Na noite dos anos da "Bela Órfã", foi a velha Irias uma das primeiras pessoas que reparou na ausência de Cândido.

Depois de esperar inutilmente vê-lo entrar de novo na sala, perguntou por ele, e soube com espanto que se havia retirado.

Receando que algum incômodo grande e imprevisto tivesse sobrevindo a seu filho adotivo, despediu-se dos donos da casa, e deixando o "Céu cor-de-rosa" entrou no "Purga­tório-trigueiro".

Subiu ao velho sótão, a porta estava fechada. Bateu em vão primeira, segunda e terceira vez.

Espantada daquele silêncio que no sótão reinava, desenhando-se em sua imaginação já um grande infortúnio, Irias gritou com força:

— Cândido! meu filho!... Cândido!...

Ouviu então os passos de alguém que da porta se aproximava, e Cândido respondeu:

— Ide sossegar, senhora; não tenhais receio algum pelo meu estado... não estou doente.

A voz do mancebo tinha um não sei quê de assustador.

— Abre! disse a velha.

— Amanhã, senhora.

— Abre! eu quero que abras.

— Eu preciso de repouso.

— Abre!

— Perdoai-me... mas esta noite não posso obedecer-vos.

— Abre, Cândido! exclamou a velha; abre em nome da mulher que te concebeu... abre em nome de tua mãe.

O mancebo pareceu hesitar ainda: mas logo depois deu volta à chave, e a porta abriu-se.

— Acertastes! disse ele; de hoje avante tudo por minha mãe... tudo... e só por ela.

Irias ficou extática diante de Cândido.

Não era mais aquele moço pálido, melancólico, abatido e fraco: seus olhos brilhavam de ardentes, suas faces estavam rubras, seus lábios às vezes convulsos, havia em todo seu semblante fogo e vivacidade; mas de sua fronte caíam gôtas de suor, e em seu aspecto, e em seus modos notava-se a agitação, e esse excesso de vida que acompanha os febricitantes.

— Que é isto?... que tem?... bradou Irias agarrando-lhe no braço.

— Quereis dizer que nunca me vistes tão belo, não é assim, senhora?... respondeu o mancebo com um rir convulsivo, que fez estremecer a velha.

— Cândido!...

— Pois então?... não é melhor assim?... não estou mil vezes mais belo com este meu rosto enrubescido, com meus olhares flamejantes, com este ardor e este fogo, em vez de todo aquele gelo antigo? oh! aplaudi-me!... batei palmas!... eu triunfo!... sou feliz!...

Uma risada nervosa terminou a delirante exclamação de Cândido.

A velha, que tinha entre as suas segura a mão do seu filho adotivo, disse com força:

— Tu não estás bom... tens febre; eu vou chamar um médico.

De um salto colocou-se o moço diante da porta, e respondeu:

— Aqui não entrará mais ninguém esta noite: para que um médico?... o que é um médico?... é o homem da vida, é o homem que deve esforçar-se para prolongar o mais possível a nossa existência, é o inimigo da morte; pois então para longe!... a vida é somente uma longa cadeia de tormentos: suas duas únicas realidades a definem com um gemido; porque o homem geme quando nasce, e geme quando morre; portanto aquele que tem por ofício estender esse longo aparelho de torturas, é um tirano. O médico é um homem mau... nada de médico!

— Meu filho!...

— Não! não! eu não sou vosso filho, sabeis?... não quero que me chameis por esse nome... é um direito sagrado que usurpais! devo-vos muito, não é isso?... pois bem, tomai todo meu sangue... ou melhor, sede a senhora de meus dias: trabalharei enquanto viver para vos sustentar; serei vosso escravo, e ainda assim morrerei confessando que vos fico devendo muito; mas ah! não me chameis vosso filho! de hoje avante está isso decidido... não me chameis vosso filho!

A velha começou a chorar. Cândido, que passeava a largos passos por toda a extensão de seu quarto, escutou enfim um soluço da pobre Irias; correu para ela, e achou-a sentada em seu leito, desfazendo-se em lágrimas.

— Vós chorais?... perguntou ele; que querem dizer essas lágrimas?... não confessei já que vos devia tudo?

— Oh! não! vós não me deveis nada, respondeu a mísera velha.

A voz de Irias trazia o acento de tamanha dor, que abriu o coração do mancebo a seus naturais sentimentos. Esque­cendo de súbito os tormentos que o faziam desarrazoar, caiu aos pés da velha, e de joelhos, abraçado com eles, exclamou:

— Perdão! mil vezes perdão, se vos ofendi! amaldiçoada esteja a minha alma, fechadas lhe sejam as portas do céu, senhora, se uma só vez concebeu uma só idéia que pudesse ser inspirada pela ingratidão a vossos benefícios. Vós tendes sido tudo para mim! em vosso seio eu bebi o leite da vida... fostes quem ganhou o meu primeiro sorriso infantil! vós éreis pobre, não tínheis senão um pão, e me destes metade desse pão! e me destes vosso coração todo inteiro!... perdoai-me! perdoai-me!... que hoje depois de tanto sofrer seria demais para mim a convicção de ter movido vossas lágrimas! perdoai-me!...

A velha e o moço abraçaram-se apertadamente, misturando o pranto que derramavam ambos.

As lágrimas pareceram abrandar um pouco a excitação de Cândido: ele ficou, durante algum tempo, silencioso e pensativo diante de Irias, que não pronunciava uma só palavra, medrosa talvez de ver renovar-se o desespero de seu filho adotivo.

Finalmente foi Cândido quem rompeu o silêncio, dizendo tristemente:

— Eu me lembro do que disse: pedi que não me chamásseis vosso filho.

— Não falemos mais nisso.

— Ao contrário, devemos falar; pois eu... eu que não quero deixar em vosso coração a mais leve dúvida a respeito de meus sentimentos, pedi que me não chamásseis vosso filho... foi um desvario produzido por minha exaltação: eu vos ofendi, porque não estava em mim; um remorso, que me tortura, fez-me delirar.

— Um remorso!...

— O remorso de uma grande falta que eu cometi, e da qual já comecei a receber o castigo.

— Como?... quando?... perguntou Irias.

— Desrespeitei um sentimento sagrado... quis cultivar na minha alma uma flor estranha ao pé de outra flor, que lá está plantada pela mão do Senhor Deus. Sabeis o que acon­teceu?...

— O quê?

— A flor estranha está murcha... está morta, disse com voz trêmula e dolorosa o mancebo; mas deixou para sem­pre na minha alma o germe de um tormento horrível... desesperado!

Os olhos e o rosto de Cândido acendiam-se de novo: a velha começou a recear que sobreviesse algum acidente mais grave, e ia falar, quando o moço prosseguiu com voz cada vez mais repassada de dor:

— Plantei em um vaso sagrado uma flor humana, quis equiparar um sentimento, que me veio do céu, com outro que achei na terra. O resultado é este; o vaso foi profanado... a flor humana feneceu... um remorso é o que dela me resta.

— Cândido!

— Quereis dizer que não me tendes compreendido?... eu vos explico tudo; metade da culpa pertence-vos também; mas mal não vos quero por isso. Ouvi-me.

A velha não achou uma só palavra para dizer a Cândido, que continuou a falar.

— O amor dos pais vem do céu: é um sentimento tão grande, tão nobre, tão divino, que apesar de ser natural a todos os homens; de às vezes achar-se um bom filho em um mau cidadão; o Senhor Deus desceu do céu, misturou-se com os homens e quis que esse sentimento fosse dele também, fa­zendo-se filho de uma mulher. O amor dos pais nos anima, nos consola, nos exalta, nos aproxima de Deus. Oh! eu nunca vi meus pais, e os amei com toda a força de minha alma. Quando soube que no mundo só me restava mãe, concentrei todos os raios da minha faculdade de amar nessa mulher, que eu tenho criado na minha imaginação tão bela como um anjo. Oh! minha mãe!... eu não tinha pensamento que não fosse dela; todos os meus desejos, todos os meus sonhos de venturas relacionavam-se com ela: oh!... eu pensava ser, mas não era desgraçado! porque no meio de meus dissabores, de minhas tristes vigílias, de meus sofrimentos e de minhas privações, a imagem de minha mãe me aparecia bela... amante... carinhosa; e, contemplando essa imagem, eu esquecia todos os meus infortúnios. Eu era pobre no mundo, mas com o meu coração rico deste amor, eu gozei muitas vezes delícias indizíveis; porque, quando eu me engolfava em belas fantasias a respeito de minha mãe, quando me sentia redobrar de amor por ela, oh!... parecia-me ver lá de cima, do céu, o Senhor Deus sorrindo para mim, mandar-me um anjo murmurar-me aos ouvidos — abençoado!...

— Abençoado!... repetiu a velha enxugando com a face dorsal da mão duas grossas lágrimas que dos olhos lhe caíram.

— Não é verdade que eu deveria contentar-me com esta suprema felicidade que gozava? felicidade que não há ouro que a compre!...

— Oh! sim! sim!...

— Pois o coração do homem é uma fonte de insaciável ambição; o homem é tão ambicioso de riquezas, de honras, e de empregos, como de afeições. Eu perdia-me, porque sou como todos os outros.

— Como? que queres tu dizer?...

Cândido passou a mão pela fronte e prosseguiu:

— Da fresta daquela janela vi uma mulher de quem eu não podia ser filho, e que eu amei tanto quanto amava e amo a imagem de minha mãe!...

— Que importa?...

— Que importa?! pois não é um sacrilégio igualar o sentimento da terra com um sentimento que foi digno de Deus?! oh!... pois não é uma ingratidão inqualificável amar a uma mulher a quem nada devemos, que muitas vezes nos não paga o nosso amor, que outras vezes é mesmo indigna de ser amada, e amá-la tanto quanto amamos aquela que padeceu por nós horríveis transes, aquela cujo sangue é o nosso sangue?! é sacrilégio, senhora, e é ingratidão. Eu fui sacrílego e ingrato!

— Cândido!...

— Esqueci tudo por uma criança de dezesseis anos, que ao romper de uma aurora descobri por entre as flores daquele jardim. O momento que bastou para vê-la começou a pesar em meu coração tanto quanto até então tinha pesado minha mãe. Esqueci minha pobreza, não me lembrei que aí por esse mundo um pobre é um ente à parte, que não deve comer à mesa com os ricos, que não deve amar a quem tem mais do que ele... esqueci tudo... de minha mãe, comecei a lem­brar-me menos; no altar da minha alma coloquei duas santas... e quando orava, já não orava só por minha mãe!... fiz mais: deixei o silêncio de meu quarto, fui tomar parte nas festas de gente que não era pobre como eu; riram-se tal­vez de mim, mil vezes em cada noite!... eu diverti-os, cantei, para que me tolerassem ali... curvei-me... abaixei-me... e nem assim me toleraram.

— Cândido!...

— A culpa foi também vossa, exclamou Cândido; quem vos inspirou o fatal pensamento de ir patentear o estado do meu coração àquela criança?... porque viestes tirar daqui os versos que eu escrevia em minha loucura?... oh!... eis aqui a vossa e minha obra!... tiveram piedade de mim: despediram-me, e não me mandaram correr pelos escravos, oh! foram piedosos! respeitaram a linha com que, em seus tratos e modos, distinguem um pobre de um cão!...

— Cândido!... é possível o que estais dizendo?...

— Pensais que eu me lastimo! ...continuou o mancebo; pois já não confessei que era um castigo? julgais que me resta algum ressentimento?... não: é um remorso o que me resta!

— Oh! não é isso, exclamou Irias; não é isso o que te quero perguntar; o que eu desejo é saber se tu zombas, se estais em ti, se não inventas?...

O mancebo riu com um rir terrível.

— Eles despediram-te?...

— Como a um pobre se despede.

— Eles?... ela?!

— Por que vos admirais?...

— Ela te ama.

Cândido tornou a rir mais terrivelmente ainda do que há pouco.

— Ela te ama! repetiu com acento de profunda convicção a velha Irias.

— Não! bradou o moço; não, e não! se é uma consolação que pretendeis derramar na minha alma, minha alma rejeita uma consolação em que não pode acreditar.

— É uma verdade, o que eu digo... uma verdade que o futuro te há de demonstrar.

— Então vós vos enganais, senhora; estais ainda menos adiantada que eu no conhecimento deste mundo, onde tendes vivido três vezes mais do que o desgraçado que adotastes.

A velha fez com a cabeça um movimento de impaciência, e ia falar.

— O que é, continuou Cândido sem querer ouvir Irias, o que é que vos prova o amor dessa moça?... quê?... não ordenar que me lançassem fora de sua casa no momento mesmo em que tivestes a imprudência de lhe declarar o meu amor?... sofrer que eu para ela algumas vezes olhasse, e algumas vezes também ter olhado para mim?... engano e ilusão, senhora!... essa mulher é como as outras. A mulher se apraz de merecer o amor, a admiração da criança, do moço e do velho; todos eles incensam o amor-próprio, a vaidade mesmo, que é a corda mais vibrante do coração da mulher! amai-me! admirai-me! diz ela; porém pagar esse sentimento que querem inspirar com outro sentimento igual, é mui diverso do que isso. Quem confunde amor com vaidade dirá também, como vós dizeis, que eu fui amado pela neta de Anacleto.

— Então esse amor entra porventura na ordem dos impossíveis?.

— Dos impossíveis absolutos não; porém no pé em que se acha a sociedade, entra na ordem dos impossíveis morais.

— Como?... meu querido Cândido, que te falta para ser amado?...

— Falta-me aquilo que é hoje no mundo a primeira das virtudes; a virtude que encanta homens e mulheres; que abre-nos a porta dos empregos e das honras; que abre-nos corações ao amor... falta-me a virtude a quem se está rendendo um culto idólatra; falta-me a riqueza.

— Oh!...

— Pois então?... aquela mulher não tem olhos para ver que eu sou pobre, e vendo-o, não tem inteligência para compreender que amar um pobre é uma loucura?... ela fez o que devia.

— Desvairas...

— Não; estou calmo, falo com a frieza da razão. A mulher é vaidosa sempre, quer ser amada, admirada por sua beleza e por seus vestidos. Quer para seu marido um homem em alta posição para elevar-se ela também; quer estar de alto, coberta de sedas e de brilhantes, deslumbrando os homens e sendo invejada pelas outras mulheres. No casamento isto é tudo, e o amor é quase nada. E a mulher, que isto consegue, lá vai... incensada... feliz... deslumbradora... invejada... ainda que seu marido seja um ente abjeto e estúpido; que abjeto!... que estúpido!... não há abjeção nem estupidez onde há riqueza. Os altos funcionários, que nunca estão em casa para receber o artista de mérito, o velho soldado, e o honrado servidor do país, o estão sempre para ir ajudar a descer da carruagem o milionário analfabeto. Que queríeis que fizesse a mulher?... esqueceu a missão do céu; ornou-se com os prejuízos e as douradas vilezas da terra... embora... o mundo bate palmas!...

— Isso não é falso; mas é exagerado, respondeu tristemente a velha Irias.

— Oh! não... é a própria verdade, mal pintada ainda. Perguntai a todos os que sofrem, perguntai a vós mesma. A sociedade não tem pejo!... hoje despreza um moço humilde, sem educação, que vive em miséria, e que para viver se sujeita a trabalhar como um escravo, e que por isso mesmo é indignamente ridicularizado; bem... amanhã esse moço, que compreendeu a época em que nasceu, enxergou... descobriu um meio que lhe oferece imensos... incalculáveis lucros; mas esse meio, sim, é que é desonesto; é que desdou­ra, é que rebaixa o homem diante da moral e da própria consciência... que importa?... o moço aproveitou-o... foi feliz. E depois de amanhã, senhora, quando o moço sai no seu belo carro, os grandes da terra, os nobres, os ministros e todos enfim o saúdam respeitosos, e vão depois festejá-lo... curvar-se diante dele!... isto é mentira ou verdade?...

A velha guardou silêncio.

— Não se zomba senão do pobre; não se ridiculariza senão a ele. Dizei, por que é que sois o alvo de uma zombaria desprezível?... por que foi que vos lançaram uma alcunha insultuosa?... por que é que quando passais, a gente que vos vê sorri, e vos maltrata, lançando sobre vós um epíteto afrontoso?..

— Porque eu sou uma triste mulher velha, respondeu Irias.

— Não, senhora; é somente porque vós sois uma triste mulher pobre.

— Embora... embora; isso porém não me tira do meu pensar: a "Bela Órfã" te ama.

— Pois bem, ficai-vos com o vosso pensar.

— E eu hei de provar-te que tu te enganas com ela; e serás tu o primeiro que me virás confessar a injustiça que lhe estás fazendo.

— Será difícil.

— Freqüenta com mais assiduidade o "Céu cor-de-rosa"...

Cândido, que já se achava mais sossegado, tornou-se de novo rubro de despeito e vergonha.

— Eu não irei lá nunca mais... exclamou.

— Nunca mais?...

— E se lá tornasse merecia que me lançassem longe da porta como a um cão.

— Cândido!...

— Eu não irei lá nunca mais! repetiu com veemência o mancebo.



E estava cumprindo à risca o seu propósito; dois serões haviam tido lugar depois da noite dos anos de Celina, e Cândido tinha faltado a ambos.

No começo da noite que se seguiu à do segundo serão, achava-se Cândido descansando no sótão do "Purgatório-trigueiro", quando a velha escrava de Irias lhe anunciou o sr. Anacleto.