se as funções lentamente durante o progresso do desenvolvimento, como são as gradações existentes nos bicos dos diversos membros actuais da família dos gansos. Devemos lembrar-nos que cada espécie de gansos está exposta a uma séria luta pela existência, e que a formação de todas as partes da sua organização deve ser perfeitamente adaptada às suas condições vitais.

Os pleuronectos, ou peixes chatos, são notáveis pela falta de simetria do corpo. Repousam sobre um lado sobre o esquerdo na maior parte das espécies; em algumas outras, sobre o lado direito; encontram-se mesmo algumas vezes exemplos de indivíduos adultos voltados. A superfície inferior, ou superfície de repouso, semelha-se à primeira vista à superfície inferior de um peixe ordinário; é branca; a muitos respeitos é menos desenvolvida do que a superfície superior e as barbatanas laterais são muitas vezes mais pequenas. Os olhos são, todavia, nestes peixes, a particularidade mais notável; porque ocupam ambos o lado superior da cabeça. Na primeira idade estão em face um do outro; o corpo é então simétrico e os dois lados igualmente corados. Em breve, o olho próprio ao lado inferior transporta-se lentamente à volta da cabeça para ir estabelecer-se no lado superior, mas não passa através do crânio, como outrora se julgava. É evidente que se este olho inferior não sofresse este transporte, seria inútil para o peixe quando ocupa a posição habitual, isto é, quando está deitado sobre o lado; estaria, demais a mais, exposto a ser ferido por um fundo arenoso. A abundância extrema de muitas espécies de linguados, de solhos, etc., prova que a estrutura chata e não simétrica dos pleuronectos é admirávelmente adaptada às suas condições vitais. As principais vantagens que tiram disto parecem ser uma protecção contra os inimigos, e uma grande facilidade para se nutrirem no fundo. Todavia, como o faz notar Schiödte, os diferentes membros da família actual apresentam «uma longa série de formas passando gradualmente do Hippoglossus pinguis, que não muda sensivelmente de forma desde que deixa o ovo, até aos linguados, que se voltam inteiramente de um lado».

M. Mivart tomou este exemplo e faz notar que uma transformação espontânea e rápida na posição dos olhos é a custo compreensível, ponto em que estou completamente de acordo com ele. Acrescenta então: «Se o transporte do olho para o lado oposto da cabeça fosse gradual, que vantagem podia apresentar para o indivíduo uma modificação tão insignificante? Parece mesmo que esta transformação de origem devia em breve ser-lhe nociva». Mas poderia ter encontrado uma resposta a esta objecção nas excelentes observações publicadas em 1867 por M. Malm. Os pleuronectos muito novos e ainda simétricos, tendo os olhos situados nos lados opostos da cabeça, não podem conservar por muito tempo a posição vertical, atendendo à altura excessiva do corpo, à pequenez das barbatanas laterais e à falta de bexiga natatória. Fatigam-se, pois, depressa e caem no fundo, sobre o lado. Nesta situação de repouso, segundo a observação de Malm, torcem, por assim dizer, o olho inferior para cima, para verem nesta direcção, e isto com um vigor que arrasta uma forte pressão do olho contra a parte superior da órbita. Torna-se, pois, muito evidente que a parte da fronte compreendida entre os olhos se contrai temporàriamente. Malm teve ocasião de ver um peixe novo levantar e baixar o olho inferior numa distância angular de cerca de 70 graus.

É necessário lembrar que, nos primeiros tempos, o crânio é cartilagíneo e flexível e, por conseguinte, cede fàcilmente à acção muscular. Sabe-se também que, nos animais superiores, mesmo após a primeira idade, o crânio cede e deforma-se quando a pele ou os músculos são contraídos de modo permanente em seguida a uma doença ou a um acidente. Nos coelhos de grandes orelhas, se uma delas cai e se inclina para diante, o seu peso arrasta no mesmo sentido todos os ossos do crânio pertencentes ao mesmo lado da cabeça, facto de que dei um exemplo. (De La Variation des Animaux, etc., I, 127, tradução francesa). Malm verificou que as novas percas, os salmões novos, e muitos outros peixes simétricos, logo que nascem, têm o hábito de repousar algumas vezes sobre o lado no fundo da água; esforçam-se por dirigir o olho inferior para o alto, e o crânio acaba por se deformar um pouco. Todavia, estes peixes voltando em breve a conservar a posição vertical, não lhes resulta efeito algum permanente. Quanto mais velhos se tornam os pleuronectos, pelo contrário, mais repousam sobre o lado, por causa do achatamento crescente do corpo, de onde a produção de um efeito permanente sobre a forma da cabeça e posição dos olhos. Julgando por analogia, a tendência para a torsão aumenta sem dúvida alguma pela hereditariedade. Schiödte crê, em contrário de alguns naturalistas, que os pleuronectos não são simétricos mesmo no embrião, o que permitiria compreender por que certas espécies, na primeira idade, repousam sobre o lado esquerdo, outras sobre o direito. Malm acrescenta, em confirmação da opinião precedente, que o Trachyterus arcticus adulto, que não pertence à família dos pleuronectos, repousa sobre o lado esquerdo no fundo da água e nada diagonalmente; ora, neste peixe, pretende-se que os dois lados da cabeça são um pouco dessemelhantes. A nossa grande autoridade sobre os peixes, o Dr. Gunther, conclui a sua análise do trabalho de Malm pela nota: «O autor dá uma explicação muito simples da condição anormal dos pleuronectos».

Vemos assim que as primeiras fases do transporte do olho de um lado para o outro da cabeça, que M. Mivart considera como nocivas, podem ser atribuídas ao hábito, sem dúvida vantajoso para o indivíduo e para a espécie, de olhar para cima com os dois olhos, ficando todo deitado no fundo sobre o lado. Podemos também atribuir aos efeitos hereditários do uso, o facto de em alguns géneros de peixes chatos, a boca ser inclinada para a superfície inferior, com os maxilares mais fortes e mais eficazes do lado da cabeça desprovida de olho do que do outro lado, com o fim, como o supõe o Dr. Traquair, de apanhar mais fàcilmente os alimentos do solo. Por outro lado, a falta de uso pode explicar o estado menos desenvolvido de toda a metade inferior do corpo, compreendendo as barbatanas laterais; Yarrell pensa mesmo que a redução destas barbatanas é vantajosa para o peixe, «porque têm para operar menos espaço do que as bar- batanas superiores». Pode igualmente atribuir-se à falta de uso. a diferença no número de dentes que existem nas duas mandíbulas da patruça, na proporção de quatro a sete nas metades superiores, e de vinte e cinco a trinta nas metades inferiores. O estado incolor do ventre da maior parte dos peixes e de outros animais pode fazer-nos supor razoavelmente que, nos peixes planos, a mesma falta de coloração da superfície inferior, quer seja à direita quer à esquerda, é devida à ausência de luz. Mas não se atribuiriam à acção da luz as manchas singulares que se encontram sobre o lado superior do linguado, manchas que se parecem com o fundo areento do mar, ou a faculdade que têm algumas espécies, como o demonstrou recentemente Pouchet, de modificar a cor para se colocarem em relação com a superfície ambiente, ou a presença de tubérculos ósseos sobre a superfície superior do rodovalho. A selecção natural tem desempenhado provavelmente aqui o papel de adaptar às condições vitais a forma geral do corpo e muitas outras particularidades destes. peixes. Como já o fiz notar com tanta insistência, é necessário lembrar que a selecção desenvolve os efeitos hereditários de um aumento de uso das partes, e talvez do não uso. Todas as variações espontâneas em boa direcção são, com efeito, conservadas por ela e tendem a persistir, como os indivíduos que recebem por herança no mais alto grau efeitos de aumento vantajoso ao uso de uma parte. Parece, contudo, impossível decidir, em cada caso caso particular, o que é necessário atribuir por um lado aos efeitos do uso e por outro lado à selecção natural.

Posso citar um outro exemplo de uma conformação que parece dever a sua origem exclusivamente ao uso e ao hábito, A extremidade da cauda, em alguns macacos americanos, transforma-se num órgão preênsil de uma perfeição admirável e serve de quinta mão. Um autor que está de acordo em todos os pontos com M. Mivart nota, a respeito desta conformação, que «é impossível acreditar que, seja qual for o número de séculos decorridos, a primeira tendência a prender pudesse preservar os individuos que a possuem, ou a favorecer a probabilidade de ter e escolher descendentes». Não há nada que obrigue a uma tal crença. O hábito, e este quase sempre compreende uma grande ou pequena vantagem, bastaria provavelmente para explicar o efeito obtido. Brehm viu os filhos de um macaco africano (Cercopithecus) segurar-se ao ventre da mãe pelas mãos, e, ao mesmo tempo, enroscar as pequenas caudas em volta da dela. O professor Henslow guardou em cativeiro alguns ratos das searas (Musmessorius), cuja cauda, que pela sua conformação não pode ser colocada entre as caudas preênsis, serve-lhes, contudo, muitas vezes para trepar aos ramos de um arbusto colocado na sua gaiola, enrolando-se à volta dos ramos. O Dr. Günther transmitiu-me uma observação semelhante numa rata que viu também suspender-se pela cauda. Se o rato das searas fosse mais estritamente conformado para habitar as árvores, teria talvez tido a cauda munida de uma estrutura preênsil como existe em alguns membros da mesma ordem. É difícil dizer, em presença destes hábitos nas primeiras idades, a razão por que o cercopiteco não adquiriu uma cauda preênsil. É possível, todavia, que a cauda muito comprida deste macaco lhe preste mais serviços como órgão de equilíbrio nos saltos prodigiosos que dá, do que como órgão de preensão.

As glândulas mamárias são comuns à classe inteira dos mamíferos, e indispensáveis à sua existência; devem, pois, ter-se desenvolvido desde uma época excessivamente afastada; mas não sabemos nada de positivo sobre o seu modo de desenvolvimento. M. Mivart pergunta: «Pode conceber-se que o filho de um animal qualquer tenha podido jamais ser salvo da morte sugando fortuitamente uma gota de um líquido apenas nutritivo segregado por uma glândula cutânea acidentalmente hipertrofiada na mãe? E mesmo se assim fosse, que probabilidade have- ria em favor da perpetuidade de uma tal variação?» Mas a questão não está lealmente posta. A maior parte dos transformistas admitem que os mamíferos derivam de uma forma marsupial; se assim é, as glândulas mamárias devem ter-se desenvolvido a princípio no saco marsupial. O peixe Hippocampus choca os ovos e nutre os filhos durante algum tempo num saco deste género; um naturalista americano, M. Lockwood, concluiu do que tem visto do desenvolvimento dos filhos, que são nutridos por uma secreção das glândulas cutâneas do saco. Ora, não é pelo menos possível que os filhos possam ter sido nutridos semelhantemente entre os antepassados primitivos dos mamíferos antes mesmo que merecessem este último nome? Neste caso, produzindo os indivíduos um líquido nutritivo, aproximando-se da natureza do leite, devem ter, na sequência do tempo, produzido um maior número de descendentes bem nutridos, do que os que produzissem um líquido mais pobre; as glândulas cutâneas que são as homólogas das glândulas mamárias, devem ter-se assim aperfeiçoado e tornado mais activas. O facto de, num certo ponto do saco, as glândulas se desenvolverem mais do que noutros, concorda com o princípio tão extenso da especialização; estas glândulas terão constituído então um seio, a princípio desprovido de mamilo como o observamos no ornitorrinco no mais baixo grau da escala dos mamíferos. Não pretendo, de forma alguma, julgar da parte que se pode ter prendido à especialização mais completa das glândulas, quer seja a compensação do crescimento, quer os efeitos do uso, quer a selecção natural.

O desenvolvimento das glândulas mamárias não poderia ter prestado qualquer serviço, e não teria podido, por conseguinte, ser efectuado pela selecção natural, se os filhos ao mesmo tempo não pudessem tirar a sua nutrição das secreções de tais glândulas. Nada mais difícil de compreender do que como é que os novos mamíferos aprenderam instintivamente a sugar uma mama, e ainda explicar como os pintainhos, para saírem do ovo, aprenderam a quebrar a casca ferindo-a com o bico adaptado especialmente a este fim, ou como, algumas horas depois da eclosão, sabem esgaravatar e apanhar do chão os grãos destinados à sua nutrição. A explicação mais provável, nestes casos, é que o hábito, adquirido pela prática numa idade mais avançada, se transmitiu, por hereditariedade, à idade mais precoce. Diz-se que o canguru novo não sabe sugar e apenas se segura ao mamilo da mãe, que tem o poder de injectar leite na boca do filho impotente e meio formado. M. Mivart nota a este respeito: «Sem uma disposição especial, o filho seria infalivelmente sufocado pela introdução do leite na traqueia. Mas há uma disposição especial. A laringe é bastante alongada para subir até ao orifício posterior da passagem nasal, e poder dar assim livre transito ao ar destinado aos pulmões; o leite passa inofensivamente de cada lado da laringe prolongada, e chega sem dificuldade ao esófago que está atrás», M. Mivart pergunta então como é que a selecção natural pôde tirar ao canguru adulto (e aos outros mamíferos, na hipótese de derivarem de uma forma marsupial) esta conformação pelo menos completamente inocente e inofensiva. Pode responder-se que a voz, de que a importância è certamente muito grande em muitos animais, não poderia adquirir todo o seu poder se a laringe penetrasse na passagem nasal; o professor Flower fez me observar, além disso, que uma conformação deste género causaria grandes obstáculos ao uso de uma nutrição sólida para o animal.

Examinemos agora resumidamente as divisões inferiores do reino animal. Os equinodermos (astérias, ouriços-do-mar, etc.) são providos de órgãos notáveis chamados pedicelos, que consistem, quando são bem desenvolvidos, num pinça tridáctila, isto é, numa pinça composta de três braços denticulados bem adaptados entre si e colocados numa haste flexível movida por músculos. Esta tenaz pode seguiar os objectos com firmeza; Alexandre Agassiz observou um ouriço transportando ràpidamente parcelas de excrementos de pinça em pinça ao longo de certas linhas do corpo para não sujar a concha. Mas não há dúvida que, servindo para tirar as inundícies, desempenham outras funções, de que uma parece ter a defesa por objecto. Como em muitas ocasiões precedentes, M. Mivart pergunta com respeito a estes órgãos: «Qual podia ser a utilidade dos primeiros rudimentos destas conformações e como podiam os gomos nascentes preservar a vida de um só equinodérida?» Acrescenta: «Mesmo um desenvolvimento imprevisto da faculdade de prender não poderia ser útil sem a haste móvel, nem esta última eficaz sem a adaptação das maxilas próprias para agarrar; ora, coordenadas estas condições de estrutura, de ordem tão complexa, não podem simultâneamente provir de variações ligeiras e indeterminadas; seria mais querer sustentar um paradoxo do que negá-lo». É certo, contudo, por paradoxal que isto pareça a M. Mivart, que existem em muitas astérias pinças tridáctilas sem haste, fixadas sòlidamente na base, susceptíveis de exercer a acção de prender, e que são, pelo menos em parte, órgãos defensivos. Sei, devido ao obséquio que M. Agassiz teve em transmitir-me um conjunto de minuciosidades sobre este assunto, que há outras astérias nas quais um dos três braços da pinça está reduzido a constituir um suporte para os outros dois, e ainda outros géneros em que o terceiro braço falta por completo. M. Perrier descreve o Echinoneus como tendo duas espécies de pedicelos, uma semelhando a do equinodérida e a outra a do espatango; estes casos são interessantes, porque fornecem exemplos de certas transições súbitas resultando do abortamento de um dos dois estados de um órgão.

M. Agassiz concluiu dos seus próprios estudos e dos de Müller, com respeito à marcha que estes órgãos curiosos deviam ter seguido na sua evolução, que é necessário, sem dúvida alguma, considerar como espinhos modificados os pedicelos das astérias e os ouriços-do-mar. O mesmo se pode deduzir, tanto do modo do desenvolvimento no indivíduo, como da longa e perfeita série dos graus que se observam nos diferentes géneros e nas diferentes espécies, desde simples granulações até aos pedicelos tridáctilos perfeitos, passando por espinhos ordinários. A gradação estende-se até ao modo segundo o qual os espinhos e os pedicelos são articulados na concha por varetas calcárias que os suportam. Encontram-se, em alguns géneros de astérias, «as combinações mais próprias para demonstrar que os pedicelos são simples modificações de espinhos ramificados». Assim, encontramos espinhos fixos na base dos quais são articulados três ramos equidistantes, móveis e denticulados, e sustentando na parte superior três outras ramificações igualmente móveis. Ora, quando estas últimas sobrepõem o vértice do espinho, formam de facto um pedicelo tridáctilo grosseiro que pode observar-se no mesmo espinho ao mesmo tempo que os três ramos inferiores. Não se pode, neste caso, desconhecer a identidade que existe entre os braços dos pedicelos e os ramos móveis de um espinho. Admite-se geralmente que os espinhos ordinários servem de arma defensiva; não há, pois, razão alguma para duvidar que o mesmo se não dê quanto aos ramos móveis e denticulados, de que a acção é mais eficaz quando se reúnem para funcionar como aparelho preênsil. Cada gradação compreendida entre o espinho ordinário fixo e o pedicelo fixo seria, pois, vantajosa ao animal.

Estes órgãos, em lugar de serem fixos ou colocados num suporte imóvel, são, em certos géneros de astérias, colocados no vértice de um tronco flexível e muscular, ainda que curto; posto que sirvam de arma defensiva, têm provavelmente, neste caso, alguma função adicional. Podem reconhecer-se nos ouriços-do-mar todos os estados porque passou o espinho fixo para terminar por articular-se com a concha e adquirir assim a mobilidade. Eu quereria poder dispor de mais espaço a fim de dar um resumo mais completo das interessantes observações de Agassiz sobre o desenvolvimento dos pedicelos. Podem, acrescenta ele, encontrar-se todos os graus possíveis entre os pedicelos das astérias e os ganchos dos ofiúros, outro grupo de equinodermos, assim como entre os pedicelos dos ouriços e as áncoras das holotúrias, que pertencem também à mesma grande classe.

Certos animais a que se dá o nome de zoófitos, e entre eles os polizónidas em particular, são providos de órgãos curiosos, chamados avicularios, cuja conformação difere muito nas diversas espécies. Estes órgãos, no seu estado mais perfeito, parecem-se singularmente com uma cabeça ou um bico de abutre em miniatura; estão colocados sobre um suporte e dotados de uma certa mobilidade, o que é igualmente o caso para a mandíbula inferior. Observei numa espécie que todos os aviculários do mesmo ramo fazem algumas vezes simultâneamente o mesmo movimento de vaivém, a mandíbula inferior largamente aberta, e descrevendo um ângulo quase de 90° em 5 segundos. Este movimento provoca um abalo em todo o polizónida. Quando se tocam as mandíbulas com uma agulha, agarram-na com um vigor tal, que se pode agitar todo o ramo.

M. Mivart cita este caso, porque lhe parece muito difícil que a selecção natural tivesse produzido, nas divisões tão distintas do reino animal, o desenvolvimento de órgãos tais como os aviculários dos polizónidas e os pedicelários dos equinodermos, órgãos que considera como «essencialmente análogos». Ora, no que diz respeito à conformação, não vejo semelhança alguma entre os pedicelários tridáctilos e os aviculários. Estes últimos parecem-se muito mais às pinças dos crustáceos, semelhança que M. Mivart teria, com tanta justiça, podido citar como uma dificuldade especial, ou melhor ainda, teria podido considerar da mesma forma a semelhança com a cabeça e o bico de uma ave. M. Busk, o Dr. Smitt e o Dr. Nitsche — naturalistas que têm estudado este grupo muito atentamente — consideram os aviculários como os homólogos dos zoóides e das suas células compondo o zoófito; o lábio ou testa móvel da célula correspondendo à mandíbula inferior igualmente móvel do aviculário. Todavia, M. Busk não conhecia gradação alguma actualmente existente entre um zoóide e um aviculário. E, pois, impossível conjecturar por que gradações úteis uma das formas pode transformar-se em outra, mas não resulta de maneira alguma que estes graus não tenham existido.

Como existe uma certa semelhança entre as pinças dos crustáceos e os aviculários dos polizónidas, que servem igualmente de pinças, pode ser útil demonstrar que existe actualmente uma longa série de gradações úteis nos primeiros. Na primeira e mais simples fase, o segmento terminal do membro move-se de maneira a aplicar-se quer contra o vértice quadrado e largo do penúltimo segmento, quer contra um lado por completo; este membro pode assim servir para apanhar um objecto, servindo não obstante sempre de órgão locomotor. Vemos em seguida que um canto do penúltimo segmento termina por uma ligeira proeminência provida algumas vezes de dentes irregulares, contra os quais o último segmento vem a aplicar-se. Vindo a aumentar o tamanho desta projecção e a sua forma, assim como a do segmento terminal, modificando-se e melhorando-se ligeiramente, as pinças tornam-se cada vez mais perfeitas até formar um instrumento tão eficaz como as patas-mandíbulas das lagostas. Podem observar-se perfeitamente todas estas gradações.

Os polizónidas possuem, além do aviculário, órgãos curiosos chamados vibrácula. Consistem geralmente em largas sedas capazes de movimento e fàcilmente excitáveis. Numa espécie que examinei, as celhas vibráteis eram ligeiramente arqueadas e denteladas ao longo do bordo externo; todas as do mesmo polizónida moviam-se muitas vezes simultâneamente, de tal maneira que operando como longos remos, faziam passar ràpidamente um ramo sobre o porta-objecto do meu microscópio. Se se coloca um ramo sobre o bordo exterior dos polizónidas, as celhas vibráteis misturam-se e fazem violentos esforços para se libertar. Cremos que servem de meio de defesa ao animal, e, segundo as observações de M. Busk, «expulsam lenta e docemente a superfície do polipeiro, para afastar o que pudesse prejudicar aos delicados habitantes das células logo que saíssem os seus tentáculos». Os aviculários servem também provávelmente de meio defensivo; além disso, apanham e matam os pequenos animais que se julga serem depois levados pelas correntes ao alcance dos tentáculos dos zoóides. Algumas espécies são providas de aviculários e de celhas vibráteis, o que não têm os primeiros; outras, mas em pequeno número, possuem simples celhas vibráteis apenas.

É difícil imaginar dois objectos mais diferentes em aparência do que uma celha vibrátil ou feixe de sedas e um aviculário, parecendo-se com uma cabeça de ave; são, contudo, quase certamente homólogas e provêm de uma origem comum, um zoóide com a sua célula. Podemos pois compreender como sucede que, em certos casos, estes órgãos passem gradualmente de um para outro, como me afirmou M. Busk. Assim, nos aviculários de muitas espécies de Lepralia, a mandíbula móvel é tão alongada e tão semelhante a um tufo de pêlos, que se não pode determinar a natureza aviculária do órgão a não ser pela presença do bico fixo colocado por cima dele. Pode fazer-se com que as celhas vibráteis sejam directamente desenvolvidas do lábio das células sem ter passado pela fase aviculária; mas é mais provável que tenham seguido este último caminho; porque parece difícil que, durante os estados precoces da transformação, as outras partes da célula com o zoóide incluido tenham desaparecido sùbitamente. Em muitos casos as celhas vibráteis têm na base um suporte canelado que parece representar o bico fixo, posto que falte inteiramente em algumas espécies. Esta teoria do desenvolvimento da celha vibrátil é interessante, se fundamentada; porque, supondo que todas as espécies munidas de aviculários tenham desaparecido, a imaginação mais viva não iria jamais até à ideia de que as celhas vibráteis tenham primitivamente existido como parte de um órgão semelhando uma cabeça de ave ou um capuz irregular. E interessante ver dois órgãos tão diferentes desenvolver-se partindo de uma origem comum; ora, como a mobilidade do lábio da célula serve de meio defensivo aos zoóides, não há dificuldade alguma em acreditar que todas as gradações no meio das quais o lábio foi transformado em mandíbula inferior de um aviculário e depois em uma seda alongada, tivessem igualmente disposições protectoras em circunstâncias e direcções diferentes.

M. Mivart, na sua discussão, trata apenas de dois casos tirados do reino vegetal e relativos, um à estrutura das flores das orquídeas, e outro aos movimentos das plantas trepadoras. Relativamente às primeiras, diz: «Considera-se como pouco satisfatória a explicação que se dá da sua origem — é insuficiente para fazer compreender os princípios infinitesimais de conformações desprovidas de utilidade a não ser quando têm atingido um desenvolvimento considerável». Tendo tratado a rigor este assunto numa outra obra, darei aqui apenas algumas minudências sobre uma das mais frisantes particularidades das flores das orquídeas, isto é, sobre os seus agrupamentos de pólen. Um agrupamento polínico muito desenvolvido consiste numa quantidade de grãos de pólen fixos a uma haste elástica ou caudículo, e reunidos por uma pequena quantidade de uma substância excessivamente viscosa. Estas junções de pólen são transportadas pelos insectos ao estigma de uma outra flor. Há espécies de orquídeas em que as massas de pólen não têm caudículo, sendo os grãos sòmente ligados em conjunto por filamentos muito finos; mas é inútil falar nisto aqui, não sendo esta disposição particular às orquídeas; posso, no entanto, mencionar que no Cypripedium, que se encontra na base da série desta família, podemos entrever o ponto de partida do desenvolvimento dos filamentos. Em outras orquídeas, estes filamentos reúnem-se em um ponto da extremidade das junções do pólen, o que constitui o primeiro vestígio de um caudículo. As sementes do pólen abortadas que se descobrem algumas vezes enterradas nas partes centrais e firmes do caudículo fornecem-nos uma excelente prova que é a origem desta conformação, mesmo quando é muito desenvolvida e muito alongada.

Quanto à segunda particularidade principal, a pequena massa de matéria viscosa levada para a extremidade do caudículo, pode assinalar-se uma longa série de gradações, que foram todas manifestamente úteis à planta. Em quase todas as flores de outras ordens, o estigma segrega uma substância viscosa. Em certas orquídeas uma matéria similar é segregada, mas muito mais considerável em quantidade, por um só dos tais estigmas, que fica estéril talvez por causa da secreção copiosa de que é a sede. Cada insecto visitando uma flor deste género leva por atrito uma parte da substância viscosa e conduz ao mesmo tempo alguns grãos de pólen. Com respeito a esta simples condição, que difere apenas muito pouco das que se observam numa série de flores comuns, há graus de gradação infinitos — desde as espécies onde a massa polínica ocupa a extremidade de um caudículo curto e livre, até àquelas em que o caudículo se prende fortemente à matéria viscosa, modificando-se muito por si mesmo o estigma estéril. Temos, neste último caso, um aparelho polinífero em condições mais desenvolvidas e mais perfeitas. Quem examinar com cuidado as flores das orquídeas, não pode negar a existência da série das gradações pré-citadas — desde uma massa de grãos de pólen reunidos entre si por filamentos, com um estigma diferindo apenas um pouco do de uma flor ordinária, até um aparelho polinífero muito complicado e admiràvelmente adaptado ao transporte pelos insectos; não se pode negar também que todas as gradações são, nas diversas espécies, muito bem adaptadas à conformação geral de cada flor, com o fim de provocar a fecundação pelos insectos. Neste caso e em quase todos os outros, a investigação pode ser levada mais longe, e até perguntar-se como é que o estigma de uma flor ordinária pode tornar-se viscoso; mas, como não conhecemos a história completa de um só grupo de organismos, é inútil estabelecer semelhantes questões, a que não podemos esperar responder.

Vamos às plantas trepadoras. Podem classificar-se numa longa série, desde as que se enrolam simplesmente em volta de um suporte, até às que tenho chamado de folhas trepadoras e providas de gavinhas. Nestas últimas duas classes, as hastes têm geralmente, mas nem sempre, perdido a faculdade de se enrolar, posto que conservem a da rotação, que possuem igualmente as gavinhas. As gradações insensíveis ligam as plantas de folhas trepadoras com as providas de gavinhas, e certas plantas podem ser colocadas indiferentemente numa ou noutra classe. Mas, se se passa de simples plantas que se enrolam às providas de gavinhas, uma qualidade importante aparece, é a sensibilidade ao toque, que provoca, ao contacto de um objecto, nas hastes das folhas ou das flores, nas suas modificações em gavinhas, os movimentos com o fim de rodeá-lo e apanhá-lo. Depois de ter lido a minha memória sobre estas plantas, admitir-se-á, creio eu, que as numerosas gradações de função e de estrutura, existindo nas plantas que apenas se enrolam e as de gavinhas são, em cada caso, muito vantajosas para a espécie. Por exemplo, deve haver toda a vantagem para uma planta trepadora tornar-se numa planta de folhas trepadoras, e é provável que cada uma delas, sustentando folhas de longas hastes, se desenvolvesse numa planta de folhas trepadoras se os pecíolos das folhas apresentassem, ainda que pouco, a sensibilidade requerida para responder à acção do tacto.

Constituindo o enrolamento o modo mais simples de subir por um suporte e formando a base da nossa série, pode naturalmente perguntar-se como puderam adquirir as plantas esta aptidão nascente, que mais tarde a selecção natural aperfeiçoou e aumentou. A aptidão de enrolar-se depende a princípio da flexibilidade excessiva dos novos caules (carácter comum a muitas plantas que não são trepadoras); depende, em seguida, de que estes caules se torcem constantemente para se dirigirem em todas as direcções, sucessivamente numa e depois noutra, na mesma ordem. Este movimento tem como resultado a inclinação dos caules para todos os lados e determina neles uma rotação seguida. Desde que a porção inferior do caule encontra um obstáculo que o impede, a parte superior continua a torcer-se e a voltar-se, e enrola-se necessàriamente também subindo em volta do suporte. O movimento rotatório cessa depois do crescimento precoce de cada rebento. Esta aptidão para a rotação e a faculdade de subir que é a consequência disso, encontrando-se isoladamente nas espécies e nos géneros distintos, que pertencem a famílias de plantas muito afastadas umas das outras, deve ter sido adquirida de uma maneira independente, e não por hereditariedade de um antepassado comum. Isto conduz-me a pensar que uma ligeira tendência neste género de movimento não deve ser rara nas plantas não trepadoras, e que esta tendência deve fornecer à selecção natural a base sobre que pode actuar para a aperfeiçoar. Somente conhecia, quando fiz esta reflexão, um único caso muito imperfeito, o dos novos pecíolos florais do Maurandia, que se enrolam ligeira e irregularmente, como os caules das plantas trepadoras, mas sem fazer uso algum desta aptidão. Fritz Müller descobriu pouco depois que os novos caules de um Alisma e de um Linum — plantas não trepadoras e muito afastadas uma da outra no sistema natural — são afectados de um movimento de rotação bem nítido, mas irregular; acrescenta que tem razões para acreditar que esta mesma aptidão existe em outras plantas. Estes ligeiros movimentos parece não prestarem serviço algum a estas plantas, e em todos os casos não lhes permitem de forma alguma subir, ponto de que nós nos ocupámos. Todavia, compreendemos que se os caules destas plantas fossem flexíveis, e que, nas condições em que se acham colocados, lhes fosse útil subir a uma certa altura, o movimento de rotação lento e irregular que lhes é habitual poderia, devido à selecção natural, aumentar-se e utilizar-se até que se transformassem em espécies trepadoras bem desenvolvidas.

Pode aplicar-se à sensibilidade das hastes das folhas, flores e gavinhas as mesmas observações que aos casos de movimento rotatório das plantas trepadoras. Encontrando-se este género de sensibilidade num número considerável de espécies que pertencem a grupos muito diferentes, deve encontrar-se num estado nascente em muitas plantas que se não tornaram trepadoras. Ora, isto é exacto; na Maurandia de que já falei, observei que os novos pedúnculos florais se inclinam ligeiramente para o lado onde se lhes toca. Morren verificou em muitas espécies de Oxalis movimentos nas folhas e nos caules, sobretudo depois de serem expostos aos raios ardentes do Sol, quando se lhes toca levemente e repetidas vezes, ou se sacode a planta. Renovei, com idêntico resultado, as mesmas experiências em outras espécies de Oxalis; em algumas o movimento é perceptível, mas mais nítido nas folhas novas; nas outras espécies o movimento é extremamente ligeiro. Há um facto mais importante, se devemos acreditar Hofmeister, alta autoridade nestas matérias: os novos rebentos e as folhas de todas as plantas entram em movimento depois de terem sido sacudidas. Sabemos que, nas plantas trepadoras, os pecíolos, os pedúnculos e as gavinhas são sensíveis sòmente durante o primeiro período de crescimento.

É possível então admitir que os pequenos movimentos de que acabamos de falar, provocados pelo toque ou abalo dos orgãos novos e crescentes das plantas, possam ter uma importância funcional para si. Mas, obedecendo a diversos estímulos, as plantas possuem poderes motores que têm para elas uma importância manifesta; por exemplo, a tendência para procurar a luz e mais raramente evitá-la, a propensão para brotar na direcção contrária à atracção terrestre em vez de a seguir. Os movimentos que resultam da excitação dos nervos e dos músculos de um animal por uma corrente galvânica ou pela absorção da estricnina podem ser considerados como um resultado acidental, porque nem os nervos nem os músculos se tornaram especialmente sensíveis a estes estimulantes. Parece igualmente que as plantas, tendo uma aptidão para os movimentos causados por certos estímulos, podem ser excitadas acidentalmente por uma pancada ou um abalo. Não é pois muito difícil admitir que, nas plantas de folhas trepadoras ou nas munidas de gavinhas, esta tendência fosse favorecida e aumentada pela selecção natural. É contudo provável, pelas razões que consignei na minha memória, que tal devia ter sucedido apenas para as plantas que haviam já adquirido a aptidão para a rotação, e que possuíam assim a faculdade de se enrolar.

Procurei já explicar como as plantas adquiriram esta faculdade, a saber: por um aumento de uma tendència a movimentos de rotação ligeiros e irregulares não tendo a princípio uso algum; estes movimentos, como os provocados por uma pancada ou abalo, são o resultado acidental da aptidão ao movimento, adquirido em vista de outros motivos vantajosos. Não procurarei decidir se durante o desenvolvimento gradual das plantas trepadoras, a selecção natural recebeu algum auxílio dos efeitos hereditários do uso; mas sabemos que certos movimentos periódicos, tais como o que se designa com o nome de sono das plantas, são regulados pelo hábito.

Eis os principais casos, escolhidos com cuidado por um hábil naturalista, para provar que a teoria da selecção natural é impotente para explicar os estados nascentes das conformações úteis; espero ter demonstrado, pela discussão, que, sobre este ponto, não pode haver dúvidas e que a objecção não tem fundamento. Encontrei assim uma excelente ocasião de me alargar um pouco sobre as gradações de estrutura muitas vezes associadas a uma alteração de funções — assunto importante, que não foi assaz largamente tratado nas edições precedentes desta obra. Vou actualmente recapitular em algumas palavras as observações que acabo de fazer.

No que respeita à girafa, a conservação contínua dos indivíduos de algum ruminante extinto, ante o comprimento do pescoço, das pernas, etc., a faculdade de pastar acima da altura média, e a destruição contínua dos que não podiam atingir a mesma altura, bastaria para produzir este quadrúpede notável; mas o uso prolongado de todas as partes, assim como a hereditariedade, deviam também contribuir de uma maneira importante para a sua coordenação. Não há improbabilidade alguma em acreditar que, nos numerosos insectos, que imitam diversos objectos, uma semelhança acidental com um objecto qualquer foi, em cada caso, o ponto de partida da acção da selecção natural, cujos efeitos deviam aperfeiçoar-se mais tarde pela conservação acidental das variações ligeiras que tendiam a aumentar a semelhança. Isto pode durar assim por tanto tempo que o insecto continue a variar e a semelhança mais perfeita lhe permite escapar aos seus inimigos dotados de uma vista subtil. No palatino de algumas espécies de baleias, nota-se uma tendência à formação de pequenas pontas irregulares córneas, e, em consequência da aptidão da selecção natural para conservar as variações favoráveis, estas pontas são convertidas em nós lamelares ou recortes, como os do bico do ganso — depois em lâminas curtas, como as do pato doméstico — depois em lamelas tão perfeitas como as do lavanco, e enfim em gigantescas barbas, como na boca da espécie da Gronelândia. As barbas servem, na família dos patos, em primeiro lugar de dentes, depois em parte à mastigação e em parte à filtração, e, enfim, quase exclusivamente a este último uso.

O hábito ou o uso sòmente tem, tanto quanto podemos julgar, contribuído pouco ou nada para o desenvolvimento de conformações semelhantes às lamelas ou às barbas de que nos ocupamos. Pelo contrário, o traspasse do olho inferior do peixe plano para o lado superior da cabeça, e a formação de uma cauda preênsil, em certos macacos, podem ser atribuídos, quase inteiramente, ao uso contínuo e à hereditariedade. Quanto às mamas dos animais superiores, pode conjecturar-se que, primitivamente, as glândulas cutâneas que cobriam a superfície total de um saco marsupial, segregavam um líquido nutritivo, e que estas glândulas, melhoradas no ponto de vista da sua função pela selecção natural e concentradas em um espaço limitado, acabam por formar a mama. Não é mais difícil de compreender como os espinhos ramificados de algum antigo equinodermo, servindo de armas defensivas, foram transformados pela selecção natural em pedicelos tridáctilos, do que explicar o desenvolvimento das pinças dos crustáceos por modificações úteis, ainda que ligeiras, operadas nos últimos segmentos de um membro servindo a princípio ùnicamente para a locomoção. Os aviculários e as celhas vibráteis dos polizónidas são órgãos que têm uma mesma origem, ainda que muito diferentes pelo aspecto; é fácil de compreender os serviços que prestaram as fases sucessivas que produziram as celhas vibráteis. Nos ajuntamentos polínicos das orquídeas, podem encontrar-se as fases da transformação em caudículo dos filamentos que primitivamente serviam para prender em conjunto os grãos do pólen; pode igualmente seguir-se a série de transformações pelas quais a substância viscosa parecida com a que segregam os estigmas das flores ordinárias, e servindo pouco mais ou menos, ainda que não inteiramente, ao mesmo uso, está ligada às extremidades livres dos caudículos; todas estas gradações têm sido evidentemente vantajosas às plantas em questão. Quanto às plantas trepadoras, é inútil repetir o que acabo de dizer neste instante.

Se a selecção natural dispõe de tanto poder, porque é, tem-se muitas vezes perguntado, que não deu a certas espécies tal ou tal conformação que lhes houvesse sido vantajosa? Mas seria desrazoável pedir uma resposta precisa a questões deste género, se reflectirmos na nossa ignorância sobre o passado de cada espécie e sobre as condições que, hoje, determinam a sua abundância e sua distribuição. Salvo alguns casos em que podem invocar-se estas causas especiais, somente podemos dar de ordinário razões gerais. Assim, como são necessàriamente precisas numerosas modificações coordenadas para adaptar uma espécie a novos hábitos de existência, pode ter acontecido muitas vezes que as partes necessárias não tenham variado na boa direcção ou até ao grau desejado. O aumento numérico devia, para muitas espécies, ser limitado por agentes de destruição que eram estranhos a toda a relação com certas conformações; ora, nós imaginamos que a selecção natural devia produzir estas conformações porque nos parecem vantajosas para a espécie. Mas, neste caso, a selecção natural não podia provocar as conformações de que se trata, porque não desempenham papel algum na luta pela existência. Em muitos casos, a presença simultânea de condições complexas, de longa duração, de natureza particular, actuando juntamente, é necessária ao desenvolvimento de certas conformações, e pode ser que as condições requeridas sejam poucas vezes apresentadas simultâneamente. A opinião de que uma estrutura dada, que nós julgamos, muitas vezes sem razão, ser vantajosa para uma espécie, deve ser em todas as circunstâncias o produto da selecção natural, é contrária ao que podemos compreender de seu modo de acção. M. Mivart não nega que a selecção natural não tenha podido efectuar alguma coisa; mas considera-a como absolutamente insuficiente para explicar os fenómenos que explico pela sua acção. Temos já discutido os seus principais argumentos, examinaremos os outros mais adiante. Parecem-me pouco demonstrativas e de pouco peso, comparados aos que se podem invocar em favor do poder da selecção natural apoiada por outros agentes que muitas vezes indiquei. Devo aqui juntar que alguns factos e alguns argumentos de que fiz uso no que precede, foram citados, com o mesmo fim, num excelente artigo recentemente publicado pelo Medico-Chirurgical Rewiev.

Actualmente, quase todos os naturalistas admitem a evolução sob qualquer forma. M. Mivart crê que as espécies mudam em virtude «de uma força ou de uma tendência interna», sobre a natureza da qual nada se sabe. Todos os transformistas admitem que as espécies têm uma aptidão para se modificarem, mas parece-me que não há motivo algum para invocar outra força interna que não seja a tendência à variabilidade ordinária, que permitiu ao homem produzir, com o auxílio da selecção, um grande número de raças domésticas bem adaptadas ao seu destino, e que pode ter produzido igualmente, devido à selecção natural, por uma série de gerações, as raças ou as espécies naturais. Como temos já explicado, o resultado final constitui geralmente um progresso na organização; contudo, apresenta-se um pequeno número de casos em que é um retrocesso.

M. Mivart está, além disso, disposto a acreditar, e alguns naturalistas partilham da sua opinião, que as novas espécies se manifestam «sùbitamente e por modificações aparecendo todas ao mesmo tempo». Supõe, por exemplo, que as diferenças entre o hipárion tridáctilo e o cavalo se produziram bruscamente. Pensa que é difícil acreditar que a asa de uma ave possa desenvolver-se de outra forma que não seja por modificação relativamente brusca, de natureza acentuada e importante; opinião que aplica, sem dúvida, à formação das asas dos morcegos e dos pterodáctilos. Esta conclusão, que implica enormes lacunas e uma descontinuidade da série, parece-me improvável no mais alto grau.

Os partidários de uma evolução lenta e gradual admitem, bem entendido, que as alterações específicas podem ter sido tão súbitas e tão consideráveis como uma simples variação isolada que observamos no estado da natureza, ou mesmo no estado doméstico. Portanto, as espécies domésticas ou cultivadas sendo bem mais variáveis que as espécies selvagens, é pouco provável que estas últimas tenham sido afectadas também muitas vezes por modificações tão pronunciadas e tão súbitas como as que surgem acidentalmente no estado doméstico. Pode atribuir-se a regressão muitas destas últimas variações; os caracteres que reaparecem assim tinham sido provavelmente, em muitos casos, adquiridos gradualmente no princípio. Pode dar-se ao maior número o nome de monstruosidades, como, por exemplo, o homem com seis dedos, o homem porco-espinho, os carneiros Ancon, o gado Niata, etc.; mas estes caracteres diferem consideravelmente do que são nas espécies naturais e lançam pouca luz sobre o nosso assunto. Excluindo semelhantes casos de bruscas variações, o pequeno número dos que ficam poderiam, encontrados no estado natural, representar quando muito espécies duvidosas, muito aproximadas do tipo dos seus antepassados.

Eis as razões que me fazem duvidar de que as espécies naturais tenham experimentado alterações tão bruscas como as que se observam acidentalmente nas raças domésticas, e que me impedem completamente de acreditar no processo bizarro a que M. Mivart as atribui. A experiência ensina-nos que as variações súbitas e fortemente pronunciadas se observam isoladamente e com intervalos de tempo assaz afastados dos nossos produtos domésticos. Como temos já explicado, variações deste género manifestando-se no estado da natureza estariam sujeitas a desaparecer por causas acidentais de destruição, e sobretudo pelos cruzamentos subsequentes. Sabemos também, por experiência, que no estado doméstico o mesmo sucede, quando o homem não cuida em conservar e isolar com os maiores cuidados os indivíduos em que apareceram estas variações súbitas. Seria necessário então acreditar manifestamente, segundo a teoria de M. Mivart, e contràriamente a toda a analogia, que, para dar-se a aparição rápida de uma nova espécie, tivessem aparecido simultâneamente num mesmo distrito muitos indivíduos admiràvelmente modificados. Como no caso em que o homem se entrega inconscientemente à selecção, a teoria da evolução gradual suprime esta dificuldade; a evolução compreende, com efeito, a conservação de um grande número de indivíduos, variando mais ou menos numa direcção favorável, e a destruição de um grande número dos que variam de uma forma contrária.

Não oferece dúvida alguma que muitas espécies se desenvolveram de uma forma excessivamente gradual. As espécies e mesmo os géneros de numerosas grandes famílias naturais são tão aproximados que é muitas vezes difícil distingui-los uns dos outros. Em cada continente, indo do norte ao sul, das terras baixas às regiões elevadas, etc., encontramos uma série de espécies análogas ou muito próximas; notamos o mesmo facto em certos continentes separados, mas que, temos toda a razão em acreditá-lo, foram outrora reunidos. Infelizmente, as notas que precedem e as que vão seguir-se obrigam-me a fazer alusão a assuntos que teremos de discutir mais para diante. Quando se consideram as numerosas ilhas rodeando um continente, ver-se-á quanto os seus habitantes não podem ser elevados a não ser à classificação de espécies duvidosas. O mesmo acontece se estudarmos o passado e se compararmos as espécies que acabam de desaparecer com as que vivem actualmente nos mesmos países, ou se fizermos a mesma comparação entre as espécies fósseis escondidas nos andares sucessivos de uma mesma camada geológica. É evidente, demais, que uma série de espécies extintas se ligam da maneira mais estreita a outras espécies que existem actualmente, ou que existiam recentemente ainda; ora, não se pode sustentar que estas espécies sejam desenvolvidas de uma maneira brusca e rápida. Não é preciso tão-pouco esquecer que, quando em lugar de examinar as partes especiais das espécies distintas, estudamos as das espécies vizinhas, encontramos gradações numerosas, de uma delicadeza admirável, ligando estruturas totalmente diferentes.

Um grande número de factos não são compreensíveis a não ser com a condição de se admitir o princípio de que as espécies são produzidas muito gradualmente; o facto, por exemplo, de as espécies compreendidas nos grandes géneros serem mais aproximadas, e apresentarem um número de variedades muito mais considerável que as espécies dos géneros menores. As primeiras são também reunidas em pequenos grupos, como o são as variedades em torno das espécies com as quais oferecem outras analogias, assim como o vimos no segundo capítulo. O mesmo princípio nos faz compreender porque os caracteres específicos são mais variáveis do que os caracteres genéricos, e porque os órgãos desenvolvidos num grau extraordinário variam mais do que as outras partes numa mesma espécie. Poder-se-iam citar muitos factos análogos, tendendo todos na mesma direcção.

Posto que um grande número de espécies sejam quase certamente formadas por gradações tão insignificantes como as que separam as menores variedades, poder-se-ia, contudo, sustentar que outras se desenvolveram abruptamente; mas então seria necessário apresentar provas evidentes em apoio desta asserção. As analogias vagas e certas relações falsas, como M. Chauncey Wright demonstrou, que têm sido avançadas em apoio desta teoria, tais como a cristalização brusca de substâncias inorgânicas, ou a passagem de uma forma poliédrica a uma outra por alterações de facetas, não merecem consideração alguma. Ha, contudo, uma classe de factos que, à primeira vista, tenderiam a estabelecer a possibilidade de um desenvolvimento súbito: é a aparição rápida de seres novos e distintos nas nossas formações geológicas. Mas o valor destas provas depende inteiramente da perfeição dos documentos geológicos relativos aos períodos muito remotos da história do globo. Ora, se estes anais são tão fragmentados como muitos geólogos o afirmam, nada é para admirar que novas formas nos apareçam como se elas acabassem de desenvolver-se subitamente.

Nenhum argumento se produz em favor das bruscas modificações pela falta de fuzis que possam preencher as lacunas das nossas formações geológicas, a não ser que admitamos as transformações prodigiosas que supõe M. Mivart, tais como o desenvolvimento súbito das asas das aves e dos morcegos ou a brusca conversão do hipário em cavalo. Mas a embriologia leva-nos a protestar abertamente contra estas modificações súbitas. É sabido que as asas das aves e dos morcegos, as pernas dos cavalos ou de outros quadrúpedes não podem distinguir-se num período embrionário precoce, e que se diferençam em seguida por uma marcha gradual insensível. Como veremos mais tarde, as semelhanças embriológicas de todo o género explicam-se pelo facto de os antepassados das nossas espécies existentes variarem após a sua primeira juventude e transmitirem os seus caracteres novamente adquiridos aos seus descendentes numa idade correspondente. O embrião, não sendo afectado por estas variações, representa-nos o estado passado da espécie. É o que explica porque, durante as primeiras fases do seu desenvolvimento, as espécies existentes se parecem tão frequentemente a formas antigas e extintas pertencendo à mesma classe. Quando se aceita esta opinião sobre a significação das semelhanças embriológicas, ou qualquer outra maneira de ver, não é crível que um animal tendo sofrido transformações tão importantes e tão inesperadas como as de que acabamos de falar, não ofereça o menor vestígio de uma modificação súbita durante o estado embrionário; ora, cada particularidade da sua conformação desenvolve-se por fases insensíveis. Quem acreditar que uma forma antiga foi sùbitamente transformada por uma força ou uma tendência interna numa outra forma provida de asas por exemplo, é quase forçado a admitir, contràriamente a toda a analogia, que muitos indivíduos devem ter variado simultâneamente. Ora, não se pode negar que modificações tão súbitas e tão consideráveis não diferem completamente das que a maior parte das espécies parecem ter sofrido. Ser-se-ia, além disso, forçado a crer na produção súbita de numerosas conformações admiràvelmente adaptadas às outras partes do corpo do indivíduo e às condições ambientes, sem poder apresentar a sombra de uma explicação relativamente a estas coadaptações tão complicadas e tão maravilhosas. Ser-se-ia, enfim, obrigado a admitir que estas grandes e bruscas transformações não deixaram no embrião vestígio algum da sua acção. Ora, admitir tudo isto, é, julgo eu, deixar o domínio da ciência, para entrar no dos milagres.