XXIV



Depois de separar-se de Mauricio, a baroneza guiou a egoa na direcção da Herdade. Decidida a vêr e a estudar Bertha, para saber até que ponto estava o coração da rapariga empenhado nos conflictos domesticos dos senhores da Casa Mourisca, Gabriella adoptou a resolução de procural-a sem simular pretexto algum. Os costumes singelos do campo authorisavam esta suppressão de ceremonias; demais, como parenta que era de Jorge e de Mauricio, tinha a certeza de ser bem recebida lá.

Desviando-se da estrada para seguir por um atalho que ladeava a collina, avistou uma pequena capella rustica, com a sua galilé e o seu pequeno bosque de sovereiros a rodeal-a, e tão pittorescamente situada em uma das eminencias proximas, que não pôde resistir ao desejo de subir até alli.

A capellinha, erigida sob a invocação de Sancta Luzia, um dos nomes de mais devoção entre os do florilegio christão, poisava sobre a collina em uma d'essas situações que o povo, com seus instinctos poeticos, costuma escolher para assentar esses modestos monumentos da sua fé e piedade.

O valle feracissimo, por onde se estendiam os vergeis, as searas, as quintas e os lameiros de duas ou tres freguezias, descobria-se todo d'alli. A vista seguia nos seus successivos meandros o pequeno rio que se estirava em chão de areia, por entre moitas de azevinhos, de laurentins e de salgueiros, cujos ramos aqui e além se abraçavam de margem para margem. O campanario da igreja parochial, a ponte de dois arcos, os açudes, as azenhas, as prêsas onde cantavam, lavando, as raparigas do campo, os estendaes onde a roupa de linho branqueava sob os raios do sol, as noras toldadas de parreiraes completavam a feição campestre da paisagem.

Prendendo a egoa ao ramo vigoroso de um d'estes carvalhos decepados, a que na provincia chamam tocas, Gabriella caminhou a pé para a galilé da ermida.

Ao chegar alli descobriu no muro sobranceiro ao lado menos accessivel da collina, uma rapariga sentada costurando.

A baroneza adivinhou logo que era Bertha e applaudiu-se do palpite que a fizera desviar do caminho para subir alli.

Bertha saudou-a affavelmente, como quem tambem a reconhecêra.

A baroneza dirigiu-se-lhe sem rodeios.

— Não é verdade que é a menina Bertha da Povoa que tenho a felicidade de encontrar aqui?

— Sou, sim, senhora baroneza... porque me parece que estou fallando com....

— Justamente. Achamo-nos pois conhecidas. Tanto melhor, para não perdermos tempo com apresentações. Agora permitte-me que a abrace, como a uma pessoa a quem estimo?

— Oh minha senhora!

E as duas mulheres abraçaram-se, saudando-se affectuosamente, como se uma subita sympathia as aproximasse.

— Sabe — proseguiu a baroneza, sentando-se ao lado de Bertha — que ia procural-a?

— A mim?!

— É verdade. Veja que feliz acaso o que me fez subir a esta capella, para gozar do panoramma que se descobre d'aqui.

— É um dos passeios mais bonitos d'estes sitios.

— Pelo que vejo costuma fazer d'aqui a sua casa de lavor?

— Ai, não; raras vezes; hoje vim para esperar meu pae, que chega do Porto. D'aqui avista-se quasi meia legua de estrada. Vê?

— Ai, volta hoje o pae? Visto isso tambem o meu primo Jorge.

— Tambem... julgo que tambem.

Bertha não foi superior a uma leve turbação, ao ouvir o nome de Jorge e ao responder á baroneza. Quem tem no coração um segredo que de todos quer recatar, trahe-o muitas vezes, á força de disfarçal-o. Em cada olhar suspeita uma espionagem, em cada palavra uma allusão, e se a conversa se aproxima do assumpto, segue-a tremulo, como se segue o caminho que se abeira de um precipicio.

A baroneza, que tinha ainda os olhos fitos em Bertha com a curiosidade propria de uma mulher ao observar outra que sabe causar impressão nos animos masculinos, notou aquelle indicio de confusão, e não o desprezou.

— É um generoso rapaz o meu primo Jorge, não acha? — interrogou ella, demorando o olhar no rosto de Bertha.

Esta sentiu o perigo em que estava de trahir-se, e concentrando por isso toda a sua coragem, conseguiu levantar os olhos para fitar a baroneza e responder com apparente serenidade.

— É um nobre caracter, um rapaz a quem se deve respeitar como a um velho honrado.

— Respeitar como a um velho honrado, diz bem; amar como a um rapaz é que não é possível.

Bertha córou d'esta vez, respondendo:

— Não queria dizer isso.

— Bem sei que não. Mas digo-o eu. Jorge é um escravo do dever, e tão absorvido anda nos seus grandes e generosos projectos, que não ha para sonhos de amor logar n'aquella cabeça. As raparigas não podem amar um homem assim, em quem os olhares da mais affectuosa sympathia não insinuam calor no coração. Tem umas maneiras para todas uniformemente polidas e affaveis, que excluem a ideia da menor preferencia. Pois não lhe parece?

— Os nobres sentimentos da alma tambem podem exercer algum prestigio...

— Mas valha-me Deus, Bertha, esse prestigio revela-se em taes casos por uma veneração, que não é amor. É como a que temos pelos sanctos. De virtuosos e justos que nol-os pintam, fogem do nosso nivel e temos de elevar a vista para contemplal-os; e d'esta maneira, com os olhos no céo, adora-se, mas não se ama.

Bertha, com os olhos fitos em não sei que ponto da perspectiva, não respondia e parecia engolfada na corrente de profundos pensamentos.

A baroneza, sem interromper a sua observação, continuou:

— Já assim não é Mauricio.

A abstracção de Bertha não lhe deixou reprimir um movimento que estas palavras lhe provocaram. Dir-se-ia que lhe custava a aceitar a comparação.

Gabriella, observando-a sempre, proseguiu:

— Mauricio não tem o juízo de Jorge, é verdade; porém é mais amavel. Os seus mesmos defeitos fazem com que seja possivel fital-o mais directamente, sem que o esplendor dos seus meritos nos offusgue. É um rapaz, que sem deixar de ser generoso, permanece no nivel commum, em que todos vivemos, e ahi é bem mais facil amal-o.

Bertha escutava quasi distrahida; só passados instantes, depois das ultimas palavras da baroneza, foi que rompeu o silencio, dizendo vagamente:

— São ambos duas almas generosas e merecedoras de estima.

— De certo — insistiu a baroneza. — Mas, minha querida Bertha, eu não sei se lhe succede o mesmo... mas em geral estes rapazes serios e de juizo, como Jorge, intimidam-nos a nós outras, mulheres; não ousamos fital-os com um olhar de sympathia, com medo de que só por esse olhar elles nos accusem, mentalmente pelo menos, de estouvadas, e o resultado d'isto é que não olhamos para elles.

Bertha sorria, sem responder.

— Conhece ha muito esta familia? — perguntou a baroneza.

— De pequena. Brincamos muitas vezes, eu, Beatriz e todos elles na Casa Mourisca.


— E Jorge era então já assim sisudo?

— Foi sempre mais ajuizado do que as crianças da sua idade.

— É um rapaz singular. Já tenho pensado em que era preciso casal-o, porque dará um excellente chefe de familia. O essencial é passar em claro os tramites de um galanteio, porque para isso é que elle não é.

Bertha nada disse ainda.

A baroneza proseguiu:

— Por isso é necessario que os estranhos tractem d'isso e escolham por elle.

Bertha aventurou timidamente algumas palavras.

— E aceitará elle a intervenção em um acto tão essencial da sua vida? Elle que está costumado a olhar em pessoa por os negocios que lhe dizem respeito?

— Isso é verdade, mas contentar-se-ha em fallar directamente com a noiva que lhe propozerem e dizer-lhe com aquella natural franqueza todo o seu pensamento, e feito isto póde a escolhida ter a certeza de que terá n'elle um marido leal e affeiçoado, talvez sem grandes requebros de amante, mas com a verdadeira estima de um amigo.

— De certo que a pessoa a quem o snr. Jorge estender a mão póde confiar n'ella como na de um pae.

Bertha, julgando dizer estas palavras naturalmente, não pôde tirar-lhes um tremor de commoção, que a baroneza notou.

Bertha foi quem primeiro rompeu o silencio, que se seguiu a estas palavras:

— Mas dizia a snr.ª baroneza que viera procurar-me?

— É verdade. Andava anciosa por conhecêl-a. Adivinhava-a pela impressão que via causar em quantos se aproximavam de si. O tio Luiz fallava-me de Bertha com uma ternura a que já é pouco sujeito; Mauricio com um enthusiasmo de apaixonado; e Jorge....

Gabriella fez aqui intencionalmente uma pausa, durante a qual estudou a physionomia de Bertha.

Esta baixára-se, como para cortar uma malva do chão, mas nas faces estendia-se-lhe um rubor fugaz, que denunciava um intimo alvoroço.

— E Jorge — concluiu a baroneza — com aquelle modo apparentemente frio que tem para dizer todas as coisas, mas em termos que exprimiam bem a sua estima por a pessoa de quem fallava; d'aqui o meu desejo de conhecêl-a; não me admiro agora de todo aquelle effeito, porque eu mesma o estou sentindo já.

Bertha sorriu, agradecendo-lhe o comprimento.

— Creia-me, Bertha. Conhecemo-nos de pouco, mas olhe que sou já sua amiga e talvez possa ainda mostrar-lh'o um dia.

— Agradecida, snr.ª baroneza.

— Não tome esse tom de ceremonia para me fallar. O que eu digo não é um comprimento. Sabe que mais, Bertha? Talvez que pouca gente esteja tão adiantada no conhecimento do seu coração como eu, depois d'esta nossa primeira e curta entrevista.

Bertha córou d'esta vez intensamente, e olhando para Gabriella com um olhar assustado, balbuciou quasi tremula:

— Do meu coração?... Por ventura...

— Não se assuste. Não quero fallar mais nisto emquanto não me conhecer melhor. Só lhe digo que eu não passo de uma pobre mulher com bastante coração e com o grau de loucura preciso para me enthusiasmar pelo partido dos sentimentos generosos e sinceros, quando luctam com as convenções e os preconceitos sociaes. E agora deixe-me mostrar-lhe um grupo de cavalleiros que estou d'aqui vendo, e que talvez o seu olhar melhor possa distinguir do que o meu.

Bertha, seguindo com os olhos a direcção que a baroneza lhe indicava, exclamou:

— São elles, são! É meu pae e Jorge... e o snr. Jorge.

E aproximando-se do angulo do adro, d'onde melhor poderia ser vista, pôz-se a acenar com o lenço para os recem-chegados.

Thomé não respondeu logo, mas passado algum tempo tremulava na ponta da vara do cavalleiro, como flammula em mastaréo de navio, o lenço de quadros, que o vento desenrolava.

Gabriella, seguindo com os olhos os movimentos de Bertha, pensava:

— O mysterio d'esta já eu descobri. Pobre criança! tem muito pouca astucia para occultal-o. Ha n'ella uma transparencia que deixa vêr até ao coração. E aquelle? — proseguiu, dirigindo os olhares para Jorge, que ainda vinha longe — Enganar-me-ia eu? Não será aquillo sómente frieza, será reserva? Póde ser, póde. Estes homens assim morrem ás vezes com uma paixão no peito, e morrem por esforços que fazem para occultal-a. Se o facto se dér com Jorge, é uma coisa gravissima; quem póde calcular o que se seguiria? Emquanto a Mauricio, já vejo que está tudo bem; parece-me que por este lado não deixará muitas lagrimas por vestigio da sua passagem, nem terei de sentir remorsos se o arrebatar para longe d'estas paragens. Mas observemos.

Bertha, que corrêra a esperar os cavalleiros, estava nos braços do pae, que a beijava com effusão. A baroneza, meio occulta por um tronco de sovereiro, notou um rapido olhar de Jorge para Bertha, quando a rapariga ainda o não podia vêr, porque Thomé lh'o encobria; notou mais que assim que Bertha o procurou, estendendo-lhe a mão, Jorge correspondeu com ceremoniosa deferencia, e nunca mais dirigiu para ella a vista.

A baroneza foi emfim ao encontro dos viajantes.

Recebeu de Jorge um acolhimento sem comparação muito mais expansivo, do que o que Bertha lhe merecêra. O penetrante espirito de Gabriella interpretou esta differença a seu modo.

A companhia desfez-se passado pouco tempo.

Thomé tinha pressa de chegar a casa; segurando a egoa pela arriata, despediu-se da baroneza e de Jorge, e partiu, em companhia da filha, caminho da Herdade.

A despedida de Jorge e Bertha teve a mesma apparencia de reserva e de constrangimento, que caracterisára o primeiro encontro.

Observou porém Gabriella que, proximo a dobrar uma curva do caminho, além da qual se perdia de vista Thomé da Povoa e a filha, que seguiam em direcção opposta, Jorge se voltou para traz com apparente naturalidade.

— Então que resultados colheste da tua excursão? — inquiriu a baroneza, não demonstrando as descobertas que ia fazendo, emquanto cavalgava ao lado do primo.

— Excellentes — respondeu Jorge, em tom de verdadeira satisfação. — Estes dias foram preciosos. O nosso pleito entrou em muito melhor caminho depois da minha conferencia com os advogados. Não me havia illudido sobre a importancia do tal documento que a incuria de frei Januario deixára encher de môfo nas gavetas.

Os advogados quasi me asseguraram o exito da causa. Se assim fôr, posso dizer meio vencida a tarefa que emprehendi. As informações que colhi sobre a nova instituição de Credito Predial animaram-me. Legalisados alguns titulos menos regulares, e alienando uma parte da nossa propriedade, que é apenas um estorvo ao melhoramento da outra, poderei habilitar-me a usar prudentemente do credito, recorrendo á nova instituição; resgatar a nossa casa, e dentro de alguns annos remir a divida, graças á eficacia dos melhoramentos que espero realisar. E dizem ainda mal das instituições modernas! Ellas apenas sacrificam os que a ellas recorrem com uma intenção má. O dissipador que julga illudir o credito sob falsas promessas de melhoramentos, é um dia por elle severamente castigado. E justo é que o seja. Mas quem o procurar com boa fé, com lizura, com intelligencia intelligencia e com o animo decidido para trabalhar, encontrará n'elle auxilios milagrosos.

Jorge faltava com tanto enthusiasmo, que a baroneza, ao ouvil-o, ia sentindo dissiparem-se as suspeitas que ao principio concebêra.

— Este enthusiasmo enche completamente todo aquelle coração — pensava ella — não póde haver lá dentro vazio que o atormente.

Jorge proseguiu informando minuciosamente a prima do estado dos seus negocios, dos seus planos de reformas, das suas esperanças no futuro, e quasi lhe não poupou o calculo de annuidades, pelo qual chegava a determinar a época em que poderia amortisar totalmente a divida contrahida, segundo as bases da legislação hypothecaria.

Só próximo á quinta dos Bacellos foi que a baroneza conseguiu dar á conversa a direcção que havia muito lhe desejava vêr tomar.

Discutindo com o primo o valor dos meios a que se poderia lançar mão para trabalhar na empreza em que elle se empenhara, Gabriella lembrou-lhe o de um casamento com mulher abastada.

Jorge sacudiu a cabeça em signal de repugnancia.

— E aconselha-me isso? — exclamou elle — Não seria regenerar-me, seria vender-me, e venda mais vergonhosa do que aquella aonde nos conduziria o systema de administração seguido até agora n'esta casa; porque n'esse apenas se punha em venda a propriedade, e n'este vendia-se o proprietario.

— Isso é conforme a maneira de vêr as coisas; além de que eu a ti já faço a concessão de não suppôr um casamento exclusivamente por interesse, mas quero que um pouco de amor authorisasse o contracto, que sem tal sancção te repugnaria. Tudo se póde combinar.

— Eu não tenho tempo para amar — respondeu Jorge sacudidamente.

— Ora; o amor não espera occasião opportuna. E eu não posso acreditar que uma alma como a tua não esteja conformada para uma affeição verdadeira.

— Não digo que não; mas quero fugir de pôr em pratica essa aptidão, se a tenho, porque talvez que depois não sentisse bastante contemplação para com o mundo, para aceitar a restricção que elle costuma impôr á satisfação das paixões.

— Mas quem te diz que se estabeleceria esse conflicto entre ti e o mundo?

— Era o mais provavel.

— Queres dizer que mais depressa te apaixonarias por alguma rapariga do povo, pobre, costumada á vida do trabalho e da economia, do que por qualquer das tuas ociosas e fidalgas primas d'estes arredores.

— Com certeza que não me seduzirão essas.

— Mas vamos; se apesar das tuas precauções o facto se désse — porque emfim... estas coisas nem sempre é possível evital-as — romperias abertamente com o mundo?

— Nem quero pensar no que faria. Talvez me resignasse a deixar-me sacrificar aos preconceitos dos outros. Sabe de quem. Resignava de certo, se o sacrificio fosse sómente meu. Mas, se amasse devéras e fosse amado, e a mulher, a quem dedicasse este amor, não tivesse igual coragem para o mesmo sacrificio... não me julgaria com o direito de fazel-a soffrer por uma ideia, que nem para ella nem para os seus tivera o prestigio de uma crença. Mas fallemos em outra coisa, porque este pensamento incommoda-me até.

— Dir-se-ia que não é sómente como pura abstracção, que elle te apparece, Jorge. Fallemos porém d'outra coisa, fallemos.

E a baroneza mudou effectivamente de conversa.

Mas, ao entrar em casa, julgava ella ter obtido as informações que desejára possuir.