O Capelão obteve de galope as licenças necessárias para a clausura de Ângela.

D. Beatriz recusou ver a sobrinha, que lhe mandou pedir licença para despedir-se

Vitorina acompanhou-a.

Quando entraram no convento, já lá corria a notícia da fuga. Soror Cassilda de Noronha, irmã do general, estava prevenida por sua irmã. Recebeu glacialmente a sobrinha a quem aborrecia: era ódio reflexo de D. Maria d’Antas, causa indireta da sua forçada reclusão. Fora o caso que Simão de Noronha, resolvido a concubinar-se com a prima, removeu o estorvo da irmã, induzindo-a ou constrangendo-a a professar, já quando não podia consagrar ao divino

esposo a virgindade do coração. Sem impedimento da mortalha, Soror Cassilda desforrou-se, bem que não saísse da classe, e da sua ordem, honra lhe seja; que os seus amados tinham sido todos frades beneditinos. Sem embargo, o ódio inveterado a Maria d’Antas foi semente maldita, que bracejou árvore, onde as aves infernais fizeram ninho. Cumpria à desditosa filha da pecadora tragar-lhe os frutos.

Para dobro de desgraça, o general foi avisado da fuga. A resposta do selvagem foi simples: "Não tenho filha". Queria dizer: essa mulher que se sustente com o seu trabalho, ou sustente-a a caridade pública.

E, portanto, Ângela não tinha mesada. Cassilda dizia às suas criadas: "Dêem-lhe alguma coisa, se quiserem". E Vitorina, que tinha cordões e arrecadas, vendeu o seu oiro, alegrando-se de ver transformado no pão de sua ama.

Foi terminantemente proibido à porteira entregar carta à recolhida, sem prévio exame da abadessa; a mesma condição estipulada para carta ida do convento.

Três dias depois, José Maria, o merceeiro cujos haveres não chegavam a pagar o débito de um conto de réis a D. Beatriz, foi intimado para pagar ou nomear bens à penhora. Tinha a casa em que vivia, e os gêneros de sua loja a pagamento de prazo. Ofereceu a casa. Penhoraram-lha. Os credores confluíram. Fecharam-lhe a loja. E dez dias depois o coveiro fechou-lhe a sepultura. "Morro desonrado, e deixo-te a pedir e mais teu irmão" exclamou ele, desde que o ameaçou a congestão cerebral até que pendeu a cabeça aos braços da esposa, e expirou.

Chegou a notícia do sucesso triste ao mosteiro. D. Ângela verteu acerbas lágrimas, e tomou como sobrecarga de angústias e responsabilidade da morte do merceeiro, e a desgraça de viúva e do cunhado.

Francisco José da Costa recebeu a um tempo a notícia da fuga e reclusão de Ângela, a da penhora e falência, a da doença e provável morte do cunhado. Partiu para Viana. Quando chegou, Joana assistia de joelhos ao ato de sacramentar-se o marido. Francisco não ajoelhou. Naquele estacar imóvel diante do espetáculo lúgubre, havia o que quer que fosse pior que a condição do moribundo. Vê-lo era compreender as palavras plangentes dum escritor celebrado: "A vida morta ficou sepultada no corpo vivo".

Fechada a sepultura de José Maria, a viúva ajoelhou à beira do leito do irmão.

— Não morras, que eu não tenho outro amparo! — lhe clamara ela.

— Qual amparo?! — murmurou ele.

— Trabalharemos, meu irmão! Vê que sou mulher, e não desespero! Vê que dores me traspassam, Francisco! E vivo, e vivo, meu querido irmão! Lembra-te da coragem da infeliz menina!... Não sejas tu o mais fraco de tantos desgraçados, já que...

— Já que foste a causa... — completou o moço a frase, e rompeu em choro desfeito.

Depois, sentou-se no leito, fincou os dedos recurvos na fronte, e disse:

— Pois sim: trabalharemos.

E, volvidos poucos dias, Joana e Francisco saíam para o Porto, com quanto dinheiro possuíam: o urgente para a alimentação de oito dias.

O estudante abandonou as aulas. Quem o sustentaria? Como congraçar o estudo com qualquer outro emprego? E qual emprego lhe daria pão, exauridos os cobres salvados dos últimos vestidos feitos por sua irmã?

Joana pediu trabalho a uma modista francesa. Exigiram-lhe fiança. Ela disse a chorar que não conhecia ninguém. Abonaram-na as lágrimas. Permitiu a modista que a desvalida levasse as fazendas para um sótão da Rua Escura, onde seu irmão tinha vivido como estudante de escassos recursos. Francisco vendeu todos os seus livros, depois que apartou de entre eles as Esperanças de Ângela. Comprou com o produto deles a catre de sua irmã, que dormia sobre tábuas. Dizia ela que para quem passava as noites trabalhando e chorando todo o leito era bom.

Os condiscípulos do acadêmico, sabedores do infortúnio do primeiranista, quotizaram-se para lhe acudir e salvar o ano: Francisco rejeitou a esmola sem orgulho, dizendo: "Quem não pode ser médico, seja operário de mais humilde condição".

Um dia ofereceram-lhe o lugar de amanuense de tabelião. Aceitou muito agradecido. Escrevia à rasa, e ganhava trezentos réis diários. No sótão da Rua Escura, depois de dois meses de trabalho incessante, com intermitências de lágrimas, havia horas regulares de comer.

Eis aqui o poeta dos SONHOS, três meses depois que... sonhava

Que despertar aquele! Se não vale mais andar um homem sempre acordado, e a patinhar na lama deste planeta para não adormecer!...

Entretanto, Ângela de Noronha, ou d’Antas, como as tias a apelidavam para sacudirem de si o opróbrio de tal parenta, ainda lia os SONHOS do cismador do monte d’Agra e das ribas do mar. O manuscrito e cartas de Francisco andavam na caixa de Vitorina, valendo todavia menos às amarguras de Ângela do que o oiro da velha, o qual (digamo-lo com vênia da poesia, e da prosa apocalíptica) tornava muitíssimo mais prestimosa a caixa da generosa criada.

O recolhimento e conformidade da filha do general moveram à comiseração algumas religiosas, que se não pejaram de freqüentar a sua desornada cela, a ocultas de soror Cassilda. Se alguma freira, mais desprendida de

respeitos e preconceitos, se afoitava a argüir de cruel a inválida consoladora dos extintos frades, Cassilda respondia que não aceitava como sobrinha a mulher que seu irmão não considerava filha. Esta razão passava com foros de discreta e ajuizada.

Quem mais se compadecia de Ângela era uma criada da prelada. Assim que vagava às lides caseiras, ia com mostras de grande respeito à cela da fidalga, e ali se esquecia a contemplá-la, e a dizer coisas muito encarecidas, fascinada de sua beleza. Muitas vezes ofereceu as suas soldadas de trinta anos a Vitorina, às escondidas da senhora; mas a criada fazia milagres de economia com o produto dos seus enfeites, auxiliado com os bordados da ama.

Rita de Barrosas — que assim se chamava a criada da abadessa — contou muito secretamente a Vitorina que sua ama tinha apanhado uma carta muito grande, vinda do Porto para a fidalga; por sinal, ajuntava Rita, que a senhora abadessa, lendo-a a outras freiras, chorava com elas.

Com o bom propósito de não acerbar as dores de sua ama, Vitorina ocultou esta confidência. E, quando Ângela, brandamente, acusava o esquecimento de Francisco, a criada, conciliando a discrição com a consciência, dizia:

— Deus sabe o que ele padece! E vossa excelência sabe também que à sua mão, carta que ele escreva, nunca chegará.

— Mas nem Joana... aquela infeliz mulher...

— Deus sabe também se ela terá papel em que lhe escreva... Minha querida menina, tenha compaixão deles, que são mais infelizes do que vossa excelência. Disse-me a Rita de Barrosas que ouvira contar misérias da pobre gente lá pelo Porto. Olhe, minha senhora, se vossa excelência puder esquecer o Sr. Costa, ainda pode ser que volte às boas graças de sua família, e seu paizinho, à hora da morte, lhe perdoe, e a deixe herdeira dos bens livres, como todos diziam que deixava; mas, se eles souberem que vossa excelência ainda teima nestes praguejados amores, então não sei o que há de ser da minha infeliz menina.

— O que a divina Providência quiser. Eu não posso esquecer-me de Joana e de Francisco porque fui causa da desgraça deles. Se Deus me desse alguma coisa, e meu pai me deixasse pouco que fosse, eu daria tudo para os remediar. Isto já não é amor, Vitorina; é dever. Quem matou o José Maria foi a cruel vingança de minha tia. Fui eu que lhes não deixei gozar a santa felicidade de pobres.