Há no ano dois dias que são verdadeiramente pomposos na cidade do Rio de Janeiro: o de quinta-feira de Endoenças e o da comemoração dos defuntos.

No primeiro deles adora-se o lenho sagrado, imagem daquele em que no Gólgota foi crucificado o Filho da Rainha das Virgens.

O segundo pertence à religião dos túmulos.

Pois com serem tão grandiosos e sublimes, tão cheios de íntima dor, e de tremenda verdade os pensamentos que pre­sidem esses dois dias, ainda assim há neles sacrilégio e vai­dade.

Há o sacrilégio dos homens e a vaidade das mulheres e de quase todos.

Uma multidão de mancebos corre um por um todos os templos na quinta-feira santa, e sem que os intimide nem contriste o aspecto solene das igrejas, o efeito dessas mil luzes que se queimam nos altares, e o profundo silêncio que neles reina; no meio dos poucos a quem um verdadeiro sentimento religioso afasta da terra e aproxima do céu, eles profanam o santuário requestando as mulheres e zombando dos mistérios.

E as mulheres, as mulheres em quem a religião, além de um dever, é ainda, mais que em todos, uma necessidade e um encanto, têm entre si muitas que olham a noite sagrada como o ensejo feliz de ostentar suas graças e suas galas; e lá mesmo, no seio dos templos, suas orações não chegam nunca ao céu, porque as desconceituam as murmurações que de envolta com elas caem na terra.

E o dia de finados, o dia de luto que os homens têm tornado de festa; o dia do pó, a recordação do nada que somos, é em nosso tempo a demonstração viva e solene do muito que pretendemos ser.

Uma palavra diz tudo: no dia da comemoração dos defuntos, a vaidade dos vivos levanta seu trono sobre o túmulo dos mortos.

E portanto ainda nesses dois solenes dias nós demonstramos crime e fraqueza.

Em quinta-feira de Endoenças nós somos sacrílegos.

Em 2 de novembro de todos os anos nós somos, pelo menos, vaidosos.



Havia chegado o dia 2 de novembro de 1846.

Tinha-se, pouco mais ou menos, passado mês e meio depois daquela manhã em que Cândido, da fresta de sua janela, observara em êxtase a "Bela Órfã" passeando no seu jardim.



Desde o romper da aurora que os bronzes de todas as igrejas da capital do Brasil gemiam com seu dobre lúgubre, longo e monótono.

Multidão imensa de homens e mulheres, todos vestidos de luto, saíam ou entravam em turmas pelas portas dos templos como ondas negras.

Apesar de sua vaidosa ostentação, de sua inoportuna riqueza, os jazigos ofereciam um aspecto sublime e melancó­lico: era o aspecto da morte.

O cemitério de S. Francisco de Paula estava semeado de túmulos e repleto de povo.

Os curiosos que o visitavam cediam à força do império da morte; obumbravam-se.

Os órfãos e as viúvas, os pais que haviam perdido seus filhos, choravam e rezavam.

A despeito das galas e do luxo de alguns imensos mausoléus, o pó, o nada humano parecia transudar por entre as molduras douradas, e uma caveira se mostrava triunfante de sobre as colunas de ébano.

Nos túmulos humildes, sem pompa de luxo, cobertos de roxos amarantos e tristíssimas perpétuas, como que o gênio da saudade estava aí sentado para intermediário entre a dor do vivo e a alma do- morto. O túmulo sem pompa era a expressão da saudade do vivo.

Porque, preciso é dizê-lo, a verdadeira dor é simples e singela; e a saudade que se não simula, a saudade que sai do coração, não tem necessidade de adornar-se. Asseme­lham-se nisso às mulheres, que quanto mais feias mais se en­feitam para disfarçar seus senões, e quanto mais belas mais simplesmente se vestem para ostentar seus naturais encantos. Assim a dor e a saudade que se fingem, precisam de ornar-se muito, e as que são verdadeiras apresentam-se nuas... e sua nudez é imensamente sublime.

A melhor expressão de uma dor é o pranto. O mais rico ornamento dos túmulos é a caveira.

Os vestidos devem condizer com o corpo que se veste. Não há, não pode haver relação entre molduras, franjas douradas e um esqueleto.

Essa riqueza parece uma zombaria que a vida faz à morte. Essa riqueza destrói completamente a idéia tremenda que em tal dia deve ocupar o espírito dos vivos.

Porque à porta do cemitério o homem lê as terríveis palavras de morte: "Lembra-te, homem, que és pó, e que em pó te hás de tornar". E dentro do jazigo de encontra ouro... ostentação... luxo...

Para que pois uma tão grande mentira em dia de tão grande verdade?... não sabeis?

É porque o filho do rico tremeu quando viu que os ossos de seu pai não se podiam distinguir dos ossos do mendigo; e com as galas da vida quis esconder a igualdade do pó.

Embora... Ou no mausoléu, ou na simples urna funérea, estava sempre o triunfo da morte. Mesquinha diferença havia: um guardava o esqueleto do rico, a outra os ossos do pobre; mas de mistura um e outros, quem acertaria com a caveira do primeiro?. .

Havia aí mesmo nessa área tremenda, ouro, ostentação no exterior; pó e mais nada internamente. Por cima estava ain­da a vida... a mentira; por baixo triunfava a morte... a verdade.

A linha terrível e anti-religiosa que com tão maus resulta­dos divide os filhos de Deus em dois grupos, ricos e pobres: ricos que gozam e mandam; pobres, que trabalham e sofrem de contínuo, estava traçada aos olhos dos vivos; mas em seu hediondo aspecto as caveiras pareciam estar soltando disformes gargalhadas de escárnio contra pretensões vãs de uma vaidade impotente.

E pois, e apesar de tudo, havia aí no cemitério a igualdade dos mortos mal desfigurada pela desigualdade dos vivos.

E por entre esses mausoléus e esses túmulos, iam passando grave e tristemente aqueles que vinham chorar seus defuntos.

O silêncio dos túmulos era de instante a instante cortado pelos soluços dos vivos, e a sequidão do pó recebia as lá­grimas da carne.

Às vezes uma virgem pálida e indiferente a tudo que a rodeava, banhada em pranto de saudade, se deixava ver de joelhos junto de um túmulo, como a sombra de um finado descansado sobre seus restos. No meio dessa multidão de­solada, não se perguntava, adivinhava-se quais eram os pais, quais as mães que choravam seus filhos, porque essa dor profunda do coração fala mais alto e mais claro do que as outras.

Não era porém comum o ver-se sobre um túmulo deposta a roxa perpétua pela mão da simples amizade. Poucos se notavam os amigos de além-túmulo.

Mas lá em sombrio recanto havia uma urna humilde e modesta, onde um grande número de homens e mulheres se tinha ido ajoelhar e depor seus ramos de saudades. Ora um mancebo luzido e rico, quase sempre a pobre mulher envolta em negra mantilha, e o velho abatido e magro se fora curvar ante esse pó sem dúvida muito amado.

O túmulo como dito fica, era simples e humilde; tinha por inscrição na parte superior duas letras — P. A. — e logo abaixo delas uma outra — C.

Ultimamente uma velha magra, de cabelos brancos e olhos verdes, e um mancebo pálido, de cabelos pretos e olhos pardos, acabavam de ajoelhar-se junto do túmulo, e oravam profundamente.

Um homem, a quem o amor que se tributava àquele pó tão lembrado, parecia haver muito sensibilizado, esperou que a velha e o mancebo se erguessem para falar-lhes; mas vendo que ambos por demais se demoravam, aproveitou um seu momento em que a mulher levantou a cabeça e tocando-lhe no ombro, perguntou:

— Senhora, perdoe se a interrompo; mas por quem é que ora tão fervorosamente?

— Pelos pais dos pobres, respondeu a velha.

— Como se chamavam?...

A mulher apontou para as três letras, e disse:

— Paulo Ângelo e Celina.

— Ah! tem razão; por minha vez rezarei por eles.

A velha tinha já outra vez se mergulhado em suas orações.

Nesse momento aproximaram-se do túmulo um velho e duas senhoras; uma muito mais moça que se quis logo lançar de joelhos, e outra também moça ainda, que fez a primeira parar à força enquanto se não levantavam a velha e o mancebo.

Teve então lugar uma cena que atraiu a atenção de quase todos os circunstantes.

A primeira das recém-chegadas, que era tão jovem como bela, sustida à força por sua companheira, por entre um dilúvio de lágrimas, sufocada por seus soluços, encarava ainda assim com indizível mostra de gratidão a mulher e o man­cebo que rezavam junto daquele túmulo.

E o velho pálido, com os braços cruzados e a cabeça caída, chorava muito, como chora um pai pelo filho amado que lhe morreu.

Finalmente a velha persignou-se e se ergueu. Um lugar ficou vazio; o moço levantava-se também por sua vez, quan­do a jovem escapando-se das mãos da senhora que a sustinha, foi... atirou-se de joelhos ao pé da urna funérea, excla­mando:

— Meu pai!... minha mãe!...

O mancebo, que acabava de levantar-se, escutando aquela exclamação dolorosa, e olhando para a pessoa que a soltava, começou por seu turno a soluçar desabridamente, e, sem querer talvez, pôs as mãos ainda em pé, e depois foi pouco a pouco curvando-se até ajoelhar-se de novo.

No entanto a comoção ou o acaso tinha feito com que se soltasse a mantilha que a velha trajava; e então aquela mu­lher alta, magra, com seus longos cabelos cor de neve caídos sobre uma saia de sarja preta, com as mãos postas e em pé por detrás daqueles dois jovens, completava um quadro da mais dolorosa eloqüência.

Conhecendo que também ela se fazia objeto da geral atenção, apontou para o túmulo, olhou com seus olhos verdes para a multidão e disse:

— É o prêmio do justo.

E desfazendo-se em lágrimas, a velha envolveu-se de novo e rudemente com sua mantilha, e retirou-se apressada.

A esse tempo também o mancebo tinha já refletido sobre o que acabara de praticar, e espantado de si mesmo, apro­veitou o instante em que todos os olhos acompanhavam a velha, para desaparecer por entre os túmulos.



À inteligência de ninguém será feita a injustiça de dizer-se, como revelando um segredo, que essa mulher era Irias, e esse mancebo Cândido.

Somente convém acompanhá-los em sua volta para o "Purgatório-trigueiro".