Quando, de volta do jardim, Cândido entrou na sala, Mariana e Henrique conversavam com fogo, e defronte deles Salustiano estava em pé de braços cruzados, como quem espera por alguma coisa.

Cândido não acreditara nas palavras de Anacleto; compreendera que as lágrimas do velho exprimiam antes um grande sofrimento moral do que uma dor física; por isso mesmo respeitava o segredo daquele padecer; mas observava curioso o que se passava então no "Céu cor-de-rosa".

Estava-se aí tecendo uma dessas intrigas de salão... era uma mina que se abria; qual deveria ser a vítima?...

Moço e inexperiente, Cândido nada pôde concluir de suas observações: a assembléia toda se mostrava, como desde o começo da noite, alegre e festiva; Mariana sorria-se meigamente para Henrique; Celina estava bela e contente, mesmo mais contente do que ordinariamente parecia.

No meio de tanto prazer, como achar a origem de uma grande tristeza?...

O velho Anacleto chegou pouco depois, e Cândido ficou ainda admirado ao vê-lo prazenteiro dirigir-se a todos, gracejando com as senhoras e animando a sociedade já um pouco fatigada.

Na alma de Cândido apareceu este pensamento; "Quem sabe se alguns dos que se estão aqui rindo alegremente, não terão ido chorar, às ocultas, como o velho Anacleto?"

Pela primeira vez em sua vida ele sentiu que, nas sociedades, o rosto se mascara com sorrisos... com olhares... e com palavras.

Henrique e Mariana separaram-se. Salustiano ia dirigindo-se ao primeiro, tendo porém os olhos fitos na filha de Anacleto, que, mal podendo conter um movimento de terror, foi direita ao lugar onde estava Cândido.

Salustiano voltou imediatamente à sua primeira posição.

Mariana falou a Cândido. Sua voz parecia comovida.

— Quer fazer-me obséquio de dar-me o braço?

— Oh! com sumo prazer.

Um homem pobre agradece com tanto reconhecimento qualquer pequenina prova de consideração!...

— Para onde quer que a acompanhe, minha senhora?... prefere passear nas salas, ou ir ao jardim?..

— Vamos ao jardim.

Cândido observou que o braço de Mariana tremia.

Quando chegaram ao jardim, a viúva e o mancebo entraram no caramanchão, e ela, sentando-se no banco da relva, disse:

— Sente-se ao pé de mim... conversemos.

Cândido sentou-se curioso; Mariana hesitava.

Aquela mulher, de caráter tão forte, ia cumprir as ordens de um homem que não era seu pai, nem seu marido, nem seu irmão. Agora fraca e humilde, desempenhava o papel de escrava, obedecendo ao aceno de seu senhor.

Esteve em silêncio por algum tempo a devorar seu cálice de amargura ali, naquele banco de torturas, onde pouco antes seu pai havia tanto chorado por causa dela.

Enfim, com esforço indizível tomou a mão de Cândido, apertou-a entre as suas, e disse:

— Este mundo... este mundo, senhor, é um inferno!...

— Para os infelizes, senhora.

— Oh! e onde estão os seus bem-aventurados?... ninguém julgue da paz do coração pelo sossego e prazer do semblante; quase sempre quando a alma chora lágrimas de sangue, os lábios sorriem e os olhos brilham!...

— Eu compreendo que às vezes sucede assim.

— Este mundo, sr. Cândido, é um tirano, um déspota inexorável, que todo ornado de prejuízos e de quimeras, impõe-nos o dever de respeitar seus prejuízos, e de adorar suas qui­meras! e ai daquele que resiste!...

— É verdade... é verdade.

— Os homens curvam-se a idéias falsas e indignas deles, e as desenvolvem porque, enfim, força é ser escravo do mundo!

— Não, isso não, minha senhora; o mundo não pensa, são os homens que, pervertidos e desmoralizados, concebem essas idéias. O mundo não tem culpa de ser assim, os homens o vestem com essas roupas.

— E o remédio?...

— O remédio é instruir e moralizar o povo.

— E enquanto ele não se instrui nem se moraliza?...

— Deve-se bradar com força contra aqueles a quem compete moralizá-lo e instruí-lo.

— Sim, mas o primeiro que se erguer contra um prejuízo que reina, será vítima, e ganhará em vez de palma de vitória a coroa de martírio.

— Embora. Sócrates morreu, porém suas idéias vingaram.

— E quem quereria ser Sócrates?.

— Oh! minha senhora, perdoe-me; mas julgo melhor fazer de outro modo a pergunta.

— Como?...

— Quem poderia ser Sócrates?...

— Pois aceito: quem poderia sê-lo?...

— Um bom governo.

A viúva pensou alguns instantes; a conversação ia tomando caminho contrário ao que ela queria levar; finalmente, começou de novo:

— E enquanto a revolução moral não se faz, enquanto a sociedade não reforma os seus costumes, o que hão de fazer os homens, o que farão principalmente esses entes fracos, as mulheres, que desde que nascem até que morrem precisam sempre de um apoio na vida; o que hão de fazer, senão curvar-se a esses erros, a esses prejuízos?...

— Uma grande mulher responde por mim, senhora; Mme. de Stael — penso que foi ela — escreveu em um livro: "Os homens devem arrostar a opinião pública, e as mulheres curvar-se a ela". Eu digo o mesmo dos prejuízos de que fala.

— Oh! mas é horrível!

— Eu o sinto, minha senhora.

— Às vezes ter uma mulher, para respeitar essas indignas quimeras, de quebrar uma corda sonora de seu coração... às vezes ir parecer má, sendo benigna... dizer uma mentira, tendo na alma a verdade; é muito é horrível!

— Mas não é tanto assim, minha senhora; a mulher deve curvar-se diante do juízo dos homens só e unicamente até o ponto donde pode começar a ser ofendido o juízo de Deus.

— Pobres mulheres! às vezes o dito de uma criança é de sobra para perdê-las na opinião do público; e depois o dis­curso de um sábio não basta para purificar seu nome dessa nódoa imaginária! pobres mulheres, que precisam pesar suas palavras de cada vez que falam, ter cuidado com seus olhos de cada vez que olham... porque fazem de suas palavras e de seus olhos provas de erro, e até às vezes de crime!

— Afeia demais a posição do seu sexo na sociedade, minha senhora.

— Não, isto é assim; eu, e todas, o temos experimentado. Há ocasiões em que um homem, que nos é indiferente ou só estimado como amigo, que nos respeita, que só por ami­zade pura e sem interesse freqüenta a nossa casa, põe, apesar disso, em dúvida a inocência de nossas afeições; e, sem o pensar, abre caminho à mordacidade, e presta uma vítima à calúnia!

Cândido não respondeu. Ficou olhando para Mariana como querendo apanhar-lhe algum pensamento oculto, que acabasse de ressumbrar em suas últimas palavras.

Depois de hesitar também por algum tempo, a viúva continuou com voz muito comovida:

— O senhor mesmo não tem escapado à maledicência.

— Eu? exclamou Cândido estremecendo.

— É verdade.

— E como?... e por quê?

— Eu lho vou dizer... custa-me muito a fazê-lo, porque talvez o senhor se julgue ofendido; mas eu cumpro o meu dever... o meu desgraçado destino de mulher.

— Fale sem receio, minha senhora.

Mariana hesitando sempre, e sempre comovida, começou, pobre escrava, a cumprir as ordens de seu senhor.

— Sabe, que mortos os pais de Celina, foi o meu, como avô dela, nomeado seu tutor, que ele e eu recebemos a sagrada missão de velar por ela, e de fazer tudo por torná-la feliz?...

— Sei, minha senhora, respondeu Cândido que de novo estremecera ouvindo pronunciar o nome da "Bela Órfã".

— Pois então, tornou Mariana, compreende a imensa responsabilidade, que pesa sobre nós?... compreende que sobre meu pai, e sobre mim recairá a culpa de qualquer falta que por minha sobrinha for praticada, ou da calúnia que contra ela ousarem lançar?...

— Compreendo, disse o mancebo recordando-se das lágrimas do velho Anacleto.

— Agora escute: esse povo insano, que não vive senão quando murmura, essa gente indigna, que quando não acha uma ação de que murmurar inventa-a para com ela alimen­tar-se; esse povo, essa gente quando vê um mancebo solteiro freqüentando a casa em que existe uma senhora que não é casada, não pergunta o motivo de suas visitas, não indaga a origem das relações que existem, brada, insulta, calunia!

— Que quer dizer, minha senhora?...

— Quero dizer que desde as primeiras visitas que do senhor recebemos graças, eu me ufano de o declarar a todos, graças a nossos reiterados convites, minha sobrinha e o senhor tem sido vítimas da aleivosia.

— É possível?!

— Ousam dizer que Celina e o senhor se amam e se correspondem, e que meu pai e eu protegemos esse amor...

— Mas é uma infame calúnia!... exclamou Cândido.

— E que importa ao mundo que murmura que o senhor e nós todos juremos que isso é falso?... que a sua presença nesta casa é devida somente a nossas repetidas instigações... que o seu comportamento aqui é nobre, é leal, é digno de um homem de educação?... o mundo continua a murmurar, como de fato tem continuado... vai de boca em boca passando a calúnia, e os últimos que a escutam já a recebem como verdade.

— Ah! senhora!...

Mariana hesitou, corando de si mesma. — Ousam dizer até... porque era horrível mentira, o que ia avançar; Cân­dido pensou que ela corava de vergonha disso que ousavam dizer, e falou a custo.

— Diga tudo, minha senhora, nada se deve esconder àquele que vai ser condenado.

— Ousam dizer que o senhor se gaba de merecer o amor de Celina a seus próprios amigos...

— Gabar-me a meus amigos?... eu sou pobre, minha senhora, muito pobre para ter amigos. Essa acusação é tão miserável que eu me rebaixaria se a combatesse.

— Hoje mesmo, e dentro de nossa própria casa a calúnia achou pasto para alimentar-se; ainda há pouco, quando o senhor cantava, houve quem visse muito fogo nos seus olhos, e uma declaração de amor no seu canto. No fim dele as amigas de minha sobrinha foram cercá-la, zombar, e dar-lhe irônicos parabéns pela sua futura felicidade.

Cândido sentia-se possuído de desespero e de vergonha; ansiado, faltava a seus pulmões ar para respirar; enxugava com o lenço suor copioso, que em bagas lhe descia pelo rosto. Seu coração estava comprimido por um pêso enorme; arquejava.

A viúva prosseguiu:

— Minha infeliz sobrinha correu para mim desolada, e escondida comigo no fundo de meu quarto, chorou tanto e tanto, que me fez dó, e obrigou a um passo que me causa realmente muita aflição.

— Ela chorou, senhora?... perguntou Cândido torcendo as mãos com violência.

— Oh! sim! ela tinha razão; perdoe-lhe, pois. Ela pesou as conseqüências desses boatos, e teve medo.

— E teve medo!... balbuciou automaticamente o mancebo.

— Porque, senhor, se esses boatos não forem desmentidos de algum modo muito positivo, qual será o resultado deles? uma barreira se levantará diante do futuro da pobre menina. Nenhum homem de bem quererá pretender a mão, a posse da namorada de um outro, e, ou ela se casará com algum que não tenha sentimentos elevados... ou ficará eternamente solteira... o que é na verdade uma desgraça, ou, enfim, casar-se-á com o senhor.

— Ou enfim... balbuciou outra vez Cândido.

— Oh! mas eu tenho bastante conhecimento da generosidade de sua alma para acreditar que tudo isto lhe é tão doloroso como a ela; eu vejo que o senhor não se achando com forças, não podendo fazer a ventura de Celina...

A viúva hesitou outra vez.

— Não podendo... repetiu surdamente o mancebo.

A viúva respirou, animou-se, e prosseguiu.

— Porque o senhor é pobre... não tem bastante para si... e Celina está habituada a cômodos e prazeres, que enfim o senhor não a poderia fazer feliz... é pobre... e...

— Sou pobre... disse o mancebo com voz sombria e sacu­dindo a cabeça; é isso mesmo: eu sou pobre...

— E quando mesmo os senhores se amassem realmente, e o amor, operando um milagre que não seria o primeiro, fizesse com que Celina se julgasse feliz partilhando as privações da sua pobreza; essa felicidade duraria dois ou três meses, talvez mesmo um ano; mas passada a força da paixão... a realidade chegaria por sua vez, Celina choraria seus antigos prazeres, que o marido lhe não poderia dar em sua pobreza.

— A pobreza!

— E o senhor também se havia de arrepender de havê-la desposado; porque talvez que um homem rico e feliz, um ho­mem que ocupasse na sociedade uma posição que se visse...

— Que se visse!...

— A quisesse por mulher; e então é conseqüente, e eu creio que o senhor pensará comigo, que uma mulher no seio da riqueza, gozando os regalos que ela facilita, brilhando pela posição de seu marido, é mil vezes mais feliz, é sem compa­ração mais ditosa do que nos braços de um pobre, que não teria para dar-lhe senão lágrimas de amor no princípio... e no fim impertinências e dissabores de indiferença...

— Tem razão.

— Oh! não sou eu que a tenho, é minha sobrinha que a tem; minha sobrinha, que o estima; mas que não pode dei­xar de chorar a sua fama assim ultrajada por seu respeito... bem que o senhor não tenha para isso cooperado.

A viúva calou-se... Cândido não podia dizer palavra; ambos porém sofriam muito. O mancebo tragava fel de amargura, de vergonha e de desespero, e Mariana sentia-se devorada por violentos remorsos.

Mas era escrava: tinha obedecido a seu senhor.

Estavam já em silêncio há alguns minutos, quando ouviu-se o toque da meia-noite.

Mariana ergueu-se, e disse:

— Ah! meu Deus! que tempo estamos fora da sala... hão de ter reparado em minha ausência... voltemos, sr. Cândido.

O mancebo que se tinha deixado ficar sentado no banco de relva, respondeu com voz sombria:

— Não; eu fico.

A viúva retirou-se a passos vagarosos e com a cabeça baixa; desaparecendo pela portinha que deitava para o jardim, ela encostou-se à parede do corredor e desatou a chorar,

Quando Mariana acabava de sair do jardim, surgiu dentre alguns arbustos um homem alto e cuja cabeça alvejava de tão branca que era.

Chegou-se ao caramanchão, e dirigindo-se ao mancebo, disse:

— Aquela mulher mentiu.

— Não mentiu! exclamou Cândido com violência, não mentiu! é a verdade! o mundo falou em seus lábios... tudo aquilo quer dizer — o homem pobre é um miserável... o contato do homem pobre mancha o rico... seu hálito é pestífero... o seu aspecto hediondo... a pobreza é a morféia!

E acabando de pronunciar essas palavras, saiu correndo pela portinha do jardim.

Ficou só o velho Rodrigues.