Contra todos os seus hábitos, o velho Rodrigues, guarda-portão do "Céu cor-de-rosa", deixou às oito horas da noite o seu eterno posto do alpendre e desceu por um beco que vai abrir-se no largo da Lapa.
José e Helena, que estavam como sempre de espreita à janela, disseram um para o outro ao mesmo tempo:
— Temos novidade.
O ex-escrivão, tomou imediatamente o chapéu, e saindo, apressou os passos até descobrir o velho Rodrigues, e o foi acompanhando de longe, e com todo cuidado para não ser por ele descoberto.
Helena ficou só, mas sempre vigilante à janela, observando o que pela vizinhança ocorria.
O velho guarda-portão, sem nunca olhar para trás, atravessou o largo da Lapa, e tomou pela rua do Passeio Público, deixou ao lado esquerdo a rua das Marrecas, venceu todo largo da Ajuda, e como quem se dirigia para a de S. José, foi indo sempre no mesmo passo, até que endireitou para a portaria do convento da Ajuda, e foi sentar-se nos degraus superiores.
Jacó coseu-se com a parede do convento, aproximou-se quanto pôde do velho, e finalmente, atirou-se ao chão, procurando ser tomado por algum mendigo.
O guarda-portão descobriu-o a tempo, e reconheceu o ex-escrivão; mas não deu sinal algum de o ter feito, e ficou quieto no mesmo lugar, cantarolando por entre os dentes uma de suas prediletas baladas.
Um quarto de hora depois o vulto de um homem alto veio-se aproximando do posto que Rodrigues tomara.
O velho chegou-se mais, enfim subiu também os degraus da portaria: era um velho pouco mais ou menos da mesma idade de Rodrigues.
— Adeus, João, disse Rodrigues.
— Boa-noite, Rodrigues! disse o recém-chegado tomando lugar e sentando-se junto do guarda-portão.
— Esperaste muito?
— Não, há um quarto de hora, apenas.
— Que diabo! temos assim uns encontros, que melhor caberiam a dois ladrões, ou a dois namorados.
O guarda-portão sorriu e levantou os ombros, como quem queria dizer: — que nos importa?
— Conversemos, disse o recém-chegado: que novidades há?
— Que mau costume! murmurou Rodrigues; falas sempre com voz tão alta!
— Pois então que há?...
— Apenas um curioso que nos espreita.
— E onde está então essa peça?
Rodrigues apontou para Jacó, que fingia ressonar.
— Ora... é um pobre mendigo.
— Cala-te; é nada menos do que o celebre Jacó, que em outro tempo conheceste bem, e que hoje é meu vizinho, e tomou por sua conta espreitar todos os meus passos.
— Ui!... pois deveras?...
— Sem a menor dúvida.
— Vamos pô-lo dali para fora a pontapés.
— Para quê? basta que falemos baixo. Tenho pouco que dizer-te.
— Tens razão, tanto mais que me suponho em vésperas de tomar de novo conhecimento com ele.
— Como?...
— Vi-o entrar o mês passado lá em casa.
— E com que fim?...
— Não sei, mas hei de sabê-lo.
— É preciso.
— Vamos ao principal: conta-me o que há.
— Sim, porém torno a dizer-te que fales mais baixo.
—
Jacó não tinha até então percebido uma só palavra; apenas lhe chegava aos ouvidos um leve ruído; mas daí por diante ainda menos do que isso ouviu. João e Rodrigues eram para ele como dois mudos sentados ao lado um do outro. Arrependeu-se de haver seguido o velho guarda-portão, e a posição incômoda que tomara era como um castigo de sua insana curiosidade.
Os dois velhos amigos começaram a falar um com o outro em voz muito baixa.
— Então o que há?... repetiu João.
— Realizam-se minhas previsões.
— Amam-se?...
— Ele, como um louco, como um rapaz de vinte anos, que ama pela primeira vez.
— E ela?...
— Ou já o ama também, ou está em muito bom caminho para chegar a isso.
— E já sabe que é amada?...
— Creio que o pensava desde alguns dias; ontem porém teve a certeza de o ser.
— Quem lhe revelou o segredo?...
— Este seu criado.
— Bravo, sr. Rodrigues; está representando um excelente papel.
— Pois que querias tu que eu fizesse, João?... duas crianças tolas como eles são precisavam de quem lhes abrisse os olhos. E, sobretudo, não é verdade que convém terminar os nossos trabalhos? não crês que basta de provação?...
— Eu não te crimino, Rodrigues; ao contrário acho que tens ido às mil maravilhas; tanto mais que dois trastes velhos como nós, devemos dar graças a Deus por podermos ainda prestar para alguma coisa neste mundo.
— Enfim eles se amam, repetiu Rodrigues.
— Era natural.
— Temos porém novidades cem vezes mais importantes.
— Vamos lá.
— Realiza-se também a minha última previsão: o outro igualmente a ama.
— Oh diabo! o caso vai-se complicando; e ela?
— Despreza-o.
— Está no seu direito. E ele teima?...
— Faz mais do que isso.
— Então o quê?
— Quer impor-se.
— Como?...
— Ora como!... pois não adivinhas?... com a misteriosa influência que exerce sobre a viúva.
— Quando eu digo que o caso se vai complicando!
— Ontem o velho e a menina saíram a passeio. A viúva arranjou uma dor de cabeça, e deixou-se ficar em casa; daí a pouco chegou ele.
— Bem; e depois?
— Fecharam-se na sala, e conversaram uma hora.
— E tu?...
— Ouvi tudo.
— Bravo! és um herói.
— Ele exigiu que a viúva fechasse a porta do "Céu cor-de-rosa ao pobre rapaz.
— Por quê?...
— Porque suspeita que a pequena o ama, e não quer ter um rival tão perto dela.
— E a viúva?
— Negou-se a cumprir a exigência.
— E ele?...
— Declarou-lhe formalmente que se ela não a cumprisse, perdê-la-ia no conceito público.
— E finalmente...
— Separaram-se sem haver decidido coisa alguma.
— E o que concluis tu do que se passou?...
— Que dentro em pouco as portas do "Céu cor-de-rosa" serão fechadas ao moço pobre.
— E nada mais?...
— Concluo também que o outro sabe pelo menos metade do que nós sabemos.
— Ainda bem que ele sabe só metade; creio que não gostará quando vier a saber o resto.
— João, para mim é claro que a — décima segunda — existe em poder dele.
— É realmente a melhor maneira de explicar aquela misteriosa influência.
— E tu, nada absolutamente tens conseguido?
— Nada.
— É pena; porque enfim, pode ser que essa arma com que ele joga, acabe por fazer muito mal ao nosso plano.
— Que queres?... tenho trabalhado muito; mas sempre em vão. Já corri e examinei um por um, todos os papéis da casa.
— E nada?...
— E nada; falta-me só a carteira velha do defunto.
— Quem guarda as chaves?..
— Ele, que de ninguém as confia.
— Diabo! é nessa: tem um segredo no fundo da primeira gaveta do lado esquerdo.
— Lembro-me bem.
— E então que fazes?...
— Que faço! o que tu farias: espero.
— Esperar é quase sempre o maior de todos os castigos.
— E que remédio, Rodrigues? a carteira está em seu quarto de dormir, e ele quando sai leva sempre a chave; parece que esconde ali um grande tesouro.
— Não se engana; mas hás de roubá-lo.
— Esperemos.
— Calaram-se por alguns momentos os dois velhos. Estiveram ambos pensando, e depois disse Rodrigues:
— Ora dize, João, não parecemos dois decididos inimigos do tal sujeito?
— Às vezes quer me parecer que sim: pelo menos praticamos como tais.
— Não... não... isso não: ouve; se fosse preciso, eu dera o resto de minha vida para fazê-lo verdadeiramente feliz.
— Às vezes quase que não merece nada. Foi, e será sempre desenfreado extravagante.
— O seu fundo porém é bom. Sucede de ordinário assim com todos os extravagantes.
— Pode ser que tenhas razão.
— Ultimamente não se tem portado tão loucamente, como dantes.
— Descansa para recomeçar.
— Basta. É tempo de nos irmos.
— Quando nos veremos outra vez?
— Amanhã não pode ser: há reunião extraordinária no "Céu cor-de-rosa"; faz anos a "Bela Órfã".
— Seja depois de amanhã.
— Pois bem: depois de amanhã; adeus.
Separaram-se os dois velhos. João sumiu-se voltando o canto da rua da Ajuda. Rodrigues atravessou os mesmos largos e ruas por onde tinha vindo, e entrou no alpendre do "Céu cor-de-rosa".
Jacó, desesperado e furioso por não ter podido conseguir apanhar uma única frase da longa conversação dos dois velhos, voltou para sua casa em um verdadeiro estado da ebulição.
— Então, exclamou Helena apenas o viu entrar; que foi fazer o coruja?...
— Encontrar-se na portaria do convento da Ajuda com outro coruja, como ele, e com quem falou mais de uma hora.
— Sobre quê, meu caro Jacó?...
— São dois monstros, dois sicários, dois demônios...
— Então...
— Eu não pude ouvir nada; falaram em segredo; respondeu Jacó desatando profundíssimo suspiro.
Oh! malvados!... exclamou Helena.
E naquela noite os vizinhos de Jacó e de Helena foram mais que nunca vítimas da mordacidade, das calúnias desse par sem igual.