Em janeiro de 1842, Hermenegildo Fialho passou a residir no Porto em casa sua, mobiliada pomposamente, na rua do Bispo.

Diga-se desde já, para anteparar estranhezas futuras, que o brasileiro andava cismático e a modo de melancólico.

Não se descosia com ninguém, porque a irmã, sua confidente, ficara a governar a quinta dos Choupos. É, todavia, fácil entrar nas cavernas daquele peito, sem embargo do enxundioso arnês.

Fialho conjectura que Ângela o aborrece. Nem um sorriso, nem uma carícia, nem uma palavra que não seja resposta concisa e seca. Ele não ousa argüi-la; mas, se mansamente se queixa, Ângela responde com um franzir de testa e um silêncio tétrico.

Principia o arrependimento a desbastar-lhe as opulências musculares, e o fígado a dar rebates de desordem intestinal. Recorre aos emolientes; mas a esposa, como ele revelou ao compadre Atanásio, manda-lhe cingir as papas por um galego.

Ângela faz isto inocentemente. E talvez que, matrimoniada com um arcanjo, não pusesse mão em linhaça, se os arcanjos pudessem sofrer do fígado.

Debaixo das telhas do próximo passam agonias ridículas que não viu o dom Cleofas de Le Sage.

Vitorina está sempre a procurar na cara do amo sinais de morte. Se o vê mais amarelo, ou mais vermelho, com o nariz menos sucoso, e os olhos mais encovados, diz logo a Ângela: "O homem não tarda!". A frase era elipticamente econômica; o não tardar era ir depressa para a sepultura.

Resolvido a viver e distrair-se, Fialho abriu escritório na Reboleira e comprou navios. E distraía-se. A bailes e teatros não ia, nem Ângela os desejava. Como é já notório, em substituição à missa, comprou oratório para uso da esposa. Hermenegildo, em matéria de religião, era bestial.

Decorreram seis meses. Ângela foi mudando salutarmente para ambos. Estava afeita. Conversava com melhor sombra; mas acariciava um gato para sentir o prazer nativo de suas aveludadas mãos. Hermenegildo olhava para o lombo luzidio do bicho, e espumava umas cóleras que engolia azedas como vômito de digestão derrancada.

Na primavera deste ano, o brasileiro foi à terra, e só, para queixar-se à irmã nestes termos:

— Ela não me tem casta de amor nenhum. Passam-se dias que não dá palavra, e noites que adormece a rezar e lá fica. Este casamento foi o diabo! Cabeçada assim nunca a deu homem de juízo! É bonita, mas de que serve? É como quem tem um painel em casa. Se é fidalga, isso cá a mim que me faz? Fidalga é a burra. Enfim, desde que me desenganei que não há volta a dar-lhe, lancei cá os meus cálculos, e já sei o que hei de fazer... Nada de me apaixonar. Mulheres que me queiram não faltam. Eu me arranjarei como fazem todos.

A irmã deu-lhe bons conselhos, e recomendou-lhe paciência e juízo.

— Lembra-te, dizia ela, que a pobre menina fez uma promessa para te salvar da morte, e casou contigo sem amor.

— Então não casasse.

— Eu disse-to, e tu disseste que o amor vinha depois. Então espera que ele venha, meu filho.

— Agora vem! Olha que ela está-se a fazer velha; e de aborrecida já nem parece a mesma. Está mais amagrada, e branca como a cal da parede.

— Coitadinha! — atalhou Rita, condoída.

— Coitadinho de mim!

— Mas tu estás bem gordo, Hermenegildo!

— Bem haja eu! Pudera não! Vou fazendo pela vida.

— Mas não a mortifiques, que ela é um anjo.

— Não me cantes lérias, Rita! Aquela mulher tem lá no interior outra paixão antiga. E queira Deus ou o diabo que ele me não pregue alguma, que eu não sou para graças. À primeira que me fizer, ponho-me ao largo.

— Jesus! Tu estás aí a asnear, homem de Deus! Pois uma senhora tão boa, tão rezadeira...

— Ora, contos, minha amiga; as que rezam muito lá sabem por que o fazem. Se elas não tem pecados, p’ra que rezam? Responde lá, se és capaz!

— Tu és herege, Hermenegildo!

— Qual herege! Sou felósefo, é o que eu sou.

E era.

Enquanto ele filosofava em linguagem correntia — mérito de que não se gabam muitos de seus confrades — lances extraordinários passavam na vida de Ângela.

Estava ela à janela em um Domingo de manhã quando viu subir da Praça Nova uma mulher de mantilha, que a fez estremecer vista de longe. Desceu de corrida ao primeiro-andar e abriu a janela a tempo que a mulher passava defronte. Duvidou, acreditou, hesitou, e enfim disse em voz alta à criada que a seguira assustada:

— Será Joana?!

A mulher, que passava, voltou o rosto rapidamente, deu de olhos em Ângela e estacou.

— É ela, é ela! — confirmou Vitorina.

— Suba Sr.ª Joana! — disse a senhora agitadamente, correndo a recebe-la no pátio.

— Ó minha senhora — exclamou Joana — Ó meu Deus! Pois eu encontro aqui a Sr.ª D. Ângela! Ainda torno a ver esta senhora!

Abraçaram-se enternecidas e subiram sem se desenlaçarem.

— Como ela está acabada! — disse Vitorina benzendo-se

— Estou muito velha e muito doente... e vossa excelência ainda tão formosa, mas mais descoradinha!... Eu vim de Viana há três meses, perguntei por vossa excelência, e ninguém me soube dizer onde parava. E estava aqui! E eu sem o saber!

— Então tem tido muitas amarguras na sua vida? — perguntou Ângela com os olhos afogados em lágrimas muito fitos nela.

— Oh, se tenho, minha senhora! Há perto de quatro anos a vivermos dum trabalho pouco rendoso...

— A viverem... — atalhou Ângela. — Então seu irmão...

— Meu irmão está comigo, minha senhora. Nunca nos desamparamos um ao outro, e Deus tem sido misericordioso conosco deixando-nos viver juntos...

— Aquela morte de seu marido... — balbuciou a sobrinha de D. Beatriz.

— Não me fale nisso, minha senhora, que ainda se me parte o coração, quando me lembro de o ver cheio de vida e lutando com a desgraça para poder pagar à Sr.ª D. Beatriz, sem vender a casa; e, em poucos dias, matou-o a paixão de se ver desonrado e...

— Sei tudo, sei tudo... — murmurou Ângela apartando-lhe as mãos. — Perdoe-me, sim? — continuou ela com a voz tremente. — Perdoe a quem foi a causa de morrer seu marido...

— A causa, minha senhora, não foi vossa excelência; foi a má estrela que nos perseguia. Ninguém podia prever o que aconteceu. Tão culpada foi a senhora, como eu, como o meu pobre Francisco. Por causa dele também vossa excelência padeceu muito, segundo lá ouvi dizer em Viana a uma criada que foi do convento. Afirmaram-me que vossa excelência chegara a sentir a precisão de trabalhar... Quem diria!...

— E que tem isso? Pior seria se o meu trabalho me não chegasse para o pão de cada dia... — refletiu Ângela.

— Quando contei isto a meu irmão, parecia que a luz dos olhos se lhe apagava nas lágrimas...

As duas senhoras referiram mutuamente a sua história, desde o momento em que se apartaram.

A leitora sensível antes quer ignorar misérias que ali se revelaram as duas amigas; que farte tristezas são já sabidas para piedade e simpatia.

Tinham decorrido três horas de prática entre sorrisos e lágrimas, quando Joana se levantou e disse:

— Deixe-me vossa excelência ir fazer o jantar de meu irmão.

— Espere... — atalhou Ângela, e foi ao seu quarto.

Parou à entrada, e exclamou, como se houvesse medo de entrar:

— Ah!

E, chamando Vitorina, perguntou com aflição:

— As jóias de minha mãe ficaram na quinta, não ficaram?

— Sim, minha senhora. Vossa excelência disse-me que as fechasse na cômoda, porque eram coisas antigas que já se não usavam; até seu marido, nessa ocasião lembrou que o meu melhor era trocá-las por enfeites modernos.

— É verdade!... — recordou Ângela com muita amargura. — Como há de ser isto? Eu queria dá-las a Joana.

— Dá-las?... e se seu marido perguntasse por elas?

— Respondia que as dei.

O tom severo desta resposta forçou a criada a silêncio.

Ângela voltou à sala, apertou entre as suas as mãos da viuva, e disse-lhe com veemente solenidade:

— A minha amiga vai jurar pela memória de seu marido que não dirá a seu irmão que me viu.

— Juro, minha senhora.

— E não lho dirá por que o vermo-nos complicaria o infortúnio de ambos.

— Não era preciso lembrar-mo vossa excelência.

— E promete-me aqui vir amanhã à mesma hora?

— Sim, minha senhora.

— Então vá, e creia que tem aqui ao pé da minha alma de irmã a alma de seu marido. Eu hei de melhorar a sua sorte, se a senhora nunca esquecer o seu juramento.

— Não esquecerei, Sr.ª D. Ângela.

Saiu Joana; e a esposa do brasileiro abriu um estojo de veludo, que continha o adereço que o marido lhe dera. Examinou as peças, procurando uma, cujas pedras se desencravassem com menos custo. Escolheu a pulseira, e dela com os bicos de tesoura extraiu um brilhante. Chamou Vitorina, e disse-lhe:

— Vai vender esta pedra a um ourives.

— Vender?!... — objetou com espanto a criada.

— Sim, vender.

— Teremos novas desgraças, minha senhora?

— Não. Temos desgraças antigas a remediar. Faz o que te mando, Vitorina, senão, vou eu.

A criada sentiu-se impelida por irresistível força. Ângela, quando mandava com império, fazia lembrar à velha a soberba e inflexível Maria d’Antas.

Saiu Vitorina, examinando, na rua das Flores, as ourivesarias mais abastecidas. Entrou na loja dos Srs. Mourões, e vendeu o brilhante por 250$000 réis.

Voltou a tremer, medindo a gravidade do delito pela abundância de oiro e prata que lhe pesava de certo modo na consciência. Entregou o dinheiro a sua ama, e abalançou-se a fazer considerações timoratas sobre o alcance de tal passo.

D. Ângela rebateu os sustos de Vitorina com o seu ar de infinita alegria — raio de luz que muitos anos havia não tinha tocado os lutos daquela alma.

— As minhas jóias já ele me disse que valeriam quatro ou cinco contos — ajuntou Ângela para aliviar dos escrúpulos a meticulosa criada. — Quando ele (ele era o marido) desse fé que eu dispusera destes brilhantes lá tem os de minha mãe para se ressarcir.

— Mas o pior é se ele pergunta a quem vossa excelência deu o dinheiro... — contrariou a sisuda velha.

— Se pergunta, responderei "dei-o". Verás que sou pontual no que prometo, se chegar essa ocasião.

— Deus nos acuda por sua sagrada paixão, e morte!... — esconjurou Vitorina, e acomodou-se para não agourentar a exultação da ama.

No dia seguinte, à hora aprazada, chegou a irmã de Francisco Costa. Foi recebida com grande contentamento.

— A minha amiga — disse a filha do general com a mesma gravidade do dia anterior — continua a jurar pela memória de seu marido que fará quanto eu lhe disser, e não revelará a seu irmão palavra do que se aqui passar. Jura?

— Farei o que vossa excelência disser, sendo coisa que não possa acarretar-lhe desgostos.

— Não me ponha condições; se mas põem, torna-me mais desgraçada do que eu era — disse Ângela com transporte, perdendo por instantes a alegria que lhe iluminava o rosto.

— Farei o que vossa excelência mandar.

— Bem. Escute-me. Quero que a senhora mude de situação, de casa, e de tudo. Quero que seu irmão continue os seus estudos. Quero restituir-lhe o que perdeu com a morte de seu marido...

— Ó minha senhora, vossa excelência...

— Deixe-me falar. Quero que seu irmão nem em sonhos possa conjecturar donde a minha amiga recebe os recursos. Ajude-me a pensar; como há de ser isto? Como poderemos nós enganá-lo?

— Não sei, minha senhora... Meu irmão sabe que eu nada tenho, e que os nossos parentes todos são pobres...

— Eu pensei toda a noite nisto. Inventei uma mentira inocente. Veja se tem jeito... Parece-me que sim... A minha querida amiga finja que uma pessoa de Viana, que não se declara, ficou devendo em consciência a seu marido certa quantia de dinheiro, e quer restituí-la porque tem remorsos de ter contribuído para a perda e morte do Sr. José Maria. Compreende?

— Sim, minha senhora; mas...

— Espere. Ouça o resto. Essa pessoa diz na carta que irá remetendo, de tempo a tempo, a quantia que deve, e declara que não é pequena a restituição. Para que seu irmão possa, sem receio de ser interrompido por falta de meios, continuar o seu curso. Que lhe parece?

— Não me parece mal; mas se meu irmão quer entrar em averiguações...

— Na carta há de dizer a pessoa que das averiguações, se se fizerem, resulta a suspensão dos pagamentos, porque o restituidor não se esconde de Deus, mas quer esconder-se do mundo. Pensei em tudo.

— Mas quem há de escrever a carta? — argumentou Joana.

— Olhem a grande dificuldade! Escrevo-a eu.

— Mas ele conhece a letra de vossa excelência...

— Que novidade! Deixe-me acabar... Escrevo-a eu, e Vitorina chama um rapaz da escola, e paga-lhe para que a copie; e, depois, a carta finge-se trazida por um sujeito desconhecido, que a procura em sua casa enquanto seu irmão está no escritório, e lha entrega com este dinheiro.

E, dizendo, entregava a Joana os 250$000 réis em uma saquinha.

A irmã de Francisco hesitava em receber. Ângela lançou-lhe a saca ao regaço, e disse:

— Com esses modos não me deixa gozar todo o contentamento com que Deus me está compensando o martírio de quatro anos! Minha amiga, deixe-me inteiro este gozo, por quem é! Por alma de seu marido lhe rogo!

Lavada em lágrimas, Joana inclinou-se a querer beijar os pés da fidalga, que a estreitou com transporte ao coração.

— Vá que são horas — disse Ângela — guarde o dinheiro onde seu mano o não veja. Amanhã torne à mesma hora, que já hei de cá ter a carta. Fico muito alegre. Vou agradecer a Deus este raio de sol. Não me acha hoje mais bonita? Mais nova? Olhe o que faz a felicidade!... Há quatro anos à espera desta hora!... É hoje a primeira vez que vejo seu marido a sorrir para mim do outro mundo!... Não chore, que ele não quer. Vá, vá minha amiga...

Joana saiu enxugando as lágrimas, e entrou no primeiro templo que encontrou aberto a pedir ao Senhor que abençoasse a caridade da virtuosa Ângela.

Saiu-lhe bem logrado o plano à consolada senhora.

Francisco José da Costa leu a carta como assombrado dum caso de restituição em tempos de tanta filosofia alumiadora dos espíritos — quando para castigo de ladrões já não havia inferno, nem para glória de arrependidos céu. Contou o dinheiro, e disse à irmã:

— Agora, minha pobre Joana, cessa de trabalhar. Vai vivendo do que receberes, que eu para mim cá me arranjarei com os três tostões da escrivaninha.

— Isso acabou, Francisco. Deixaste de ser amanuense de tabelião.

— Estás doida com a tua felicidade dos 250$000 réis!...

— Olha, Francisco, — tornou ela — se este dinheiro e o que vier te não servir, para mim é inútil. Ou tu continuas os teus estudos, ou eu continuo a minha costura, esperando que um dia te resolvas a empregar o dinheiro. Escolhe. Juro-te que não levantarei cinco réis deste, e do que vier, sem que tu estejas formado. O que peço é que me alugues melhor casa e que a mobiles com mais limpeza. Peço-te muito por ti, e pouquíssimo por mim. Estamos em março; vê se consegues ainda este ano continuar a aula que interrompeste em fevereiro, há quatro anos. Forma-te, meu querido irmão, e serás depois o meu amparo. Então descansarei confiada somente aos teus cuidados.

A lei não permitia abrir matrícula extemporaneamente. Todavia, Francisco passou o restante do ano recordando matérias esquecidas desde as mais rudimentares das aulas preparatórias. Melhorou de casa, comprou livros, sentiu-se renascer, abendiçoou muitas vezes a Providência que sugerira no coração de quem quer que fosse a virtude de repor um roubo — virtude dificílima, digo eu, que encheria o céu de santos, se os ladrões, uma bela manhã, se combinassem para expulsar de lá os bem-aventurados por virtudes fáceis. Roubar e restituir depois, dizia ele, inculca uma transformação moral de tal magnitude que não se faz mister provar com outro fenômeno a divindade da religião que operou tal maravilha.

No primeiro capítulo deste livro vem contado o prosseguimento da venda dos brilhantes até completar-se a formatura de Francisco Costa, concluída em 1846. A ilusão do estudante nunca sofreu quebra. A restituição orçava por 1.650$000 réis, quando o cirurgião-médico, desgostoso de se ver sem clínica, bem que se distinguisse em prêmios e habilidade operatória, deliberou aceitar a proposta dum armador para ir ao Rio de Janeiro como cirurgião duma galera. O proponente era Hermenegildo Fialho, sujeito que Francisco nem de nome conhecia. Aceitou sob partido que ficaria no Rio, se lhe aprouvesse.

Joana, na véspera de embarcar-se o irmão, pediu de joelhos a D. Ângela que lhe deixasse declarar a quem deviam a sua felicidade. A esposa do brasileiro redargüiu que lhe daria mau pago se a denunciasse sem precisão nem utilidade, indo humilhar um homem que não podia agradecer, sem desconsolação, o benefício da mulher que o amou.

Pelo que respeita ao viver íntimo do brasileiro e esposa, no correr destes cinco anos, é de notar que melhorou sobremaneira. Ângela conformara-se, ou as alegrias da beneficência vislumbravam-lhe no rosto, mais afável para o marido. Ele, por sua parte, cumprindo o programa exposto equivocamente à irmã naquela frase eu me arranjarei, realizou-o exuberantemente mobiliando em S. Roque da Lameira e na Cruz da Regateira duas vivendas alegres, gaiolas de amor, em que tinha as duas aves colhidas a visgo de oiro nas florestas da sua Barrosas, segundo ele confessara, justificando os motivos a seu hospedeiro compadre Atanásio José da Silva.

E visto que chegamos ao ponto em que deixamos o brasileiro roncando, ligue-se a história, depois de havermos afastado da imaculada esposa as presunções aleivosas.