XXII



A impaciencia de D. Luiz tocára o extremo. Em vão procurava apparentar resignação e conformidade á sua nova vida nos Bacellos. Os laços que o prendiam ás velhas paredes da Casa Mourisca eram mais fortes do que julgára, ao separar-se d'ellas. Estava-o sentindo pelo mal-estar que experimentava agora.

Todos os objectos da antiga residencia, que tão precipitadamente abandonára, pareciam occupar um logar no seu coração; e o vasio em que o deixaram era terrivel para uma velhice já sem esperanças.

A corrente d'aquella vida, ainda que turvada pelas paixões, seguia desde muitos annos regular e silenciosa pelo alveo e margens invariaveis. De repente, porém, como succede ás aguas de subito constrangidas a mudar de leito, perdeu a serenidade melancolica, a calmante monotonia, tão salutar a um espirito atribulado; e atravez de novas perspectivas e de novas scenas precipitava-se inquieta e turva.

Recrudesceram violentamente as torturas d'aquella alma exagitada, como despertam as dôres d'um membro enfermo ao arrancar-se da quietação e repouso em que adormeceram.

Em certa idade as diversões não distrahem, affligem. Vive-se do passado, e para que o pensamento o retracte, é mister que o remanso lhe dê a limpidez do lago tranquillo.

Só o orgulho e o pundonor de fidalgo é que impediam D. Luiz de voltar de novo aos lares abandonados.

Esta disposição de espirito era insustentavel.

Uma manhã viram-n'o, mais nervoso de que nunca, medir a passos largos o comprimento da maior sala do solar dos Bacellos, parando ás vezes junto das janellas a olhar abstracto, atravez dos caixilhos das vidraças, para as franças das arvores mais distantes que d'alli se descobriam, entre as quaes avultavam as do parque da Casa Mourisca. De subito interrompeu uma d'estas mudas contemplações, manifestando que lhe apparelhassem o cavallo para de tarde.

O procurador, a quem fôra dada a ordem, perguntou timidamente se s. exc.ª sahia a cavallo.

Com o sêco laconismo de que, havia certo tempo, usava nas respostas ao padre, o fidalgo limitou-se a dizer:

— Parece que sim.

O padre tocou a campainha a chamar por um criado, a quem transmittiu a ordem recebida, acrescentando a de que fosse avisado o escudeiro para acompanhar s. exc.ª.

D. Luiz acudiu com vivacidade:

— Quem lhe disse isso? Eu não preciso de acompanhamento. Que me tenham apparelhado o cavallo para de tarde.

— Então v. exc.ª sahe só?! — perguntou o padre, em quem esta quebra de pragmatica causava grande confusão.

— Vou — respondeu D. Luiz, continuando o seu passeio na sala.

O padre sahiu d'alli estupefacto para a cozinha, onde foi assistir á ultima demão de uma empada, e n'esse exame conseguiu felizmente desvanecer a violencia da impressão, que a ordem do fidalgo lhe havia produzido.

Effectivamente, pouco depois do jantar, ao qual Mauricio não assistira, D. Luiz montou a cavallo, e cortejando garbosamente a baroneza, que veio despedir-se d'elle á janella, partiu a meio trote pelos caminhos dos campos.

Era um ultimo lampejo da sua elegancia passada.

Na maneira por que dirigia o eavallo não se notava, porém, a indecisão propria de quem vae ao acaso. Percebia-se que o fidalgo havia marcado destino áquelle passeio.

Tomou por atalhos de montes, evitando o centro da povoação rural, rodeou quasi toda a freguezia, e, seguindo pelas raias das contiguas e por desvios ermos de casas e de cultura, por chapadas maninhas e pinhaes, onde apenas se entrevia a choça do guardador, foi dar ao extremo opposto da aldeia, nas proximidades da Casa Mourisca.

E quanto mais perto se achava do abandonado solar, mais crescia o cuidado que o cavalleiro parecia ter em não ser observado e em dirigir por veredas pouco frequentadas a sua cautelosa carreira.

Entrou por fim em uma bouça pertencente á casa, collocada, porém, fóra dos muros da quinta e separada d'elles por uma especie de valia, que servia de caminho publico.

D'alli avistavam-se as arvores, os telhados, as torres, e as mais elevadas janellas da Casa Mourisca.

D. Luiz fez parar o eavallo e fixou melancolicamente os olhos no velho solar onde nascêra e onde apprehendia não poder morrer, como haviam morrido os seus avós.

Ia adiantada a tarde, e á luz desmaiada do sol, que declinava, crescia a tristeza do velho. Os olhos tinham um fulgor que denunciava lagrimas.

Era solemnemente triste aquelle quadro. A nobre figura do ancião, assim immovel, extatico, no ermo alpestre de um pinhal, a que os ventos da tarde arrancavam um gemer monotono e triste, com os olhos fitos nas ameias do seu palacio acastellado, d'onde as paixões o expulsaram, com o rosto illuminado pelos tremulos raios do sol, que desenhava distinctamente o rendilhado da rama dos carvalhos longinquos, atraz dos quaes se escondia, era uma personificação vigorosa do desalento e da saudade sob o colorido de desesperança que a velhice lhe dava.

A immobilidade do cavalleiro contrastava com a impaciencia do fogoso animal, que escarvava insoffrido o solo, sem que podésse satisfazer a ancia do movimento que o devorava. De subito o cavalleiro fez um movimento, como de quem adopta uma resolução, a que por muito tempo repugnára.

Pôz-se de novo a caminho, seguindo sempre a direcção do muro da quinta, e sem abandonar o pinhal.

Pouco adiante encontrou as ruinas de uma antiga casa de guarda, já quasi destelhada, e em cujo recinto cresciam á vontade as giestas e as tojeiras, por entre os montões de telha e de caliça cahida, e onde encontravam tranquillo abrigo reptís de toda a especie.

D. Luiz levou para alli o cavallo, que prendeu ao varão oxydado e torcido de um caixilho de janella, e sahiu outra vez, continuando a rodear a quinta.

Havia um logar onde o muro era parte derrubado e facilitava extremamente o ingresso. Sabiam-n'o bem uns certos rondadores noctivagos, que tantas vezes por alli effectuavam as suas explorações depredatorias no mal vigiado terreno da Casa Mourisca.

Foi por o mesmo caminho d'esses visitadores suspeitos, que o proprietario d'aquelle nobre solar ahi entrou furtivamente, e córando do passo a que a violencia de uma entranhada saudade o impellia.

Dentro em pouco achava-se na quinta.

Caminhou inteiramente agitado pelas ruas solitarias, atravessou as devezas, onde áquella hora não penetrava um só raio de sol, e sem vacillar seguiu na direcção da casa. Ao chegar ao pateo, viu aberta uma pequena porta por onde habitualmente se fazia o serviço do palacio.

Occorreu-lhe-só então que poderia estar alguem lá dentro, áquella hora.

Se se encontrasse alli com Thomé, como conseguiria arrostar com a vergonha de ser por elle descoberto n'aquella visita furtiva? Ia a recuar, mas o impulso interior a obrigal-o a progredir era mais forte. Venceu. Aproximou-se cautelosamente da porta e ficou-se a escutar por alguns instantes. No interior havia o mais completo silencio. Não se divisavam vestigios que denunciassem presença de alguem estranho. D. Luiz deu a medo alguns passos no limiar, subiu os primeiros degraus da escada, hesitando e escutando a cada passo que dava e a cada degrau que subia.

Sempre o mesmo silencio.

Pensou então o fidalgo que bem poderia ser que na precipitação da sahida tivesse ficado aberta aquella porta; e animado por esta hypothese adiantou-se mais resoluto.

Havia nas largas escadas uma luz froixa e quasi mysteriosa; esta luz e aquelle silencio eram dos que infundem no animo um sentimento quasi de pavor.

N'esses corredores e escadas vazias e obscuras, elle, o senhor e proprietario do solar, movendo-se, com o receio de ser descoberto! Que situação a sua! Que humilhadora situação para o seu orgulho!

As correntes de ar sibillavam melancolicamente ao enfiarem-se pelas fechaduras das portas e frestas, que deitavam para a escadaria; os passos do fidalgo tinham sob aquellas abobadas uma resonancia estranha.

Eram sem numero os objectos que lhe recordavam os amargos momentos da sua alvoroçada sahida da Casa Mourisca; caixões vazios, sacos, bocêtas, papeis de empacotar, tudo jazia ainda em confusão nos corredores, como, na pressa dos preparativos, frei Januario os deixara. Signaes eram estes que parecia indicarem que desde aquelle dia ainda ninguem entrára na Casa Mourisca.

Mais seguro já na persuasão de que não seria surprendido n'esta clandestina visita, D. Luiz subiu sem o menor receio as escadas que levavam ao Sancta Sanctorum das suas affeições, á torre onde haviam sido os aposentos de Beatriz, aonde ella tinha vivido e expirado. Era esta a peregrinação que emprehendêra aquelle desconfortado velho; para alli era que as suas intensas saudades o chamavam. Tinha já subido mais de meio lanço da escadaria, quando subitamente estremeceu, parando a escutar um mal distincto som que lhe chegára aos ouvidos. Correu-lhe no rosto uma pallidez mortal e a fronte principiou a cobrir-se-lhe de um suor, como de agonia.

A turbação que sentia, foi tão intensa, que teve de apoiar-se á parede para não cahir.

Eram os sons longinquos de um instrumento de musica, que partiam do logar para onde elle se dirigia. Vagos, confusos ainda, mas melodiosos como de harpa que, pendurada dos ramos dos carvalhos, vibra ao perpassar das brizas da tarde.

Na triste solidão d'aquella casa abandonada, á hora mysteriosa do escurecer do dia, aquelles sons resoando pelos longos corredores e pela vastidão das salas desertas, tinham de facto não sei quê de sobrenatural; dir-se-ia musica de fadas em um d'esses paços encantados, que ergue no meio das florestas a imaginação popular.

Mas não era sómente o inesperado e a estranheza do facto que feriam de espanto o senhor da Casa Mourisca. Aquelles sons exerciam sobre elle outra e superior influencia.

Conhecia-os; não eram vozes estranhas aos ouvidos do ancião ralado de saudades, e que se achava alli attrahido por ellas.

Conhecia-os; em outras épocas tinham já resoado entre aquellas tristes paredes e sob os altos tectos dos aposentos hoje deshabitados. N'esses tempos, havia alli dentro corações que pulsavam de sympathia ao escutal-os. Eram o signal de que o anjo da familia velava; de que a meiga criança, sobre cuja cabeça se condensavam todos os castos affectos d'aquella alma de homem, praticava com os anjos, seus irmãos, na mysteriosa linguagem da musica.

Aquelles sons... podia elle desconhecêl-os?... eram os da harpa de Beatriz.


Mas que mysterio revelavam elles agora? Que magia os faria renascer, quando, havia tanto, cahira gelada a mão que os desferia?

As sombras dos mortos teriam vindo povoar a casa abandonada pelos vivos? A alma querida de Beatriz viera por ventura chorar e lamentar-se da solidão em que os seus haviam deixado os logares que ainda conservavam tão vivas as memorias d'ella?

Quem póde analysar o confuso turbilhão de ideias que atravessou n'aquelle momento o espirito do fidalgo?

Piedosas crenças da infancia, superstições que a razão subjugara, chimericos productos d'um cerebro febril, tudo se levantou em enxame alvoroçado e revolto a obscurecer a intelligencia do ancião, que tremia sob um inexplicavel terror.

— É uma allucinação — pensava elle, esforçando-se por dominar aquella fraqueza — é uma quasi loucura produzida por esta ideia fixa, que nunca me abandona.

E continuava a subir com passos ainda mal seguros as escadas da torre.

Mas os sons, que elle julgava effeito dos sentidos allucinados, longe de se desvanecerem, cada vez se ouviam mais distinctos. Sem duvida alguma partiam dos aposentos de Beatriz.

Estava terrivelmente pallido o fidalgo. A vista vagueava-lhe com a mobilidade que produz o delirio. Ha situações na vida em que a razão mais segura vacilla e sente-se vergar sob a influição das mais supersticiosas crenças.

D. Luiz n'aquelle momento acreditava sinceramente na realidade das apparições.

A distancia permittia-lhe já distinguir a melodia que executava a harpa. Tambem lhe era conhecida; era a de uma canção predilecta de Beatriz, uma musica cheia de recordações para o pobre pae. O presente desapparecia n'aquelle momento; o passado resurgia com toda a luz, que desde muito se lhe apagára na carreira da vida. Chegára quasi á porta do quarto d'onde partiam os sons. Restava entrar... Mas o que o esperava alli? Talvez se desvanecesse o encanto e a vazia realidade o aguardasse para o punir!

A razão de D. Luiz não podia formar juízos sobre o que se estava passando. A mão tremula, que se estendeu para abrir a porta do quarto mysterioso, pendeu desfallecida, e o velho permanecia immovel no patamar, subjugado pela força d'aquelle encantamento.

N'este tempo juntára-se aos sons da harpa a voz de uma mulher; baixinho, quasi a medo, como a ave a ensaiar o canto ao renascer da estação, cantava a letra da mesma canção que Beatriz preferia. Era um timbre juvenil, sonoro, agradavel, o d'aquella voz, e na meia altura a que se elevava, havia um não sei quê de mystico e sobrenatural, que veio completar a allucinação do velho.

— Meu Deus! meu Deus! tende misericordia de mim! — murmurava elle, passando a mão na fronte pallida. — Se isto é um sonho, deixae-me morrer a sonhal-o!

E vergaram-se-lhe os joelhos diante d'aquella porta mysteriosa, e, soluçando e rebentando-lhe emfim impetuosas as lagrimas dos olhos, cahiu dizendo em uma desvairada exclamação:

— Ó minha filha! minha filha! Se és tu que assim me arrebatas d'este mundo, tem compaixão de teu velho pae, e não partas sem que lhe appareças um instante que seja!

Calaram-se de subito os sons da harpa e da voz feminina. E, pouco depois, a porta abria-se e Bertha apparecia no limiar.

Ao vêr o fidalgo de joelhos, com a cabeça escondida entre as mãos e soluçando, a filha de Thomé da Povoa correu para elle commovida:

— O snr. D. Luiz! O meu padrinho! Ó perdão, perdão! — exclamava ella.

E o susto que a voz do velho lhe havia causado, ao interromper-lhe inesperadamente o canto, cedeu o passo á mais sentida afflicção.

Á voz de Bertha, D. Luiz ergueu a cabeça e fitou a afilhada com um olhar espantado e interrogador.

As lagrimas desciam-lhe ainda a duas e duas pelas faces emmagrecidas.

— Perdão, perdão, meu bom padrinho — proseguia Bertha, tentando erguêl-o — fiz mal, bem o vejo, bem o sinto agora... mas havia tanto tempo que eu desejava visitar estes sitios! mas não chore, snr. D. Luiz, por amor de Deus perdoe-me!

O fidalgo, quasi ainda alheio ao que se passava, deixou-se erguer e conduzir por Bertha para dentro do quarto, e sentou-se, sem consciencia dos seus actos, na cadeira junto da harpa, cujas ultimas notas parecia ainda vibrarem no espaço.

A commoção violenta quebrára-lhe as forças.

Os braços e a fronte pendiam-lhe em um desfallecimento profundo.

Bertha ajoelhou-se-lhe aos pés, tomando-me as mãos, beijando-as, e cobrindo-as de lagrimas.

— Se eu imaginasse que podia causar-lhe esta pena, não teria vindo. Foi uma loucura minha; agora é que vejo; mas trazia isto na ideia havia tantos dias!... Só hoje me atrevi a subir aqui... Se soubesse como chorei ao tornar a vêr este quarto e estes objectos, que todos conhecia. Todos! Oh não se afflija, snr. D. Luiz, e perdoe-me, perdoe-me por quem é, perdoe-me por amor d'ella. Fiz mal, bem conheço, mas, como tambem lhe queria muito... Depois, assim que vi esta harpa... Ó meu Deus, que saudades! Como me lembrei d'ella, da musica que tantas vezes lhe ouvi, da canção que ella preferia... Quiz avivar essas recordações e... Mal sabia eu o que estava fazendo! Como era cruel sem o suspeitar! Quem me ha de perdoar o mal que lhe fiz? Imagino o que soffreu, o que está soffrendo ainda... E ser eu quem lhe avivou essas feridas!... Não me queira mal por isso. Foi a saudade que me trouxe até aqui, a saudade d'aquelle anjo que eu conheci no mundo. Por amor d'elle lhe peço que me perdoe a dôr que lhe causei.

E a voz de Bertha tremia ao fallar assim. D. Luiz não a interrompêra, porque a agitação era ainda n'elle muito forte para o deixar fallar.

Poisando porém as mãos na cabeça de Bertha e afastando-lhe os cabellos da fronte com um gesto de paternal carinho, fitou-a com os olhos ainda ennevoados de lagrimas e disse-lhe, suspendendo-se a cada palavra, em lucta com a commoção que o suffocava:

— De que me pedes perdão, Bertha? D'estas lagrimas? Oh! deixa-as correr, que ha muito não chóro lagrimas que me dêem um allivio assim. Eu sou que te digo: Obrigado, Bertha, obrigado, que me fizeste entrever a felicidade que o céo me póde ainda dar; n'estes curtos instantes da minha illusão luziram-me uns lampejos de alegria celeste. Tu só podias resuscitar-me a filha e eu quasi a senti ao ouvir-te, ao escutar essa abençoada musica e a voz, que julguei que só me chegaria outra vez aos ouvidos, se um dia me fosse dado escutar a dos anjos no céo. Agradecido, Bertha. A este meu coração são mais conhecidas as dôres que o despedaçam e queimam, do que estas que o desafogam em lagrimas. Agradecido, filha.

E o severo fidalgo da Casa Mourisca, sensibilisado, sem o menor vestigio da sua habitual rigidez, aproximou dos labios a fronte de Bertha e beijou-a com a doce affabilidade de um pae.

Bertha beijava-lhe as mãos, chorando com elle.

Por muito tempo assim se entenderam mudos aquelle velho e aquella rapariga, trazidos alli por uma mesma saudade, consagrando lagrimas a uma mesma recordação. D. Luiz estava cada vez mais fascinado. Nem por a ideia lhe corria que fosse a filha de Thomé da Povoa, quem tinha na sua presença, e quem abençoára e beijara.

Era a companheira de Beatriz, a encarregada pela alma d'aquelle anjo de conservar no mundo a sua memoria, de avivar as sympathias que ella inspirára na alma dos que a choravam ainda, e que a choral-a morreriam.

As mãos de Bertha não tinham profanado a harpa de Beatriz, tocando-a; nem ultrajára a sua memoria a voz que cantava a ballada favorita da infeliz menina.

D. Luiz cedia á influencia d'aquelle brando caracter feminino, e adorava em Bertha a imagem da filha que perdêra.

Ambos se esqueciam do presente, fallando d'ella. D. Luiz mostrou a Bertha todos os objectos, que haviam pertencido á filha e que elle alli conservava ainda como reliquias sagradas.

A poucos olhos os revelaria assim, como fazia aos de Bertha. Mas a quem conservava tão bem a memoria de Beatriz não era sacrilegio o devassal-os.

— Ai, Bertha, Bertha, para que me quiz mostrar Deus aquella alma na vida, se havia assim de roubar-m'a? — exclamava D. Luiz no decurso d'este melancolico exame.

— Para lhe dar um anjo que o veja do céo e vele pelo destino d'esta familia, que ella tanto estremecia na terra.

— O destino d'esta familia! — repetiu o fidalgo, assombrando-se-lhe o semblante. — Triste destino!

— Confio nas orações d'aquelle anjo.

— Quando uma familia cumpre no mundo uma dolorosa expiação, nem as orações dos anjos podem allivial-a d'ella. Deus afastou do mundo a innocente e fraca, para me deixar só a mim o pêso do meu infortunio e o das longas culpas dos nossos. Elle bem sabia que emquanto a tivesse ao meu lado para arrimo, nem sentiria o castigo. Aceito a sentença de Deus, procurarei cumpril-a com firmeza, e oxalá que meus filhos, recebendo o sinistro legado, não desfalleçam como covardes.

— Não pense n'essas coisas, meu padrinho. Tenho fé que ainda voltarão dias felizes para esta casa.

— Sim; quando a comprar em hasta publica qualquer proprietario endinheirado, que faça depois resoar por estas salas os sons dos bailes e dos festins. A casa verá então dias alegres, verá. E quem se lembrará dos velhos senhores d'ella, cujos descendentes talvez aceitem um logar de conviva á mesa do novo proprietario? Porque vamos para uma época de faceis condescendencias.

Bertha calou-se, baixando os olhos, porque pressentia perigos na direcção que levava a conversa.

D. Luiz tinha delicadeza para comprehender a discrição de Bertha, e mudando de tom, continuou:

— Mas perdoa-me, Bertha, estas ideias tristes da velhice não são para a tua idade. É uma crueldade da minha parte não guardar para mim estes pensamentos.

— Se eu podésse desvanecel-os!

O fidalgo limitou-se a fazer um gesto de negação.

N'este momento ouviu-se nas escadas um rumor de passos e de vozes, que a ambos fez estremecer.

— É teu pae, Bertha? — perguntou D. Luiz, erguendo-se e olhando em redor com inquietação.

— Meu pae não está na terra. Ha tres dias que partiu e não o esperamos ainda hoje — respondeu Bertha, sobresaltada tambem.

Calaram-se como para melhor escutarem o rumor que parecia já mais proximo.

Ouviu-se uma voz dizer:

— Vejamos comtudo d'este lado; a torre póde muito bem servir para pombal.

D. Luiz estremeceu ao som d'aquella voz.

Outra respondeu em tom mais baixo:

— Parece-me que entrevejo uma porta aberta. De vagar, de vagar.

— Animo, Mauricio; olha se deixas perder as vantagens da tua bella posição.

— Mauricio! — exclamaram ao mesmo tempo D. Luiz e Bertha, e uma intensa pallidez cobriu o rosto d'esta.

D. Luiz desviou para ella um olhar, em que havia um fulgor de desconfiança.

— Ouviste?

Bertha fez-lhe signal affirmativo.

— Sabes o que significa isto?

— Não — respondeu Bertha com firmeza, levantando a vista para o fidalgo que a observava.

Na firmeza e limpidez d'aquelles meigos olhos, que não fugiam dos seus, elle conheceu a verdade da resposta.

— Não, juro-lhe que não — repetiu Bertha com energia.

— Bem — tornou o velho, carregando o sobrolho e apertando a mão de Bertha em signal de protecção — esperemos então.

Os que subiam estavam já na proximidade da porta.

D. Luiz recuou alguns passos e ficou occulto pelo cortinado do leito da filha; Bertha permaneceu immovel com a mão apoiada á harpa.

Depois de alguns instantes de demora, a porta moveu-se vagarosamente sobre os gonzos, e no vão deixou apparecer a figura de Mauricio, e mais atraz, meio encobertos pelas sombras do corredor, os dois malignos semblantes dos manos do Cruzeiro.

Mauricio trazia o olhar desvairado e certa desordem de feições denunciadoras da orgia, com que os primos traiçoeiramente o tinham preparado para o escandalo que meditavam.

Ao reparar em Bertha, Mauricio fitou-a com uma expressão de quasi cynica ironia.

— Boas tardes, Bertha — disse elle, curvando-se com gesto de escarneo — não sei se a minha presença interrompeu alguma doce meditação, que esta luz amortecida da tarde lhe estivesse inspirando. Mas tão longe estava de esperar encontral-a aqui!

Bertha tremia e baixava os olhos sem atinar o que dissesse. A consciencia de que o fidalgo estava escutando Mauricio não era o menor motivo para a sua confusão. Se se achasse só encontraria coragem para arrostar com o insulto. No olhar, nas palavras, no gesto de Mauricio percebêra o desarranjo de razão em que elle estava. Temia pois mais por elle do que por si.

Mauricio proseguiu:

— Julgavamos encontrar outra pessoa n'esta velha casa abandonada, porque vimos um cavallo guardado furtivamente, ahi perto, em uns pardieiros arruinados. Isto indicava a presença do cavalleiro. Saber-me-ha dar noticias d'elle, Bertha?

Bertha não respondeu.

— Então não falla! Parece perturbada. É inexplicavel a sua confusão diante de mim, Bertha. Conhecidos ha tanto tempo! companheiros de infancia!... Não se lembra de que brincamos n'esta sala eu, minha irmã, Bertha e... e Jorge?

Um dos primos tossiu ao ouvir o ultimo nome.

Mauricio voltou-se:

— Que é? Que reflexões vos despertou este nome? Parece que tambem Bertha não o ouve a sangue frio.

Bertha tremia cada vez mais.

— Aqui ha um mysterio. Bertha está dominada por alguma influencia má. Desconheço-a. Dar-se-ha que o mau espirito se occulte de nós, tres bons rapazes inoffensivos, que respeitam todas as entrevistas secretas, todas as doces affeições da alma, e que só querem que se seja franco e leal com elles nas palavras e nas obras, e se ponha de parte a falsa moralidade dos hypocritas?

Depois, deixando o tom de sarcasmo pelo da vehemencia, bradou:

— Se alguém me ouve e ainda tem uns restos de brio e de vergonha, que se não esconda, que appareça. É tempo de acabar a comedia. Appareça, ou eu prometto tentar a sua covardia, obrigando-o pela honra a acudir á mulher que furtivamente corteja, se a quizer livrar do galanteio que ella desdenhosamente rejeita.

Estavam mal acabadas estas palavras e D. Luiz achava-se já em frente do filho, fitando-o em silencio e com um olhar de severa e expressa interrogação.

Mauricio recuou, como se aquella apparição o ferisse em pleno peito. Os do Cruzeiro envolveram-se a mais e mais nas sombras dos corredores.

Seguiram-se alguns momentos de silencio; D. Luiz foi o primeiro a interrompêl-o.

— Aqui estou prompto para responder ao interrogatorio de meu filho e d'esses senhores que se escondem... por modestia na sombra do corredor. Interroguem.

— Meu pae... — balbuciou Maurício, baixando os olhos.

— Então deu n'isso a bravata da atrevida provocação que me fez apparecer? E os senhores não serão mais ousados? Muito bem; se é a consciencia que os abaixa ao logar de reus, eu tomo o meu logar de juiz. Que significa toda esta scena de orgia? Que infamia, que vileza os fez subir estas escadas e empurrar aquella porta? Julguei perceber que se tractava de insultar uma senhora. Boa diversão para fidalgos!

E voltando-se para Mauricio, proseguiu:

— D'antes aquelles que traziam o nome de que usas, baixavam cortezmente os olhos diante das damas e erguiam-n'os para cruzar a vista de homem, quem quer que elle fosse, que procurasse a sua. Tu hoje deshonras esse nome, fazendo o contrario. És insultante e provocador com a fraqueza, e baixas a vista ignobilmente sob o peso da tua covardia. Envergonho-me de te ter por filho.

— Senhor!

— Basta. Não quero augmentar a minha vergonha, devassando o intimo das tuas intenções vindo aqui, em companhia dos teus camaradas das devassas orgias. Bertha, bem vê. Quando movida por um sentimento generoso, subiu os degraus d'estas escadas no intento de se entreter com a alma de Beatriz, que melhor do que ninguem conheceu, confiava de mais na boa fé dos outros, julgando-a pela sua. Devia lembrar-se de que n'esta casa em ruinas, d'onde voou para o céo aquelle anjo, crearam-se os hospedes das ruinas, os reptis e as viboras, que se arrastam até aqui para a ferirem com o insulto e com a calumnia, aqui mesmo, n'este logar que devia ser sagrado para meus filhos, se a fatal influencia que pesa sobre esta familia não tivesse já apagado n'elles todos os instinctos de dignidade e de nobreza. Deus, porém, trouxe-me aqui para protegêl-a do insulto e espero que apesar de tremulo, ainda o meu braço lhe servirá de seguro apoio. Talvez que a depravação n'estes homens perdidos não tenha chegado ainda ao ponto de ousarem ameaçar-me; uns restos de respeito filial lhe servirão de salvaguarda.

E D. Luiz, dando o braço a Bertha, que machinalmente lhe obedecia, sahiu do aposento com a cabeça erguida e o gesto severo.

Mauricio e os primos do Cruzeiro afastaram-se timidamente para os deixar passar.

Mauricio deixou-se cahir em uma cadeira e escondeu o rosto entre as mãos, exclamando:

— Eu sou um miseravel!

Os primos olharam-se com o gesto comico de dois collegiaes encontrados em flagrante delicto de insubordinação.