Recebeu Joana a Segunda carta de seu irmão. A prosperidade afagava-o no Rio de Janeiro. Feliz numa operação de catarata, e louvado nos periódicos, fez soar o seu nome nas capitais das províncias, de onde concorriam os enfermos a consultá-lo. As remunerações eram liberalíssimas, por maneira que, segundo a parcimônia de sua ambição, poderia, dizia ele, retirar-se com sobejos recursos para viver em Portugal sem clínica. Não transparecia da carta cintila de contentamento, senão antes muitas e tristes saudades da irmã e do seu gabinete de meditação. O período último da carta rezava assim:
"Li há dias no Jornal do Comércio, que tinha chegado ao Rio o português Hermenegildo Fialho, que é ou era dono da barca em que vim. Nunca o tinha visto; mas entendi que devia procurá-lo, porque era dele o primeiro dinheiro que ganhei pela ciência, e o com que te estás sustentando. Tinha-se hospedado em casa do seu correspondente. Sem eu nada lhe perguntar, me disse que deixara Portugal para sempre, por causa de sérios desgostos que lhe dera a mulher. Ouvi-o em silêncio, e tive pena do homem, que me pareceu consternado, posto que nédio e pouco azado para mover à piedade. Mas a minha compaixão trocou-se em riso quando ontem o vi em Petrópolis com uma espadaúda mulher que denunciava pertencer à raça forte das nossas mulheres do Minho. Eu ia-me desviando dele, pensando que o embaraçava; mas ele mesmo me chamou para me oferecer de almoçar com tal instância que não pude safar-me. Não me atrevia a perguntar quem era a nossa comensal. Como leste o D. Quixote, imaginarás que eu, comparando os personagens do romance com os do almoço, me figurei que Sancho tinha roubado Maritornes ao cavaleiro da triste figura. Realmente, Hermenegildo, como Sancho, excedeu a imaginativa de Cervantes".
"Em meio do almoço, o marido exilado da pátria e da esposa que o desonrou, me disse que aquela mulher era o seu aconchego, e a consolação das suas mágoas. Isto me fez um certo engulho, e fiquei depois a pensar na desmoralização daqueles cinqüenta anos. Talvez que a mulher cuide lá que o seu esposo anda por cá muito atormentado! Contei-te este caso por achar nele, não direi sal, mas podridão dos costumes contemporâneos, etc."
leu Ângela a carta, interrompendo-se com impulsos de riso no derradeiro período.
— E se ele soubesse que eu era a esposa de Sancho!... — exclamou ela, casquinando uma argentina risada. — Que piedosas lágrimas não verteria o nosso Francisco, minha irmã! E, se não chorasse, pode ser que eu lhe fizesse também engulho!...
A despeito do riso, Ângela doera-se, e em secreto sentiu ímpetos de chorar. Não lhe pungia a ridícula libertinagem do marido. Que lhe fazia isso a ela? O nojo não tinha já onde coubesse. A mágoa era toda de amor-próprio; era prever que Francisco Costa, um dia, ao saber que tão grotesco homem era o marido da mulher única do seu amor, sentiria despintar-se-lhe da fantasia o colorido ideal com que a eterizava nos dois livros chamados Ângela.
E, como esta mágoa era de espécie ruim de revelar-se, a calá-la foi um penetrar-se, mais dos espinhos de sua perdoável vaidade, e entristecer-se a extremos de dar que sofrer à amiga e a Vitorina.
Perguntava ela uma vez a Joana:
— Seu irmão, quando soube que eu casara no Minho, como o soube?
— Porque um homem de Ponte lhe disse que a filha do Sr. general Noronha tinha casado muito rica, e o soubera do mordomo de seu pai...
— Eu vi aqui no livro dele, - interrompeu Ângela — uma alusão ao meu casamento. Diz ele assim... (E abriu o livro, onde tinha a lauda dobrada, e leu:) Que pena terás de ti própria, Ângela, quando não sentires o calor da tua alma nas formas tão belas, tão vestidas de celestial luz, conspurcadas no sevo da brutal cupidez do argentário!... Sabe, minha amiga, o sentido destas palavras?
— Sei, minha senhora. É porque o mordomo de seu pai tinha visto, não sei onde, seu marido, e dissera ao outro que nunca vira coisa mais feia.
— E seu irmão desprezou-me por isso?
— Leia vossa excelência a continuação do livro e verá que ele não a desprezou: amou-a sempre com a mesma elevação espiritual do tempo em que ele dizia, e eu mal o percebia: Como homem de alma adoro Ângela, ilumino-a à luz que radia das minhas crenças em Deus. Quantas vezes eu lhe dizia: - Por que não amas outra? — E ele respondia-me: "Não se aviltam certas almas quando mesmo queiram envilecer-se..."
— Isto está escrito — apontou Ângela, e continuou lendo: Entre ti e Deus poderá existir outro elo, minha querida amiga; mas eu não o conheço. Se um dia o conhecer, então esquecer-te-ei. O homem, que te chama sua, é apenas a lama que se apegou ao brilhante caído no tremendal. Eu serei sempre, na tua memória, o aro de ferro onde realçaria o teu brilho. A sociedade enxovalhou-te, impeliu-te, a golpes da miséria, à degradação dos corpos escravos do ouro; mas eu sei que a tua alma se vai alçando mais para a sua origem purificada por agonias superiores às minhas. A mim resta-me a independência para chorar; e tu não tens sequer esse desafogo, minha pobre Ângela! Eu sou mais feliz, e não queria sê-lo...
Estas leituras e os comentos de Joana despontaram as puas do amor-próprio. A satisfação renasceu.
Neste tempo, noticiaram as gazetas portuenses que o general Noronha voltara de novo a Paris, e recolhera a Portugal sem esperanças de cura, sendo um dos seus flageladores padecimentos uma quase cegueira, que lhe tornava horrorosa a existência no seu solitário palacete de Ponte.
Ângela sentiu-se transida de compaixão de seu pai, que ela tinha conhecido onze anos antes ainda vigoroso, posto que encanecido. Escreveu-lhe. De sua vida nada lhe contava. Oferecia-lhe o seu braço para amparo, os seus olhos para ver por eles, o seu coração de filha para urna das lágrimas espremidas pela saudade e memórias dos seus afetos de moço feliz, com todas as alegrias do mundo a cortejá-lo
O general ouviu ler a carta ao seu mordomo, e disse:
— Cuidei que era morta... Morta está decerto...
E não respondeu.
Aquela carta redobrou-lhe o tormento da memória ao ancião. Maria dAntas relampagueava-lhe amiúde diante dos olhos de alma; e ele circunvagava os do rosto para afastar a imagem formidável com a diversão de outras; mas... não via! Apenas tinha olhos para chorar.
— Por que não chama vossa excelência para si sua filha? — dizia-lhe um dia o mordomo, com a liberdade de quarenta anos de servo.
— E quem te disse que ela é minha filha?
O mordomo calava-se
— Quem te disse que ela era minha filha? — insistia o general esbugalhando os olhos cinzentos e nublosos.
— Pensei, senhor...
— Parece-se comigo?
— Não, senhor, é o rosto de sua mãe.
— Muito parecido? Já me não recordo de Ângela...
— Tal qual. Quando aqui esteve, há sete anos, era como a fidalga dAntas quando... morreu.
— Vai-te... deixa-me... — rugiu o cego, gesticulando vertiginosamente.