No artigo precedente, dei rápidas e curtas indicações sobre a primeira espécie da nobiliarquia da República da Bruzundanga. Falei da nobreza doutoral. Agora vou falar de uma outra mais curiosa e interessante.
A nobreza dos doutores se baseia em alguma cousa. No conceito popular, ela é firmada na vaga superstição de que os seus representantes sabem; no conceito das moças casadeiras é que os doutores têm direito, pelas leis divinas e humanas, a ocupar os lugares mais rendosos do Estado; no pensar dos pais de família, ele se escuda no direito que têm os seus filhos graduados nas faculdades em trabalhar pouco e ganhar muito.
Enfim, em falta de outra qualquer base, há o tal pergaminho, mais ou menos carimbado pelo govêrno, com um fitão e uma lata de prata, onde há um selo, e na tampa uma dedicatória à dama dos pensamentos do gentil cavalheiro que se fez doutor.
A outra nobreza da Bruzundanga, porém, não tem base em cousa alguma; não é firmada em lei ou costume; não é documentada por qualquer espécie de papel, édito, código, carta, diploma, lei ou o que seja. Foi por isso que eu a chamei de nobreza de palpite. Vou dar alguns exemplos dessa singular instituição, para elucidar bem o espírito dos leitores.
Um cidadão da democrática República da Bruzundanga chamava-se, por exemplo, Ricardo Silva da Conceição. Durante a meninice e a adolescência foi conhecido assim em todos os assentamentos oficiais. Um belo dia, mete-se em especulações felizes e enriquece. Não sendo doutor, julga o seu nome muito vulgar. Cogita mudá-lo de modo a parecer mais nobre. Muda o nome e passa a chamar-se: Ricardo Silva de la Concepción. Publica o anúncio no Jornal do Comércio local e está o homem mais satisfeito da vida. Vai para a Europa e, por lá, encontra por toda a parte príncipes, duques, condes, marqueses da Birmânia, do Afganistão e do Tibete. Diabo! pensa o homem. Todos são nobres e titulares e eu não sou nada disso.
Começa a pensar muito no problema e acaba lendo em um romance folhetim de A. Carrillo, — nos Cavalheiros do Amor, por exemplo — um título espanhol qualquer. Suponhamos que seja: Príncipe de Luna y Ortega. O homem diz lá consigo: "Eu me chamo Concepción, esse nome é espanhol, não há dúvida que eu sou nobre"; e conclui logo que é descendente do tal Príncipe de Luna y Ortega. Manda fazer cartões com a coroa fechada de príncipe, acaba convencido de que é mesmo príncipe, e convencendo os seus amigos da sua prosápia elevada.
Com um destes que se improvisou príncipe assim de uma hora para outra, aconteceu uma anedota engraçada.
Ele se chamava assim como Ferreira, ou cousa que o valha. Fez uma viagem à Europa e voltou príncipe não sei de quê.
Foi visitar as terras dos pais e dos avós que estavam abandonadas e entregues a antigos servidores.
Um dos mais velhos destes, veio visitá-lo arrimado a um bastão que escorava a sua grande velhice. Falou ao homem, ao filho do seu antigo patrão como falara ao menino a quem ensinara a armar laços e arapucas.
O novel príncipe formalizou-se e disse: — Você não sabe, Heduardo, que eu sou príncipe?
— Quá o quê, nhonhô! Vancê não pode sê príncipe. Vancê não é fio de imperadô, cumo é?
O recente nobre, ci-devant Ferreira, estomagou-se e não quis mais conversas com aquele velho decrépito que tinha da nobreza idéias tão caducas. Não lhe deu mais trela.
Essa improvisação de títulos se dá pelas formas as mais estranhas.
Um rapaz de certos haveres, cujo pai mourejara muito para arranjar alguns cobres, foi um dia para o estrangeiro, bem enroupado, com algumas libras no bolso. Fora das vistas paternas e sentindo longe a hipocrisia da Bruzundanga, meteu-se em todas as pândegas que lhe passou pela cabeça.
Uma noite, em que estava cercado de damas alegres, em uma mesa de café cantante, uma delas deu na telha de tratá-lo de marquês. Era senhor marquês para aqui; senhor marquês para ali.
O rapaz espantou-se a princípio, mas com o calor da conversa e a insistência da dama, ele perguntou ingenuamente:
— Mas eu sou marquês?
— É — disse a dama galante.
— Como?
— Vou já mostrar ao senhor marquês. Dê-me vinte francos e os nomes de seus pais, que já lhe dou a prova.
Ele assim fez e, dentro de vinte minutos, o rapazola recebia a sua árvore genealógica, donde se concluía que descendia dos marqueses de Livreville. À vista de tão poderoso documento, o cidadão que partira da Bruzundanga simplesmente chamando-se Carlos Chavantes (é uma hipótese), voltou da estranja com o altissonante título de Marquês de Libreville. O pai continuou a chamar-se Chavantes; ele, porém, era marquês. O' manes de d'Hozier!
Alguns nobres da casta dos doutores acumulam também a outra no-breza. São condes ou duques e doutores; e usam alternativamente o título de uma e o da outra aristocracia. Passam assim a ser conhecidos por dois nomes —cousa que é quase verificada entre os malfeitores e outros conhecidos da polícia.
Essa recrudescência de títulos nobiliárquicos apareceu desde que a Bruzundanga se fez república, e desconheceu os títulos de nobreza porque o país havia sido governado pelo regime monárquico, com uma nobreza modesta não hereditária, que mais parecia o tchin russo, isto é, uma nobreza de burocratas, do que mesmo uma nobreza feudal. O rei que a criou não a chamava mesmo "nobreza", mas taffetas.
No país, esses titulares de palpite não têm importância alguma na massa popular. Os do povo respeitam mais um modesto doutor de farmácia pobre do que um altissonante Medina Sidonia de última hora; a élite, porém, a nata, — essa sim! — tem por eles o respeito que se devia aos antigos nobres.
O povo sempre os recebe com o respeito que nós tínhamos, aqui, pelo Príncipe Ubá II, d'Africa.
A gente civilizada e rica, entretanto, não pensa assim, leva-os a sério e os seus títulos são berrados nos salões como se estivessem ali um Montmorency, um Conde de Vidigueira, um Duque d'Alba, que, por sinal, foi tomado para ascendente de um grave senhor da Bruzundanga, que desejava a incorporação do proletário à sociedade moderna.
Os costumes daquele longínquo país são assim interessantes e dignos de acurado estudo. Eles têm uma curiosa mistura de ingenuidade infantil e idiotice senil. Certas vezes, como que merecem invectivas de profeta judaico; mas, quase sempre, o riso bonachão de Rabelais.
O que ficou dito sobre as suas duas nobrezas, penso eu, justifica esse juízo. E para elas ainda é bom não esquecer que devemos julgá-las como aconselha Anatole France: com ironia e piedade.