Entraram as duas moças na sala, e Salustiano, que se tinha recostado a uma janela, voltou-se para recebê-las.

Sentaram-se todos três.

Era bem de estudar-se a expressão fisionômica de cada uma daquelas três personagens.

Celina, que havia sido trazida quase à força para a sala, mostrava-se contrafeita e acanhada; sentou-se bem unida a Mariquinhas, cuja mão apertava como procurando uma defesa.

Salustiano esforçava-se para ostentar a impassibilidade de que se jactava; mas não podia esconder de todo a comoção que sentia na presença da moça que amava, e o quanto o contrariava uma terceira pessoa, que ele não queria encontrar ali naquela ocasião.

Mariquinhas completava o grupo. No meio dos dois desapontados aparecia risonho, belo e malicioso o rosto da interessante moça. Seus olhos vivos e travessos confundiam realmente Salustiano, que, a pesar seu, já não tinha sarcasmos para suas palavras, nem para seus sorrisos.

— Sinto havê-la incomodado... tinha dito Salustiano muito desenxabidamente.

— Oh! não, não nos incomodou, respondeu Mariquinhas; deu-nos ao contrário muito prazer.

— Seria isso possível?... perguntou o moço, fitando os olhos em Celina.

— Pois ainda duvida?... tornou a primeira.

— Perdão, minha senhora; mas considero tão subida essa felicidade que muito me custa acreditar nela.

— Ora esta!... eu achava a coisa muito simples!

— Talvez para V. Exa.

— Digo mesmo que a sua visita foi um verdadeiro obséquio que V. Sa. nos fez.

— Lhes fiz?! V. Exa. fala em nome de mais alguém?... perguntou sorrindo-se o moço.

— Certamente: falo também em nome da minha amiga.

Celina apertou com força a mão de Mariquinhas.

— Ai! não me apertes a mão, d. Celina!...

— Ora, d. Mariquinhas, você está sempre brincando!

— Mas, como eu dizia, V. Sa. nos fez um verdadeiro obséquio aparecendo aqui.

— Bem... suponhamos que V. Exa. não está apenas dizendo palavras muito lisonjeiras; suponhamos que eu tenho a vaidade de acreditar que fiz um verdadeiro obséquio a V. Exas. aparecendo aqui; devo porventura concluir que eu era esperado e desejado?

Mariquinhas pensou um momento; sorriu-lhe a malícia nos lábios, e depois respondeu:

— Esta d. Celina compromete as amigas terrivelmente! é capaz de conservar-se em silêncio um dia inteiro!

— Tenha V. Exa. a bondade de responder por ela.

— Pois bem: digo que não era positivamente V. Sa. quem desejávamos ver.

— Eis aí o que eu não compreendo.

— Queríamos a presença de um de certos cavalheiros, e V. Sa. serve-nos a mil maravilhas.

— Posso saber para quê?...

— Para um estudo particular.

— Ora!... eis-me compreendendo ainda menos do que ainda há pouco.

— Trata-se de um segredo de moças.

— Bem... não perguntarei mais nada.

— Oh! pelo contrário, pergunte. Eu sou como as outras; quando tenho um segredo, fico louca para contá-lo a todos; na alma de nós outras, um pensamento que se não deve revelar não é um segredo, é um martírio.

— Então, o que é segredo?

— Para as moças?...

— Sim, minha senhora, o que é um segredo para as moças?

— É uma coisa que se diz baixinho aos ouvidos de quase todos.

— Pois, nesse caso, minha senhora, peço a V. Exa. que, se me julgar digno disso, diga-me o seu segredo, ainda que seja baixinho.

— Oh! este pode-se contar em voz alta.

— Se portanto me supõe digno...

— Sem dúvida que o julgo; até V. Sa. nos há de servir de muito.

— Estou à espera, minha senhora.

— Trata-se de um romance...

— De um romance?!

— Sim, de um romance, que d. Celina e eu estamos compondo.

— Parabéns, minhas senhoras; mas eu não sei... V. Exas. querem porventura um terceiro colaborador?...

— Qual?...

— Eu. V. Exa. tinha falado em mim.

— Deus nos livre! perderíamos a glória de autoras.

— Por quê?

— Os senhores homens custam muito a julgar-nos capazes de escrever; e portanto era V. Sa. quem ganharia todas as honras da obra.

— Mas esse romance..

— É uma história de todos os dias e de todos os salões.

— Já está completa?

— A invenção completamos hoje; mas a execução nos está dando muito que fazer.

— O que falta?

— Quase tudo; atrapalha-nos grandemente uma das principais personagens.

— Por quê?

— Pela dificuldade de descrevê-la; mas V. Sa. chegou muito a tempo.

— E então?

— Então, é que enquanto nós conversamos, d. Celina vai tomando nota.

— Nesse caso eu...

— V. Sa. ou outro qualquer... V. Sa. é como quase todos...

— Obrigado, minha senhora.

— Cortou-me a palavra; não tem que agradecer-me, pois não sabe o que eu ia dizer.

— Adivinhei.

— Dou-lhe parabéns: veja se adivinha também o nosso romance.

— Não chego a tanto, minha senhora.

— Quer que lhe tracemos o esqueleto da nossa obra?...

— Terei muito prazer em ouvir a V. Exa.

— Não poderá fazer uma justa idéia do que será, pela falta dos episódios e dos diálogos.

— Oh! mas eu compreendo o que poderá fazer uma pena manejada por quem deve à natureza tanto espírito como V. Exa.

— Agradecida.

— Creia V. Exa. que faz um relevante serviço à tão atrasada literatura do país.

— Muito agradecida, respondeu Mariquinhas rindo-se, e sem dar mostras de doer-se da ironia com que Salustiano tentava feri-la.

— Era uma necessidade que desde muito palpitava, tornou Salustiano; o céu devia ao Brasil uma Stael, uma George Sand.

— Mil vezes agradecida; mas então V. Sa. não quer ouvir o nosso romance?

— Estou pronto, minha senhora.

— Trata-se de amor.

— Eu o previa.

— É uma jovem senhora de cabelos castanhos quase pretos, olhos de safira, lábios de coral, rosto pálido, enfim, uma jovem senhora bela e muito parecida com d. Celina.

— D. Mariquinhas, basta!... isso é quase demais! disse a "Bela Órfã".

— Quem fez a pintura da moça fui eu, e portanto posso falar. A respeito do protagonista falará então você.

— Continue, minha senhora.

— Pois bem: essa moça, a quem eu ainda não dei nome, ama um jovem modesto e bonito, e é por ele apaixonadamente amada; mas o jovem é pobre e acredita que sua pobreza é um muro de bronze erguido entre ele e a bela de seus pensamentos.

Salustiano empalideceu sem querer, ouvindo as últimas palavras de Mariquinhas. Começava a compreender o que queria dizer aquele romance.

— Acha-se incomodado?... perguntou Mariquinhas encarando Salustiano.

— Oh! não! pelo contrário,..

— Cheguei a pensá-lo, sr. Salustiano, porque V. Sa. mu­dou de cor.

O mancebo serenou, e respondeu sorrindo:

— Ah! foi efeito da interessante narração de V. Exa. Sensibilizei-me... realmente o seu romance é muito sentimental... toca no coração.

— Sim.. sim, tornou a moça; eu creio bem que ele tocará o coração de V. Sa.

— Mas, concluiu-se?...

— Certamente que não; ficaria sem sentido, sem pés nem cabeça.

— Era mesmo assim excelente... estava na moda; porém já que o romance não termina aí, quererá V. Exa. ter a bondade de contar-me o resto?

— Pois não! com sumo prazer; temos, como eu dizia, uma moça bela e um jovem pobre que se amam muito... romanescamente; até aí não há senão um idílio; imaginamos pois, imaginamos não, foi d. Celina quem imaginou uma espécie de tirano de comédia, um outro namorado da heroína, um mancebo rico, honrado, e vaidoso de sua fortuna, que se vem erguer como uma barreira terrível entre os dois amantes.

Celina apertava a mão de Mariquinhas de instante a instante; mas não se atrevia a dizer palavra.

— E depois?... perguntou Salustiano.

— Depois as cenas se sucedem... deverão haver lutas domésticas, esperanças que morrem e revivem... jogo de afetos... e finalmente..

— Finalmente...

— Boa pergunta! por fim de contas triunfa o amor inocente e puro... triunfa a inspiração de Deus... o moço pobre alcança a mão da moça bela.

— E o outro?

— O outro!... exclamou Mariquinhas dando uma risada; o outro deve muito provavelmente ficar com cara de tolo.

Salustiano mordeu os beiços. Mariquinhas prosseguiu:

— Mas veja... estávamos em uma verdadeira dificuldade!

— Qual?...

— Não sabíamos como descrever o tal sujeito rico, ousado e vaidoso...

— Ora! que modéstia a de V. Exa!... com tanta imagina, espírito tão atilado...

— Sim... sim... porém nós queremos seguir à risca a natureza... procurávamos pois um original, quando V. Sa. chegou.

— O último golpe acabava de ser dado tão diretamente que Salustiano corou até a raiz dos cabelos.

— Compreendo tudo, minhas senhoras!...

— Ora... pois o que compreendeu?

Salustiano pensou alguns momentos, e depois respondeu:

— Que devo também escrever um romance.

— Ah! disse Mariquinhas, então isto é contagioso?!

— Creio que sim, minha senhora.

— Tanto melhor, tornou a moça rindo-se; creia V. Sa. que faz um relevante serviço à tão atrasada literatura do país.

— Agradecido.

— Eu estou pensando já no muito que poderá fazer uma pena manejada por quem deve à natureza tanto espírito como V. Sa.

— Muito agradecido.

— Era uma necessidade que desde muito palpitava; o céu devia ao Brasil um Cooper, um Walter Scott, um Dumas.

— Mil vezes agradecido.

— Quando começa a escrever?...

— Ora... já está metade escrito.

— Já!.. e então!...

— É o mesmo de V. Exas.

— O mesmo?... não... não... seria um triste roubo feito a duas pobrezinhas.

— Mas o meu romance, que se parece muito com o de V. Exas. até o meio, difere completamente no fim.

— Como?

— No meu romance triunfa o moço rico, o ousado e vaidoso...

Celina ergueu a cabeça nobremente, e fitou os olhos em Salustiano.

— Crê então, que isso chegue a ser verossímil?... perguntou Mariquinhas.

— Não será somente verossímil, tornou Salustiano elevando a voz com incrível audácia, ha de ser também uma rea­lidade.

— Bravo!... exclamou Mariquinhas; isto me está parecendo um desafio.

— Pois seja um desafio; veremos qual dos dois romances se realiza.

— Aceito, disse, levantando-se, a "Bela Órfã".

O rosto de Celina estava aceso de rubor e de cólera: em pé, ela encarava Salustiano com olhos cheios de fogo.

— Minha senhora... ia murmurando o moço.

— Eu lhe disse que aceito o desafio, senhor!... exclamou Celina. Não é bem claro isto?

Reinou então silêncio por alguns instantes, até que Salustiano despediu-se com seu sorrir sarcástico nos lábios, e saiu com o desespero e a raiva no coração.

— Bem bom! bem bom! disse Mariquinhas batendo palmas com uma alegria infantil.

— Fizeste mal, d. Mariquinhas.

— Pois sim... concedo, fiz mal; porém tu, d. Celina, fizeste muito bem.

— E agora?... quem sabe o que me espera?...

— Que nos importa o futuro? o futuro é de Deus.

— Mas eu preciso que me animem; eu sou fraca e sou só.

— Vem portanto animar-te... subamos ao segundo andar.

— Para quê?...

— Vamos ler de novo a história do teu amor.

— Oh!... sim!... tu és louca como eu, d. Mariquinhas; mas o que acabas de dizer deve ser verdade.

— Vamos pois...

— Vamos.

As moças subiram a escada correndo, como duas crianças travessas; entraram no quarto de Celina... abriu-se a gaveta onde deveria estar a história do amor da "Bela Órfã"...

— Os meus papéis!... exclamou esta.

— Que há então?... perguntou Mariquinhas.

— Eu os tinha posto aqui.

— É certo..

— Oh!... furtaram-mos!...

— Meu Deus!...

— Os meus papéis!... a minha história!... exclamou dolorosamente a "Bela Órfã".

— Como pode ser isto?...

— Onde estarão eles?...

— Quem entraria aqui?... perguntou Mariquinhas.

— Eu não sei... eu não podia ver!... o que eu sei, o que eu vejo é que estou perdida. Oh! isto foi uma desgraça!...

— Quem sabe?... disse Mariquinhas com ar pensativo; também pode ser que seja uma felicidade.