Logo que Rodrigues saiu, João entrou para o quarto deste, cerrou a porta e esperou a volta de seu irmão, meditando sobre os meios de realizar um projeto que desde muitos dias, e então mais que nunca, o ocupava.
Chegou Rodrigues, e adivinhando onde se recolhera o irmão, abriu a porta e entrou.
O velho guarda-portão estava triste e abatido.
— Então?... perguntou João.
— Nada.
— Não te havia eu prevenido de que serão inúteis todos os teus esforços?
— Paciência, mas fiz o que devia.
— E agora ainda quererás suspender-me?
— Não; convém que aquele moço seja abatido.
— Bem: tomo isso à minha conta.
Ficaram os dois velhos pensando durante algum tempo, e depois João perguntou:
— E a respeito do outro, que novidades há?
— Ontem à noite fez ele vinte e um anos.
— Eu o sei.
— À meia-noite bateu à porta do "Purgatório-trigueiro" uma mulher de mantilha, que o foi procurar.
— E essa mulher...
— Era Mariana.
— O que queria dele?
— Não sei bem, mas parece que conseguiu muito, porque ao romper do dia de hoje cheguei ao "Purgatório-trigueiro" muito a tempo...
— A tempo de quê?
— De desmanchar um projeto de viagem a mais extravagante do mundo. Cândido ia partir.
— Para onde?
— Ele mesmo não sabia dizer.
— Rodrigues, aquela mulher é o diabo em pessoa.
— É muito desgraçada, João.
— Por culpa dela: tu foste sempre mais piedoso do que eu.
— Não, tu és que te finges mau.
— Está bem; e então não conseguiste saber o motivo dessa viagem?
— O nosso pequeno teimou em ocultá-lo.
— Mas por fim, cedeu e ficou.
— Sim; porém custou-me muito. Foi-me preciso tocar-lhe na corda mais sonora de seu coração.
— Ah! já sei, falaste-lhe em sua mãe.
— É verdade.
— Pobre rapaz!... e como vai ele de amores?
— Olha, João, eu não o entendo. Até ontem à meia-noite era todo ardor, paixão e esperança.
— E hoje?
— Não quer ouvir o nome da "Bela Órfã".
— E esta!...
— A mulher da mantilha dobrou muito à sua vontade aquele coração.
— Quando eu digo que ela é o diabo!
— Infeliz! treme diante do mundo. Salustiano é um espectro que a assombra; obedece-lhe como a um senhor.
— Cedo eu a livrarei desse fantasma.
— Como?
João ficou olhando por algum tempo para Rodrigues, e depois disse:
— Está bem... era um segredo que eu queria guardar para mim só, mas vou dizer-to.
Rodrigues escutou curioso.
— Tens um belo vizinho ali defronte, disse João.
— Sim, é o celebre Jacó... aquele nosso escrivão do processo.
— Pois sabe que é muito meu amigo.
— Teu amigo?... e tu apertas a mão de semelhante homem?
— Aperto.
— João!
— Nada de repreensões. Escuta: observei que o tal Jacó ia de vez em quando ter com Salustiano; ficavam a sós por algum tempo, e depois o escrivão retirava-se muito alegrezinho, e o outro ficava por algumas horas de mau humor.
— E a razão?
— Um dia consegui ficar em posição de ouvi-los, e apanhei-lhes o segredo. O escrivão é duas vezes infame.
— Como?... explica-te.
— Infame, porque recebeu dinheiro para queimar um processo, e por isso perdeu o ofício, e infame outra vez, porque o processo não está queimado.
— E então?...
— Ele o guarda.
— Oh! mas isso é o diabo.
— Pelo contrário, eu julgo que é excelente. Já te disse que tenho estreita amizade com Jacó.
— E que pretendes fazer?
— Ir morar com ele.
— E esperas conseguir isso?
— Com dinheiro tudo se consegue daquele homem. Vou alugar-lhe um quarto em sua própria casa.
— E depois?
— Depois os papéis estão lá, e hão de ser meus, custe o que custar.
— Falar-lhe-ás nisso?
— Deus me defenda. Salustiano deve tê-los pago bem, para que ele mos quisesse ceder!
— Olha, João, se te vás meter nalguma...
— Deixa o caso por minha conta; mas que é isto?...
Ouviu-se uma voz terna e melancólica, que começava a cantar o romance do "Sonho da Virgem".
"Era um dia um mancebo, que ardente,
"Pobre vida esquecido vivia;
"E uma virgem...
O velho Rodrigues sorriu.
— De que te ris?... perguntou João.
— É que este canto me está chamando. A "Bela Órfã" tem que me confiar.
— Pois vai, adeus!
— Não, espera; pode ser que convenha que saibas o que ela tem para me dizer.
João ficou outra vez só no quarto de Rodrigues.
Uma hora depois voltou o velho guarda-portão.
— Que novidades há? perguntou João.
— O caso vai-se complicando.
— Então, que temos?
— A tal mulherzinha de mantilha obteve do nosso pequeno uma carta para Celina.
— Bravo! provavelmente o rapaz desmanchou-se todo em juramentos de amor.
— Ao contrário, declara a nossa "Bela Órfã" que a não ama, e que não quer iludi-la por mais tempo.
— E esta!... que dizes a isto?
— Fiquei com a cara à banda, João!
— Que disseste à pobre menina?
— Que desconfiasse e que esperasse.
— Realmente foi boa resposta.
— Agora vamos sair, João.
— Para onde?
Tu para casa de Jacó, e eu para o "Purgatório-trigueiro".
— Vamos.
Os dois velhos separaram-se à porta do alpendre. João entrou na casa de Jacó, e Rodrigues foi conversar com a velha Irias.