A casa em que morava Salustiano, e que ele havia herdado de seu pai, rico e honrado negociante, estava situada em uma das mais freqüentadas e comerciais ruas da cidade do Rio de Janeiro.
Importa tão pouco saber o nome dessa rua como descrever essa casa. É de sobra dizer que ela era de dois andares, e que no segundo andar tinha Salustiano estabelecido o seu gabinete particular, com o qual se comunicava o quarto em que dormia.
No dia que seguiu a noite amarga em que Mariana tanto tempo se deixara ficar ajoelhada aos pés de Cândido, estava Salustiano em seu gabinete ocupado em examinar diversos papéis e livros mercantis, trabalho em que o ajudava um velho alto, de rosto vermelho e de cabeça calva.
Esse velho chamava-se João, e era o agente principal da casa de Salustiano.
João era um homem de poucas palavras, de olhar atrevido, de gênio de fogo, de coração bom, e de têmpera de ferro.
Pela volta das onze horas apareceu um caixeiro à porta do gabinete, e disse:
— Está aí o sr. Jacó.
— Que entre para aqui, respondeu Salustiano.
O caixeiro retirou-se,
— Sr. João, continuou Salustiano, suspendamos este trabalho. Tenho que falar a sós com o homem que acaba de ser anunciado. Desça ao primeiro andar e logo que se retirar aquele que nos veio interromper, suba de novo para continuarmos a trabalhar.
O velho, sem dizer palavra, limpou a pena com que estava tomando notas, prendeu-a atrás da orelha, e saiu.
Quando ia descendo a escada, vinha subindo o homem que se anunciara.
O caixeiro que acompanhava o homem reparou que, contra todos os seus hábitos, o velho João tratou aquele sujeito com familiaridade e vivas demonstrações de estima.
Os dois apertaram fortemente as mãos, disseram finezas e mostraram-se mutuamente amigos.
Era um fato admirável na vida de João.
Finalmente o recém-chegado foi introduzido no gabinete de Salustiano, e o caixeiro deixou os dois a sós.
O homem sentou-se na cadeira em que antes estivera sentado João.
Era ele baixo, um pouco gordo, e um pouco calvo; tinha olhos vivos, e mostrava-se alegre. Vinha vestido de fraque roxo abotoado até em cima, e de calças pretas. Calçava botinas de cordovão de lustro, e chamava-se Jacó.
Já não pode haver dúvida nenhuma; era o escrivão que morava na rua de... exatamente defronte do "Céu cor-de-rosa".
Travou-se entre Jacó e Salustiano a seguinte conversação:
— Muito bem, senhor Jacó: o senhor é sempre pontual.
— É um hábito da vida passada; quando eu era escrivão, chegava à casa dos juízes sempre dez minutos antes da hora das audiências.
— Não é esse o seu único mérito: o senhor é capaz de descobrir o maior segredo deste mundo.
— A vida passada! a vida passada! o tino, a prática dos interrogatórios...
— Vamos pois; que notícias me dá?
— Poucas, porém boas.
— A elas, meu caro.
— Ontem, depois das onze horas da noite, a lua estava clara como o dia...
— Dispenso todos os segredos que o senhor possa ter descoberto na lua.
— Hábitos da vida passada! nos corpos de delito o luar é uma circunstância que sempre se faz notar... as vezes importa muito.
— Adiante.
— Bem: pouco depois das onze horas da noite saiu do alpendre do "Céu cor-de-rosa" um vulto de mulher...
— Oh!
— Envolvia-se em uma mantilha: era com efeito uma mulher.
— Está bem certo disso?
— Sim; o andar era majestoso e engraçado... aquela mulher nunca tinha usado mantilha.
— Por quê?
— Porque envolvia-se nela como em um xale. Mas o andar, que era majestoso e engraçado, era ao mesmo tempo tão delicado, as passadas tão curtas e ligeiras, que não podia deixar de ser o andar de uma mulher.
— Bem; e depois?
— Foi direitinha à porta do "Purgatório-trigueiro".
— Ah!
— Tirou debaixo da mantilha e estendeu para fora um lindo braço, e com formosa mão...
— Então viu também que o braço era lindo, e a mão formosa?
— Sem dúvida; porque em um dos dedos dessa bela mão havia um anel de brilhantes.
— Oh! que homem admirável; até nisso reparou! como pôde ver esse anel?
— Brilhou, como só brilha uma pedra de alto preço.
— Está bom... deixemos o anel.
— Ao contrário: o anel é uma circunstância muito importante. Ele só, vale uma prova no libelo acusatório.
— Por quê?
— Porque a viuvinha recebeu há três dias da mão de seu noivo um anel de brilhantes, e não o tirou mais do dedo.
— Como soube disso?
— Uma escrava da viuvinha o contou lá à senhora.
— Por conseqüência?
— Por conseqüência recaem todas as suspeitas sobre a viúva.
— E que mais?
— A mulher de mantilha bateu à porta do "Purgatório-trigueiro", abriram-lha, ela entrou, e esteve lá mais de uma hora.
— E depois?
— Voltou para o "Céu cor-de-rosa".
— Não sabe mais nada?
— Sei que a tal senhora tirou a mantilha dentro do "Purgatório-trigueiro".
— Isso importa pouco; mas como o soube?...
— Porque, quando ela foi para lá, a mantilha arrastava pelo lado esquerdo, e quando voltou, estava muito mais curta desse lado, e ia varrendo a rua pelo outro.
— Sabe só isso?
— Não: sei ainda mais alguma coisa.
— Vá dizendo.
— O velho coruja vai todos os dias conversar com a velha bruxa.
— Ontem?
— Esteve lá ao anoitecer.
— Hoje?
— Para lá foi ao romper do dia.
— De que tratou?
— Sempre do amor do enjeitado e da órfã.
— De que trataram hoje? o que disseram?
— Não pude saber: o diabo da velha, quando o coruja entrou, mandou a negra fazer as compras para o almoço.
— Tem ainda alguma coisa a esse respeito para dizer?
— Por hoje mais nada.
— Então pode voltar depois de amanhã às mesmas horas.
— Serei pronto. Nunca me esqueço o quanto convém ter em lembrança os dias de aparecer nos casos de apelação.
— Estamos justos.
As últimas palavras de Salustiano significavam uma despedida; mas Jacó ficou firme em sua cadeira com o semblante prazenteiro, e os olhinhos vivos como sempre.
Salustiano pareceu incomodar-se com a demora de Jacó, e disse:
— Quer mais alguma coisa?
— É provável.
— Diga.
— Quero que me dê cem mil-réis.
— Oh! há três dias que lhe dei igual quantia.
— Sim, respondeu o ex-escrivão soltando uma risada; mas V. Sa. esquece-se de que agora temos dois negócios.
— Dois? como é isso?
— Pois então?... agora tem V. Sa. de pagar-me o trabalho de ser o espião de polícia e dos seus amores.
— Convenho.
— E depois... aqueles papéis...
— Oh! o senhor é exigente demais! por aqueles papéis, disse Salustiano empalidecendo, deu-lhe meu defunto pai por uma só vez quatro contos de réis.
— Sim... sim... mas por causa daqueles papéis estive na cadeia oito meses e perdi o meu querido ofício.
— E faltou à sua palavra!
— Como é isso?...
— O senhor havia recebido quatro contos de réis para queimar o processo.
— Assim era eu tolo! aqueles papéis são verdadeiras letras de dinheiro, que eu tenho a juros.
— E nem ao menos se lembra de que já não poucas vezes o tenho liberalmente socorrido?
— Sim; mas V. Sa. tem obrigação restrita de pagar-me perdas e danos.
— Em uma palavra e para acabar de todo com estas questões, o senhor quanto quer receber de uma vez por esse processo?...
— Cedendo-lhe todo o direito que tenho a ele?
— Por certo.
— Chama-se a isso queimar a minha fortuna, disse sossegadamente o ex-escrivão.
— Enfim...
— Enfim... dar-lhe-ei esses papéis com a mão direita, exatamente no momento em que V. Sa. me depositar na esquerda uma quantia igual à que me deu o senhor seu pai.
— Quatro contos de réis! é muito!
— Então não temos nada feito. Conservarei o processo.
— Oh! mas é preciso acabar com isto; quando volta o senhor aqui?
— Já disse que dou grande importância aos dias de aparecer: depois de amanhã virei receber as suas ordens.
— Traga-me o processo.
— Dar-me-á os quatro contos? Sim.
— Palavra de honra?
— Sim.
— Bem. Às ordens de V. Sa.
— Até depois de amanhã.
— Mas ah! disse Jacó suspendendo-se, pois que já ia saindo, falta ainda alguma coisa.
— O quê? perguntou Salustiano.
— Os cem mil-réis.
— Ainda!
— São juros vencidos; a satisfação do principal é conta à parte.
— Depois de amanhã...
— Perdoe-me V. Sa., mas eu preciso hoje dessa quantia.
Salustiano arremessou-se para dentro do seu quarto; Jacó estendeu o pescoço, e viu o mancebo abrir uma carteira de jacarandá já meio usada, e tirar dela alguns bilhetes.
Salustiano, na agitação em que estava, deixou a chave na carteira, e voltou ao gabinete com o dinheiro.
— Eis aqui os cem mil-réis, disse ele entregando os bilhetes a Jacó.
O ex-escrivão, apenas recebeu o dinheiro, tomou o chapéu, fez uma profunda cortesia ao moço, e foi saindo.
Salustiano o seguiu de perto, e desceu com ele as escadas.
Pouco depois de haverem os dois deixado o gabinete, entrou João.
O velho ia sentar-se na cadeira que pouco antes havia ocupado, quando notou que a porta do quarto de Salustiano estava aberta.
Dirigiu-se imediatamente para o quarto, e apenas chegou ao limiar da porta, soltou uma exclamação:
— Enfim!
E lançou-se para a carteira. Abriu-a, apertou com o dedo polegar uma mola que havia do lado esquerdo, e no fundo da gaveta desse lado abriu-se um escaninho.
Com prontidão e destreza tirou o velho alguns papéis, que aí se achavam. Eram pela maior parte cartas.
João as foi examinando, e passando por elas sem abrir, até que parou em uma que não tinha sobrescrito.
— 12ª! exclamou o velho; enfim!
Abriu a carta e leu:
"Senhor, maldita seja a hora em que nos vimos. Esse amor fatal com que eu vos amava, e que fingistes votar-me para que eu me perdesse, se já desapareceu para nós, a nós deve ter deixado o tormento dos remorsos. Vós me fizestes a mais desgraçada, e eu me fiz a mais criminosa das mulheres. Vós me perdestes, e eu ia ser mãe, e não quisestes ser diante dos homens o pai de vosso filho. Pois bem, sabeis o que eu fiz? tremei... horrorizai-vos: eu matei meu filho; dentro de meu ventre cavei-lhe a sepultura. Agora... preparemo-nos. Teremos de dar contas a Deus, vós da honra, da inocência de uma mulher, e eu da vida de um inocente. Senhor... somos dignos um do outro; nasceram para se encontrar no mundo vós e
Mariana."
— Enfim, repetiu o velho guardando a carta no bolso.
— Enfim!... bradou Salustiano lançando-se sobre João.
O velho recuou dois passos.
— Que veio fazer aqui? perguntou o moço.
— Vim realizar o que desde muito premeditava, respondeu friamente o velho.
— Que tirou daquela carteira?
— O que não lhe pertencia.
— Uma carta!
— Sim.
— Restitua-ma.
— Não.
— Oh! Sr. João!...
— Não, já disse.
— É porque não sabe que essa carta é tudo para mim.
— É por essa mesma razão.
— Por bem ou por mal, senhor, eu hei de reconquistar essa carta.
— Veremos.
— O senhor abusa do respeito que sempre lhe consagrei.
— E o senhor desonra o nome de seu pai.
— A carta!
— Nunca.
Salustiano atirou-se sobre o velho; os braços de ambos se entrelaçaram; e lutaram.
Longa foi a luta, e por fim triunfou o mancebo.
Com um joelho sobre o peito de João, Salustiano bradou-lhe:
— A carta!
— Nunca! respondeu o velho com voz sufocada.
O moço, apesar de todos os esforços de João, lançou a mão no bolso deste, e apoderou-se da carta.
Deixou então livre o seu adversário, e erguendo-se estendeu o braço, e mostrou-lhe com o dedo trêmulo a porta:
— Para sempre fora de minha casa! disse em desordem, e a raiva no coração. O velho respondeu:
— Sim; mas não para sempre; porque hei de voltar para vingar-me.
E saiu.