A República da Bruzundanga, como toda a pátria que se preza, tem também os seus heróis e as suas heroínas.
Não era possível deixar de ser assim, tanto mais que a pátria sempre foi feita para os heróis, e estes, sinceros ou não, cobrem e desculpam o que ela tem de sindicato declarado.
Um país como a Bruzundanga precisa ter os seus heróis e as suas heroínas para justificar aos olhos do seu povo a existência fácil e opulenta das facções que a têm dirigido.
O mais curioso herói da pátria bruzundanguense é sem dúvida uma senhora que nada fez por ela, antes perturbou-lhe a vida, auxiliando um aventureiro estrangeiro que se meteu nas suas guerras civis.
Para bem compreenderem o meu pensamento, é preciso que antes lhes recorde por alto alguns pontos da história política da Bruzundanga. Vou fazê-lo.
A atual república consta de territórios descobertos pelos iberos e povoados por eles e por outros povos das mais variadas origens.
Os colonizadores fundaram várias feitorias; e, quando fizeram a independência da Bruzundanga, essas feitorias ficaram sendo províncias do Império que foi criado. Feita a república, elas ficaram mais ou menos como eram, com mais independência e outras regalias. Portanto, é claro que a evolução política da Bruzundanga tinha por expressão a unidade dessas províncias, e era mesmo o seu fim. Qualquer pessoa que tenha tentado, ou venha a tentar, o desmembramento dessas províncias, não pode ser tido como herói nacional.
Pois bem: um senhor estrangeiro, cheio de qualidades, talvez, meteu-se de parceria com uns rebeldes, para separar uma dessas províncias do bloco bruzundanguense. Isto ao tempo do império. Em caminho, em uma de suas correrias, encontrou-se com uma moça da Bruzundanga que se apaixonou por ele. Seguiu-o nas suas aventuras e combates contra a união bruzundanguense.
Até aí nada de novo. É comum, até. Mas querer fazer de semelhante dama heroína da Bruzundanga, é que nunca pude compreender. Eu me ponho aqui no ponto de vista dos patriotas, para os quais a pátria é una e indivisível. Se me pusesse sob qualquer outro ponto de vista, então a tal dama heroína nada de notável teria a meus olhos a não ser a dedicação até ao sacrifício pelo seu amante, mais tarde seu marido. Isto mesmo, porém, não é virtude que torne uma mulher excepcional, pois é comum nelas, a menos que tal dedicação sirva de moldura às qualidades excepcionais do seu marido ou do seu amante. No caso, porém, encarando-o estritamente sob o aspecto da evolução política da Bruzundanga, o seu marido não era mais do que um aventureiro.
É semelhante senhora que lá, naquelas plagas, comparam a Jeanne d'Arc. Admirável!
Por aí, podem os senhores ver de que estofo são os heróis da Bruzundanga; mas há outros.
Como sabem, a Bruzundanga foi, durante um século, império ou monarquia. Há seis ou sete lustros os oficiais do seu exército começaram a ficar descontentes e juntaram-se a outros descontentes civis, que tinham achado para resumir as suas vagas aspirações a palavra república. Começaram a agitar-se e, em breve, tinham a adesão dos senhores de escravos, cuja libertação os fizera desgostosos com o trono da Bruzundanga.
Os amigos do império, vendo que as cousas perigavam, trataram de enfrentar a corrente com decisão e chamaram, para condestável da Bruzundanga, um velho general que vivia retirado nas suas propriedades agrícolas.
Era de crer que semelhante condestável pudesse ser vencido, mas que confabulasse com os inimigos que vinha combater, não era possível admitir! Pois foi o que ele fez. Não sou eu quem o diz; são os seus próprios companheiros. Ainda há meses, recebi um jornal da Bruzundanga, em que um grande e notável fabricante da república de lá contava como as cousas se tinham passado. Narra esse senhor, como o condestável, nas vésperas da proclamação da república, enganara aqueles que tinham depositado confiança nele, para servir os contrários. Eis aí os começos de um herói da república dos Estados Unidos da Bruzundanga! Ele, porém, ainda nos merece mais algumas palavras. Este último herói é lá chamado Consolidador da república. Sabem por quê? Porque não consolidou cousa alguma. Não houve mandachuva, pois ele o foi, da Bruzundanga, quem mais desrespeitasse as leis da república. Entender-se-ia que a havia consolidado se o seu governo fosse fecundo dentro das leis da Bruzundanga. Ele, porém, saltou por cima de todas elas e governou a seu talante. Mostrou que as leis da república não prestavam e, longe de consolidá-las, abalou-as nos seus fundamentos. Tal cousa, na hipótese do seu governo ter sido bom e fecundo; mas não o foi. Isto, porém, não nos interessa. Ele é um dos heróis da Bruzundanga que, em falta de um Carlyle, teve um aqui escultor que lhe fez um monumento, ereto em uma das praças da capital, monumento tão curioso que precisa de um guia, de um tratado escrito, para ser compreendido. Arte do futuro; Beyreuth da Bruzundanga.
Outro herói da Bruzundanga é o Visconde de Pancôme. Este senhor era de fato um homem inteligente, mesmo de talento; mas lhe faltava o senso do tempo e o sentimento do seu país. Era um historiógrafo; mas não era um historiador. As suas idéias sobre história eram as mais estreitas possíveis: datas, fatos, estes mesmos políticos. A história social, ele não a sentia e não a estudava. Tudo nele se norteava para a ação política e, sobretudo, diplomática. Para ele (os seus atos deram a entender isto) um país só existe para ter importância diplomática nos meios internacionais. Não se voltava para o interior do país, não lhe via a população com as suas necessidades e desejos. Pancôme sempre tinha em mira saber como havia de pesar, lá fora, e ter o aplauso dos estrangeiros.
Sabendo bem a história política da Bruzundanga, julgava conhecer bem a nação. Sabendo bem a geografia da Bruzundanga, imaginava ter o país no coração.
Entretanto, forçoso é dizer que Pancôme desconhecia as ânsias, as dificuldades, as qualidades e defeitos de seu povo. A história econômica e social da Bruzundanga ainda está por fazer, mas um estadista (critério clássico) deve tê-la no sentimento. Pancôme não a tinha absolutamente. A sua visão era unicamente diplomática e tradicionalista.
Estava como embaixador em um país qualquer e um mandachuva fê-lo ministro de Estrangeiros. Logo que tomou posse, o seu primeiro cuidado foi mudar o fardamento dos contínuos. Pôs-lhes umas longas sobrecasacas com botões dourados. A primeira reforma. Tendo conseguido adjudicar à Bruzundanga vastos territórios, graças à leitura atenta de modestos auto-res esquecidos, a sua influência sobre o ânimo do mandachuva era imensa. Convenceu-o que devia modificar radicalmente o aspecto da capital. Era preciso, mas devia ser feito lentamente. Ele não quis assim e eis a Bruzundanga, tomando dinheiro emprestado, para pôr as velhas casas de sua capital abaixo. De uma hora para outra, a antiga cidade desapareceu e outra surgiu como se fosse obtida por uma mutação de teatro. Havia mesmo na cousa muito de cenografia.
Não contente com isto, convenceu o mandachuva que devia adquirir uma esquadra poderosa. Eis a Bruzundanga a pedir dinheiro aos judeus da City para construir uma esquadra poderosa. E as festas? E os anúncios?
À vista do seu exemplo, nenhum ministro quis ficar atrás. Todos porfiaram nos gastos. Anos depois, os deficits aumentavam, os impostos aumentavam, os preços de todos os gêneros aumentavam; mas a gente do país não deu pela origem da crise, tanto assim que, quando Pancôme morreu, lhe fez a maior apoteose que lá se há visto. Os heróis e o povo da República dos Estados Unidos da Bruzundanga são assim, caros senhores.