"A solenidade que aqui nos reúne e para a qual foram convocados os poderes do Céu e da Terra, e o mar, é de tanta magnitude que a não podemos avaliar senão rastreando, através das sombras do Tempo, a sua projeção no Futuro."
Coelho Neto.Discurso na inauguração da piscina do Fluminense F.C.
O meu livro de viagem à República dos Estados Unidos da Bruzundanga está a sair das mãos do editor carioca Jacinto Ribeiro dos Santos; por isso nada lhe posso adicionar, senão quando estiver em segunda edição, caso tenha ele essa felicidade.
Nesse meio tempo, porém, tenho recebido notícias de lá que, sem implicar numa total modificação dos costumes e hábitos daquele notável povo e daquela curiosa terra, observados já por mim, revelam, entretanto, pequenas alterações interessantes que não devem ficar sem registro. Uma delas é a que se está passando com os seus literatos e poetas.
Em todos os tempos os homens de letras, maus ou bons, geniais ou medíocres, ricos ou pobres, gloriosos ou ratés, sempre se julgaram inspirados pelos deuses e confabulando intimamente com eles. A vida dos escritores, poetas, comediógrafos, romancistas, etc., está cheia de episódios que denunciam esse singular orgulho deles mesmos e da missão da arte de escrever a que se dedicam. Todos eles se deixariam morrer à fome ou de miséria, antes de transformar a sua Musa em passatempo de poderosos e ricaços. Entregaram essa função aos bufões, aos histriões, aos bobos da corte, etc.
Mesmo quando um duque ou um príncipe tinha um poeta a seu soldo, o estro dele só era empregado para solenizar os grandes acontecimentos privados ou públicos em que o duque ou o príncipe estivesse de qualquer forma metido. Se se tratasse de um batizado na família, de um casamento, do aniversário da duquesa, de uma vitória ganha pelo príncipe, de sua nomeação para embaixador junto à corte de Grão-Mongol, sim! O poeta palaciano tinha que puxar a mitologia do tempo, escrever uma ode, um epinício, um ditirambo ou mesmo um simples soneto, conforme fosse a natureza da festa. Mesmo para as mortes havia a elegia com todas as suas regras marcadas na retórica e poética daqueles tempos de reis, marqueses e duques.
Esses fidalgos mesmo aceitavam de bom grado o orgulho profissional dos seus poetas attachés. Alguns destes mereciam até homenagens excepcionais, como um tal Alain Chartier, poeta francês do século XV. Conta-se que a delfina Margarida da Escócia, passando com o seu séqüito de damas e cavalheiros de honor, por uma sala em que estava cochilando o poeta, não trepidou em beijá-lo na boca diante de todo o seu acompanhamento. A mulher do príncipe que foi mais tarde o sombrio e velhaco Luís XI de França justificou o ato dizendo que apesar do desgracioso físico de Alain, a encerrar, contudo, tão belo espírito, daquela boca tinham saído tantas palavras douradas, que ele merecia aquela sua imprevista homenagem. As crônicas do tempo contam esse episódio que me parece não ter eu adulterado e, além deste, muitos outros interessantes, em que se mostra até que ponto os homens de pena eram prezados pelos poderosos de antanho, e como eles tinham em grande conta a sua missão de troveiros e trovadores.
Na Bruzundanga, até bem pouco, era assim também. A sua nobreza territorial e agrícola estimava muito, a seu jeito, os homens de inteligência, sobremodo os poetas, aos quais ela perdoava todos os vícios e defeitos. Essa fidalguia à roceira daquele país era assim semelhante aos nossos "fazendeiros", antes da lei de 13 de Maio; e poeta, ou mesmo poetastro, que aportasse nas suas fazendas, que lá são chamadas — "ampliúdas" — tinha casa, comida, roupa nova, quando dela precisasse, e lavada toda a semana, podendo demorar-se no latifúndio o tempo que quisesse, e fazendo o que bem lhe parecesse, desde que nada tentasse contra a decência e a honra da família. Por agradecimento, então, em dia festivo da família ou da religião, ao jantar cerimonioso e votivo, o vate recitava uma poesia inédita, alusiva ou não ao ato, e tomava uma grande e alegre carraspana.
Houve um até — uma espécie do nosso Fagundes Varela — que é ainda lá muito célebre, recitador nas salas, e cujas obras têm tido muitas edições, que viveu anos inteiros em peregrinações de "ampliúda" para "ampliúda", sem saber o que era uma moeda, por mais insignificante que fosse de valor, comendo, bebendo, fumando, sem que nada lhe faltasse, a não ser dinheiro de que ele mesmo não sentia nenhuma necessidade. Tinha tudo...
Recentemente, na Bruzundanga, uma revolução social e, logo em seguida, uma política, deslocaram essa boa gente da fortuna, e muitos deles, até, dos seus domínios, que vieram a cair nas mãos de aventureiros recentemente chegados à terra ou, quando nascidos nela, eram de primeira geração, descendendo diretamente de imigrantes recentes cujo único pensamento era fazer fortuna do pé para a mão, cheios de uma avidez monetária e inescrupulosa que transmitiram decuplicada aos filhos, e logo os lindos costumes de antiga nobreza agrária se perderam. Os poetas foram postos à margem e não tiveram mais nem consideração nem desprezo. Era como se não existissem, como se fosse possível isso, seja em sociedade humana, fora de qualquer grau de civilização que ela esteja.
Aos poucos, porém, os parvenusviram bem que era preciso pôr um pouco de beleza e de sonho nas suas existências de mascates broncos e ferozes saqueadores legais. Deram em pagar sonetos que festejassem o nascimento dos filhos e elegias que lhes dessem lenitivo por ocasião da morte dos pais. Pagavam bem e pontualmente, como hoje se pagam as missas de sétimo dia aos sacerdotes que oficiam nelas, ou em outras cerimônias menos tristes.
Alguns, porém, quiseram mais ainda e, tendo notícias que os nobres feudais, de espada e cavalo de batalha encouraçado e intrépido, tinham os seus vates e trovadores, nos seus castelos e manoirs, pensaram em tê-los também, pagando-os a bom preço, a fim de que contribuíssem com as suas "palavras douradas" para o brilho de suas festas.
Um desses milionários, caprichoso e voluntarioso, quis ir mais longe ainda. Tendo construído nos fundos de sua chácara, situada em um pitoresco arrabalde da capital da República da Bruzundanga, um tanque imenso, para dar banho aos cavalos de raça das suas opulentas cavalariças, teimou que havia de inaugurá-los soberbamente, com notícias nos jornais, bênçãos religiosas e um discurso feito pelo maior literato de Bruzundanga, ou tido como tal, enfim, pelo mais famoso.
Não posso garantir que o Creso tivesse pago ao celebérrimo poeta ou que este lhe devesse algum dinheiro; mas o certo é que, desprezando a dignidade de sua Arte e a Glória, a reputação literária mais absorvente e mais tirânica da Bruzundanga, pescou latim, grego, a cabala judaica, o Ramâiana, os Evangelhos e inaugurou com um discurso assim pomposo, e grandiloqüente, no estilo hugoano, o banheiro dos ginetes do multimilionário Har-al-Nhardo Ben Khénly.
O altitudo!
O Parafuso, São Paulo, 12-3-1919.
O país da Bruzundanga, hoje República dos Estados Unidos da Bruzundanga, antigamente império, tem-se na conta de civilizado e, para isso, entre outras cousas, possui escolas para o ensino de belas-artes.
Naturalmente dessas escolas saem competências em pintura, escultura, gravura e arquitetura que devem ter mais ou menos talento; entretanto, ninguém lhes dá importância, seja qual for o seu mérito.
Se não conseguem lugares de professores, mesmo de desenho linear, nenhum favor público ou particular recebem da sua nação e do seu povo.
Houve um até, pintor de mérito, que se fez fabricante de tabuletas, para poder viver; os mais, quando perdida a força de entusiasmo da mocidade, se entregam a narcóticos, especialmente a uma espécie da nossa cachaça, chamada lá sodka, para esquecer os sonhos de arte e glória dos seus primeiros anos.
Dá-se o mesmo com os poetas, principalmente os pouco audazes, aos quais os jornais nem notícia dão dos livros.
Conheci um dos maiores, de mais encanto, de mais vibração, de mais estranheza, que, apesar de ter publicado mais de dez volumes, morreu abandonado num subúrbio da capital da Bruzundanga, bebendo sodkacom tristes e humildes pessoas que nada entendiam de poesia; mas o amavam.
A gente solene da Bruzundanga dizia dele o seguinte: "É um javanês (equivalente ao nosso "mulato" aqui) e não sabe sânscrito."
Essa gente sublime daquele país é quase sempre mais ou menos javanesa e, quase nunca, sabe sânscrito.
Todo estímulo se vai e uma arte própria lá não se cria por falta de correspondência entre o herói artístico e a sua sociedade.
Não é que ela não tenha necessidade dessa atividade do espírito humano, tanto assim que os jornais da Bruzundanga vêm pejados de notícias, encômios, ditirambos às mediocridades mais ou menos louras do que as de lá.
Tenho aqui adiante dos olhos um jornal da Bruzundanga que trata de um poeta da Austrália, cujos melhores versos são como estes:
Fui lá em cima ver meu Deus;
Voltei triste, por nada encontrar.
Mas se tiver forças hei de voltar
Para vê-lo de novo outra vez.
A notícia está assinada com o nome do autor e justifica os elogios que lhe faz, com estas palavras, cuja aplicação devia caber aos seus camaradas e contemporâneos, para animá-los a fazer grandes cousas. Ei-las:
"Nada mais agradável e, sobretudo, nada mais útil que aplaudir aos espíritos que apenas desabotoam, ainda cheios do calor dos primeiros sonhos, ainda ressoantes da vibração dos primeiros vôos. Para eles não deve ser a crítica um instrumento frio, insensível, com as asperezas de uma medida certa, senão uma voz de estímulo, uma alentadora voz que embale o coração e penetre, carinhosamente, a inteligência que reponta. O comentário, sem ser exagerado, para não se tornar prejudicial, sem ser frívolo, para não se transformar em elemento nocivo, em fonte de erros e vícios, deve procurar os aspectos mais significativos do temperamento que surge, apontando, com amoroso intuito, as insuficiências, as indecisões da primeira hora, as dúvidas e as hesitações peculiares aos que começam. Geralmente, porém, não costumam os críticos profissionais usar de tais cautelas antes preferem exercer o seu mister, com rudeza e impassibilidade, confundindo autores novos, sem responsabilidades literárias ainda firmadas, para os quais o maior rigor é brandura."
É engraçado que seja só maior rigor a brandura quando se trata de poetas da Austrália; mas quando se trata de vates da Bruzundanga a maior brandura é o rigor.
Não é só assim em poesia. Nas artes plásticas, na música, tudo é assim.
Chega à capital da Bruzundanga um pintor que se diz pintor e espanhol, a quem ninguém nunca viu ou conheceu, e logo os críticos dos jornais, viajados e lidos, finos e limpos de colarinhos, logo dizem: "Este Dom Tuas y Trias é Velázquez, é Zurbarán, é o Greco, é Goya, etc., etc."
Os quadros que ele traz, talvez, não sejam dele; são de uma banalidade de concepção e de uma infantilidade de execução lamentáveis; mas os tais homens lidos, viajados, que desprezam os javaneses (os mulatos de lá), afirmam que o homem é extraordinário.
Dito isto, logo todos os bobos ricos, enriquecidos com o tráfico do ópio e outras coisas maléficas, a fim de imitarem os príncipes da Renascença — já se viu! — correm à exposição e compram os quadros a preço de ouro, enquanto os pobres-diabos naturais ou vivendo na Bruzundanga, que são conscienciosos do seu mister, morrem em ofícios humildes ou de sodka.
É assim o gosto da gente superior da Bruzundanga, gente feita de doutores e aventureiros, ambas dadas à chatinagem e à veniaga, desde os primeiros caçando casamentos ricos e os segundos na cavação comercial e industrial, sem ter tido tempo para se deter nessas cousas de pensamento e arte.
Quando ficam ricos, estão completamente embotados, para não dizer mais...
Houve um pintor viriático que veio com uns quadros dramáticos, cenográficos para a Bruzundanga, precedido de uma fama de todos os diabos, a ponto de um guarda-livros, Filinto, não hesitar em dizer que era Leonardo Da Vinci.
Quando publicar estas notas em volume, que está a aparecer em edição de Jacinto Ribeiro dos Santos, meu bom amigo e camarada, hei de juntar uma reprodução do retrato eqüestre de um rei dele, o pintor, que é o modelo mais perfeito do maneirismo, do apelo aos uniformes, aos chamalotes, às plumas que conheço, em pintura.
Estas notas foram escritas ao correr da pena; mas, entretanto, poderei desenvolvê-las se os interessados me provocarem. Escrevo em dia oportuno.
ABC, Rio, 7-9-1919.
Lei de Promoções
(Crônica Militar)
O que tem até agora regulado as promoções, quer no exército e armada, quer na polícia e guarda nacional, é o arbítrio, o capricho e a ignorância cega dos elementos da genesíaca cartesiana, que os metafísicos definem erroneamente como aplicação da álgebra à geometria.
No semi-século genial e fecundo que medeou entre Descartes e Leibnitz, muita conquista útil foi obtida, no terreno da análise transcendente, mesmo antes da sua completa sistematização pelo gênio do último daqueles filósofos.
Fermat, Cavallieri, Roberval e outros muitos concorreram para o estabelecimento definitivo do instrumento leibnitziano — uma imortal conquista científica, para obtenção da qual o espírito humano estava assaz maduro, tanto assim que Newton, pela mesma época, apresentou o seu cálculo das fluxões.
Todo esse lento e paciente trabalho que absorveu o espírito de tantos grandes homens da Humanidade, obriga-nos a dispensar um culto acendrado à memória deles, por isso lhes cito aqui os nomes, ao lembrar as suas descobertas que muito lucraram com o rigor e a justiça das promoções nos batalhões dos colégios equiparados e linhas de tiro.
Nestas unidades, o acesso ao posto imediato é determinado por um processo rigorosamente científico, de um rigor verdadeiramente astronômico.
É preciso estendê-lo ao resto das forças armadas.
Suponhamos um sargento que quer ser alferes. Pega-se o candidato e faz-se engolir a seguinte beberagem:
Ácido azótico ..........................................5 g
Oxalato de potássio .................................7 g
Magnésia calcinada .................................3 g
Bicloreto de mercúrio ..............................2 g
Água destilada ......................................... 100 g
Deve-se dar ao paciente tudo isto de uma só vez. Se o sujeito não bater a bota, examinam-se as fezes com o papel tournesol, que, no caso de avermelhar-se, indica que o tipo pode ser alferes. No contrário, não.
Isto não tem nada que ver com Leibnitz, nem com o seu cálculo infinitesimal; mas não me ficava bem deixar de citar o imortal filósofo e a sua magna obra, podendo, se assim não procedesse, ser confundido com um qualquer legislador metafísico e anarquizado, por aí, que não é senhor do saber integral da humanidade.
A dosagem que indiquei, deve variar quando se tratar de polícias, guardas nacionais e oficiais de fazenda. Para os primeiros carregar no ácido azótico, para os segundos e terceiros, dobrar a dose de bicloreto de mercúrio.
Com o emprego deste método que é rigorosamente científico, o governo pode ter, em breve, um corpo de oficiais perfeitamente selecionados pela Morte e um povoamento rápido e instantâneo dos cemitérios — o que, afinal, é o fim natural de todas as guerras a que os oficiais, sejam desta ou daquela corporação, são obrigados a servir com todos os riscos e vantagens.
Há, porém, o método empírico que é mais humano e compatível com o grau de adiantamento a que chegou a nossa humanidade atualmente. Não há morte, nem sangue, nem bravura, nem salvas.
Este método é muito usado na guarda nacional e poucas outras entidades (vocabulário do football) militares. Vamos ver em que consiste.
Um tal método tem por princípio básico só admitir à promoção, oficiais que nunca tenham visto soldados, fortalezas, quartéis, etc.
Por esse processo, estão fatalmente eliminados todos os oficiais que hajam servido em guarnições longínquas.
O mais relevante conhecimento exigido, para as promoções de acordo com esse processo empírico, é o de uma perfeita sabedoria nas marcas de papel de ofícios, de grampos, colchetes e alfinetes, para papéis. Contam-se como ultrameritórios os serviços pacíficos em linhas telegráficas, em leitura de pluviômetros, em conversas com bugres filósofos e em construção de estradas de ferro que não acabam mais.
Em caso de merecimento igual, entre os candidatas, promovido será o que tiver melhor "pistolão".
Para isso, o oficial precavido não se deve afastar da capital do país; e, nela, sempre cultivar a amizade de poderosos políticos e pessoas de seu amor e amizade; e é, por isso, que os oficiais que servem em guarnições longínquas, fronteiras, etc., não podem entrar na lista das promoções, determinação que se subentende nesse sistema empírico que a sabedoria dos tempos consagrou com alguns retoques.
Não falei nas promoções nos bombeiros. Emendo a mão. Nos bombeiros — corporação reduzida — as promoções devem ser feitas em família. É o melhor.
O que acabo de dizer, são como o croquis das minhas idéias sobre promoções nas classes armadas, sendo que algumas não me pertencem propriamente, antes a todos os militares, suas mulheres, filhas e noivas. Eis aí.
Capitão Ortiz y Valdueza (Do Exército da Bruzundanga).
Reconheço a rubrica supra e a letra do Capitão Ortiz y Valdueza, do Corpo de Submarinos do Exército da República dos Estados Unidos da Bruzundanga.
(Tenho o sinal público e, à margem, "grátis"), — O COPISTA.
Careta, Rio, 29-1-21.
Rejuvenescimento
(Crônica Militar)
"Todas as medidas esperadas para resolver o problema do rejuvenescimento dos quadros do Exército, das discutidas no Congresso, não conseguiram sair do campo das discussões.
Rejuvenescer os quadros não significa somente melhorar o futuro dos oficiais; é concorrer para que não reine o desânimo, para que seja mantido o ardor profissional.
Não é possível esperar dum oficial que moireja de seis a oito anos em cada posto, que ele tenha sempre o mesmo entusiasmo, que a própria idade consegue arrefecer.
E com a idade vem naturalmente a diminuição do vigor físico exigido para o desempenho do árduo trabalho de oficial de tropa."
É assim que se exprime sabiamente um jornal desta cidade. Estamos de pleno acordo com as opiniões do nosso colega diário; mas julgamos, no nosso humilde parecer, que ele só encara uma face do problema. É nossa opinião que essa questão de rejuvenescimento, é uma questão geral e interessa, não só aos militares, como também a outras classes da sociedade.
Que ardor profissional pode ter um carpinteiro que tem cinqüenta anos de idade e trabalha no ofício desde os dezesseis?
A sua obra há de se ressentir da fadiga dos seus músculos cansados e do desinteresse que traz a monotonia de fazer durante anos a mesma tarefa. A sociedade perde muito com isso, pois os seus trabalhos não terão a perfeição que havia nos que executava com trinta anos de vida.
Seria inútil repetir exemplos como este, pois eles estão aí aos pontapés, para mostrar o quanto é indispensável decretar medidas que rejuvenesçam os quadros de todas as profissões.
Para as funções públicas, inclusive as militares, já o célebre filósofo político-militar dinamarquês, Hans Reykavyk propôs dois métodos para obter o remoçamento dos quadros:
Um, aparente meramente, e de origem feminina; o segundo substancial e rigorosamente científico.
O primeiro método se baseia nas pinturas, pomadas e massagens. Não há negar que o seu emprego, quando executado por operador hábil, dá ao indivíduo que a ele se sujeita a aparência de mocidade; mas é só aparência e não restitui a quantidade de força vital que o indivíduo perdeu com o correr dos anos.
De resto, ele ia levar para a caserna hábitos de camarim de atriz.
A guerra em si mesma nada tem de teatral; só acham essa cousa nela os pintores de batalhas que recebem encomendas dos governos, e os literatos da moda.
A guerra em si é uma cousa brutal e horrendamente ignóbil; a única consideração que rege a batalha, se há uma, está na cabeça de quem a dirige, e isto não é matéria para tela, nem para páginas literárias, mas notas e riscos numa carta topográfica, em escala conveniente com convenções adequadas.
Além disto, introduzindo hábitos teatrais no viver guerreiro, iria isso perturbar a ação dos combatentes, diminuir-lhes a eficiência com a suposição de que deviam tomar belas atitudes, para obter o aplauso da galeria, distraindo-lhes do verdadeiro objetivo de sua ação que é dar cabo do inimigo, por fasou nefas.
Esse sistema de academia de beleza não pode ser adotado, sendo essa também a conclusão a que chega, depois de exaustiva análise, o grande filósofo dinamarquês que nos guia nestas despretensiosas notas.
Resta o método científico que se estriba na psicologia experimental e é corrigido pela sociologia transcendente.
Não posso transcrever aqui todas as considerações que precedem a exposição que o Senhor Hans Reykavyk faz desse método.
Bastará dizer-lhes que, depois de expor fatos concretos em abundância, ele estabelece o postulado de que o general deve ser moço; de menos de trinta anos, pois é nessa idade que os homens têm o máximo de iniciativa.
Saído das escolas militares o oficial será logo general, ganhando como tenente, depois irá descendo de graduação, de forma a chegar aos sessenta como tenente, ganhando como general.
Eis em linhas gerais o plano de rejuvenescimento dos quadros de oficiais militares, a que chega o ilustre Reykavyk, após uma análise detalhada das conclusões da psicologia experimental, convenientemente corrigidas pela sociologia transcendente.
Além de outras vantagens, tem este método a de fazer que os tenentes deixem, por morte, para as viúvas, filhos, filhas, genros e netos um montepio que porá estes a coberto de todas as necessidades — montepio de general.
Pelo seu caráter geral e abstrato, com as necessárias modificações, ele pode aplicar-se, não só a todas as corporações militares, como também a quaisquer outras civis, estipendiadas pelo governo.
Não é preciso mais dizer, a fim de pôr em evidência o grande alcance do sistema do pensador dinamarquês e chamar para ele a atenção do legislativo brasileiro.
Creio que, fazendo isso, cumpro um dos deveres da missão militar de que me acho incumbido no Brasil.
Capitão Ortiz y Valdueza, do corpo de Submarinos dos Estados Unidos da Bruzundanga.
Pela tradução do "bengali".—Lima Barreto — (Tradutor público ad-hoc).
Careta, Rio, 19-3-1921.
No Salão da Marquesa
Na República da Bruzundanga, nunca houve grande gosto pelas coisas de espírito. A atividade espiritual daquelas terras se limita a uns doutorados de sabedoria equívoca; entretanto, alguns espíritos daquele Fonkim se esforçavam por dar um verniz espiritual à sociedade da terra. Escreviam livros e folhetos, revistas e revistecas, de modo que, artificialmente, o país tinha uma certa atividade espiritual.
Notavam todos a falta de salas literárias, de salões espirituais, tais aqueles que tanto brilho deram ao século XVIII francês, revelando não só grandes escritores e filósofos, mas também espíritos femininos que, pela sua graça, pelo seu talento de penetração, muito distinguiram o sexo amável, antes desse feminismo truculento e burocrático que anda por aí.
Consciente desta falta, a Marquesa de Borós, uma senhora de alta estirpe e não menos alta inteligência, tomou o alvitre de fundar um salão literário.
Ela residia em um grande palácio que se dependurava sobre a cidade capital, do alto de uma verdejante colina; e nele, em certas e determinadas tardes reunia os intelectuais do país.
Em começo, recebeu alguns de valia; mas, bem depressa, os fariseus e simuladores de talento tomaram conta da sala.
A sua delicadeza e a sua bondade se vira obrigada a receber toda essa chusma de mediocridades que, sem ter talento nem vocação, se julgam literatos e artistas, como se se tratasse de condecorações e títulos fornecidos pelo presidente da República do Cunany.
A esse pessoal, acompanhou o equivalente feminino; e era de ver como Cathos fazia pendant ao farmacêutico Homais; Madelon ao gramático Vaugelas; e Filaminta ao artista Pèlerin.
Uma sociedade, ou antes: este salão começou a dominar a atividade espiritual do país; e não havia recompensa do esforço intelectual em que ele não se metesse e até pusesse o seu veto.
O parecer dele era sempre sobremodo néscio e tolo.
Para uns, ele opinava:
— O Jagodes receber prêmio — qual! Um filho natural! Não é possível!
Para outros, ele sentenciava:
— Não julgo o Fagundes digno de figurar no Grêmio Literário Nacional... Ele não bebe champagne!
A propósito destoutro, ele dogmatizava:
— O Bustamante não pode receber a medalha. É verdade que ele tem merecimento; mas veste-se muito mal...
Essa opinião acabava de ser pronunciada pelo ilustre literato Manuel das Regras, cuja obra por ser desconhecida era de alto valor, quando, num canto da sala, foi visto um sujeito malvestido, relaxado, sujo mesmo, com um todo de homem de outros tempos.
Todos se entreolharam com certo medo, apesar do estranho não ter nenhum ar de existência sobrenatural.
Um mais animoso resolveu-se a falar ao intruso:
— Quem é o senhor?!
— Eu! Eu sou Francisco II, rei da Prússia.
E toda aquela miudeza de gente escafedeu-se por todas as portas e janelas da sala.
Careta, Rio, 5-11-21.
Da minha viagem à República dos Estados Unidos da Bruzundanga, tenho publicado, no A.B.C., algumas notas com as quais organizei um volume que deve sair dentro em breve das mãos do editor Jacinto Ribeiro dos Santos.
Estou fora da Bruzundanga há alguns anos; mas, de quando em quando, recebo cartas de amigos que lá deixei, dando-me notícias de tão interessante terra.
De algumas vale a pena dar conhecimento ao público que se interessa pela vida desses povos exóticos e paradoxais.
Diz-me um amigo, em carta de meses atrás, que a Bruzundanga declarou guerra ao império dos Ogres; mas não mandou tropas para combatê-los ao lado dos outros países que já o faziam. Tratou unicamente de vender uma grande partida de tâmaras dos seus virtuais aliados, com o que o intermediário ganhou uma fabulosa comissão.
Outra carta que de lá recebi, mais tarde, conta-me que os governantes da Bruzundanga resolveram afinal mandar uma esquadra para auxiliar os países amigos que combatiam os Ogres.
Logo toda a Bruzundanga se entusiasmou e batizou a sua divisão naval de "Invencível Armada".
Como lá não houvesse um Duque de Medina Sidonia, como na Espanha de Felipe II, foi escolhido um simples almirante para comandá-la.
A esquadra levou longos meses a preparar-se e com ela, mas em paquete, partiu também uma missão médica, para tratar dos feridos da guerra contra os Ogres.
Tanto a esquadra como a missão chegaram a um porto intermediário, onde, em ambas, se declarou uma peste pouco conhecida. Chamado o chefe da comissão médica, este respondeu:
— Não entendo disto... Não é comigo... Sou parteiro.
Um outro doutor da missão dizia:
— Sou psiquiatra.
E não saiu daí.
— Não sei — acudiu um terceiro, ao se lhe pedir os seus serviços profissionais — não curo defluxos. Sou ortopedista.
Não houve meio de vencer-lhes a vaidade de suas especialidades, de anúncio de jornal.
Assim, sem socorros médicos, a "Invencível Armada" demorou-se longo tempo no tal porto, de modo que chegou aos mares da batalha, quando a guerra tinha acabado.
Melhor assim...
Não foram só estas duas cartas que me trouxeram novas excelentes da Bruzundanga.
Muitas outras me chegaram às mãos; a mais curiosa, porém, é a que me narra a nomeação de um papagaio para um cargo público, feita pelo poder executivo, sem que houvesse lei regular que a permitisse.
Um ministro de lá muito jeitoso, que andava fabricando em vida, ele mesmo, as peças de sua estátua, julgou que fazendo uma tal nomeação... tinha já em bronze o baixo-relevo do monumento futuro à sua glória.
Consultou um dos seus empregados que estudava leis e a interpretação delas em Bugâncio, sabia a casuística jesuítica, além de conhecer as sutilezas da Escolástica, a ponto de ser capaz de provar com a mesma solidez a tese e a antítese, desde que os interessados em uma e na outra o retribuíssem bem.
Dizia a lei fundamental da Bruzundanga:
"Todos os cargos públicos são acessíveis aos bruzundanguenses, mediante as provas de capacidade que a lei exigir".
O exegeta ministerial, depois de verificar que o papagaio tinha nascido na Bruzundanga, e era, portanto, bruzundanguense, concluiu, muito logicamente, que ele podia e lhe assistia todo o direito de ser provido em um cargo público de seu país.
Argumentou mais com Augusto Comte que incorporava à Humanidade certos animais; com o "artemismo", crença de determinados povos primitivos que se julgam descendentes ou parentes de tal ou qual animal, para mostrar que o anelo íntimo dos homens é elevar esses seus semelhantes e companheiros de sofrimentos na terra. Emancipá-los.
A Arte, dizia ele, foi sempre por eles. Citava as esculturas assírias, egípcias, gregas, góticas que, embora idealizados ou estilizados, denunciavam um culto pelos animais que, injustamente, chamamos inferiores.
Na arte escrita, para demonstrar o que o sábio consultor vinha asseverando, lembrava La Fontaine, com as suas fábulas, e modernamente, Jules Renard, com as suas interessantes Histoires Naturelles.
Nas modernas artes plásticas, nem se falava, continuava ele. A representação artística de animais, por meio delas, já constituía uma especialidade.
Foi por aí...
E, de resto, dizia ele quase no fim, quem não se lembra do papagaio de Robinson Crusoe?
Devemos, portanto, exalçar o papagaio, que é um animal que fala, rematou afinal.
O ministro gostou muito do parecer; julgou dispensável pedir uma lei ao corpo legislativo que, na Bruzundanga, é composto de duas câmaras: a dos vulgares e a dos doutores; não julgou também necessário avisar os outros papagaios da sua resolução, para que concorressem e nomeou o do seu amigo Fagundes...
E foi assim, segundo me conta a missiva que recebi, que um "louro" bem falante foi nomeado arauto d'armas da Secretaria de Estado de Mesuras e Salamaleques da República dos Estados Unidos da Bruzundanga.
A.B.C., Rio, 23-11-18.