Eugenio de Mello, deixando o procurador e a familia, seguiu pela rua de Cedofeita, subiu á rua dos Bragas, desandou á rua da Sovella e, passando o Campo da Regeneração, entrou na rua da Rainha.

O relogio da Lapa fazia soar uma hora da madrugada quando o bohemio parou em frente de uma casa de um unico andar, construcção moderna, em que se notava decencia e bom gosto.

Eugenio tirou uma chave do bolso, introduziu-a na fechadura, abriu a porta e entrou. Subiu os quatro degraus de pedra que davam accesso ao corredor, sem que o ruido dos passos abafados no tapete parecesse dever chamar a attenção do dono ou dona da casa.

Mas o bohemio era sem duvida esperado, porque a meio do corredor abriu-se uma porta e appareceu no limiar uma gentil figura de mulher, trazendo na mão um castiçal de prata em que ardia uma vela.

— És tu, Eugenio?

— Sou eu, minha querida!

O bohemio aproximou-se da formosa dama que assim lhe fallava, acariciou-lhe amorosamente os longos cabellos louros, esparsos sobre o fino roupão de velludo granada que lhe cingia o corpo airoso, e beijou-a longamente nos labios.

— Demorei-me, não é verdade? — perguntou elle, lançando-lhe um braço á roda da cintura e conduzindo-a para o interior da saleta d'onde ella havia surgido.

— Principiava a desesperar-me... Imaginei que já não virias e pensava na maneira de te castigar bem castigado pelo teu abandono!

— Louquinha! Pois tu pensavas em fazer mal ao teu Eugenio, que tanto te quer, que tanto te adora?!

— Que queres! O ciume começava a atormentar-me! Lembrava-me que estavas talvez nos braços de outra, esquecido da tua Leonor, que só é feliz quando te vê, quando te tem a seu lado!

A formosa creatura que Eugenio chamára Leonor, pousou o castiçal sobre um velador de pau ébano que ficava ao lado do marmore do fogão, e lançando os braços ao redor do pescoço do mancebo, sorveu-lhe nos labios, com verdadeiro frenesi, um segundo beijo, mais lento e voluptuoso que o primeiro.

— Mas tu não estiveste com outra, não? — disse n'um gemido em que havia receio e esperança, supplica e perdão.

— Que ideia! Estive com uns amigos, de quem não pude ver-me livre...

— É que eu amo-te tanto que, quando não te vejo, penso sempre que te perco, que não voltas mais ao pé de mim, que me esqueces, que foges com outra para nunca mais!

Eugenio ria.

— Descança, meu amor... Quem é que me ha de querer? Não vês que eu sou tão infeliz, tão desgraçado, que não tenho ninguem no mundo que devéras me estime senão tu?

— E tambem de ninguem mais precisas! — disse com vehemencia a dama loura. — Não estou eu aqui para te rodear de carinhos, de ternura, de affectos que só eu sei tributar-te? Não preencho eu todas as necessidades do teu coração, todas as ambições da tua existencia? Não faço eu por adivinhar os teus pensamentos, por satisfazer os teus desejos, as tuas mais caprichosas phantasias? De quem mais precisas para ser feliz, meu amado, meu querido e doce sonho d'amor?!

— Decerto, decerto, minha querida amiga! — fez Eugenio, suspirando. — Eu seria feliz, muito feliz comtigo, seria o mais ditoso dos homens se...

E interrompeu-se suspirando.

— Se quê? Anda, acaba!

— Se fosses minha sómente... se eu fosse rico bastante para não consentir que outro partilhasse os teus affectos...

— Mas eu não o amo! — protestou a dama loura. — Bem sabes que o não amo, Eugenio! Recebo-o com desdem, supporto-o com sacrificio, porque d'elle me vem o teu e o meu bem estar... E cada prova que elle me dá do seu amor, cada manifestação da sua ternura, mais accrescenta o meu tedio e o meu despreso por elle!

— Ah! se eu fôsse rico — tornou a suspirar o bohemio — com que prazer eu o correria a pontapés d'esta casa para fóra, e com que deliciosa furia eu quebraria todos estes crystaes, rasgaria estes tapetes, reduzindo tudo a cacos, tudo a farrapos, para só salvar de todo este montão de ruinas, puro e intacto, o adorado coração da minha pobre Leonor!

Levantou-se agitado, passando frenetico as mãos pelos cabellos, n'uma attitude de heroe de melodrama.

Leonor correu a elle, apoiou-lhe nos hombros as mãos alvas e pequeninas, em cujos dedos lusiam brilhantes, supplicando:

— Então! Vá! Não sejas louco!... Isto ha de acabar um dia... Bem sabes que elle é velho... não póde durar muito... E como promette contemplar-me no testamento, ainda nos esperam dias muitos felizes...

— Dias muito felizes! — repetiu o bohemio com desanimo, deixando-se cahir de novo sobre o estofo do sofá. — Antes d'isso hei-de eu morrer de desespero!

— Morrer! — exclamou a loura, cobrindo-o de cariciosos beijos. — Não me falles em morrer, se és meu amigo, Eugenio! És novo, forte e vigoroso e receias que um velho dure mais que tu?!

— Não! eu não temo que a morte me colha antes do tempo... Mas tenho um vago presentimento de que serei eu que hei-de ir ao encontro da morte... Ás vezes, para certos desgraçados como eu, a unica felicidade possivel n'este mundo só existe na paz da sepultura!

— Jesus! que funebre vens hoje! Não tens dinheiro, aposto!

— O não ter dinheiro é o menos... Desde que rompi com a minha familia, que quiz por força tolher o meu destino, anniquilar o meu futuro, habituei-me ás privações inevitaveis que resultam de uma mezada, que minha mãe me manda ás escondidas de meu pae... Mas o peor não é isso... o peor são as decepções, os desenganos que todos os dias um homem nas minhas circumstancias está recebendo de amigos que o conhecem e que nunca deviam ser os primeiros a humilhál-o.

— Mas o que foi? Conta-m'o, filho! — supplicou Leonor com interesse.

— Para que hei-de eu affligir-te com coisas que não pódes remediar? Fallêmos antes de ti, do nosso amor, tão puro e tão ardente que, se não fôra elle, já ha muito eu teria acabado com este negro fadario!

— Não, não! quero saber... Anda, falla! — insistiu ella amorosamente.

Eugenio passou a mão pelos cabellos, sacudiu a cabeça com um fundo suspiro e principiou contando, em tom de confidencia:

— Quando eu vivia ainda em casa de meus paes e dispunha de todo o dinheiro que me era preciso para satisfazer todos os meus caprichos, todas as minhas loucas phantasias, tinha amigos que todos os dias e todas as horas me protestavam uma eterna dedicação, uma amizade sem limites... Oh! como eu os tenho conhecido agora, na adversidade, esses falsos e indignos amigos, esses canalhas, esses biltres, esses miseraveis!

O bohemio interrompeu-se para verberar indignado com estas apostrophes violentas uns amigos que nunca teve.

— Vamos! Não te afflijas! — aquietou em voz dôce a carinhosa e ingenua Leonor.

— Um d'estes, um dia, a meu pedido, consentiu em valer a um pobre rapaz, nosso novo companheiro de rapaziadas, emprestando-lhe trezentos mil reis, que o infeliz tinha desviado da casa commercial em que servia como empregado, achando-se na dura contingencia de entrar para a cadeia, se não apresentasse esta quantia. O pobre moço apaixonara-se por uma actriz e, arrastado pelo amor, alcançara-se n'aquella importancia. Veio ter commigo afflicto, contando-me a sua desgraça e pedindo-me que lhe valesse. N'essa occasião, infelizmente, eu não podia dispôr do dinheiro, porque tinha perdido em uma só noite perto de um conto de réis. Mas como a todo o custo queria salvar a reputação e o futuro do pobre rapaz, lembrei-me de escrever ao tal amigo de quem fallo, pedindo-lhe que abonasse elle aquelle dinheiro sob minha responsabilidade.

— Generoso coração! — exclamou a loura, envolvendo-o n'um olhar ternissimo, em que havia um mixto de sensualidade e de respeitosa veneração.

O bohemio continuou:

— Valeu-se ao rapaz, que continuou desempenhando o seu logar, sem que nunca ninguem, suspeitasse a sua falta, até que um dia, poucos mezes depois, foi colhido pela febre typhoide e morreu... Tive muita pena d'elle!

— Coitado! Esse rapaz era infeliz, — commentou ingenuamente a loura, mais por comprazer ao amante do que por se sentir movida á compaixão.

— Era! Era muito infeliz! — suspirou o bohemio. — Como elle morreu, é claro que não pode pagar...

— Não deixou nada?

— Deixou dividas o infeliz! Poucos mezes depois, meu pae queria obrigar-me ao casamento com uma minha prima de que te fallei e que eu detestava e detesto! Eu recusei-me, elle irritou-se e mandou-me sahir de casa. Sahi. E calculas que eu, que até alli era o menino bonito da familia, fiquei de repente reduzido a uma magra mezada que minha pobre mãe me manda ás escondidas de meu pae, porque elle, de cada vez mais enfurecido contra mim, teima em não me dar um real...

— Cruel pae!

— Retirei então para o Porto, para esta terra onde ninguem sabe quem sou, para não dar ás pessoas que me conheciam o desagradavel e triste espectaculo da minha decadencia, da minha, triste e apertada situação...

— Era o destino que te chamava e te impellia para mim, meu amor!

— Pois sim... era! Mas por essa ventura que a sorte me deparou, quantas amarguras, quantos dissabores, quantos crueis desenganos! Este amigo de quem te fallo, este indigno, que é rico, que está altamente collocado, e que sabe a difficil situação em que me encontro, tem-me escripto mais que uma vez a pedir-me o reembolso dos trezentos mil reis, que elle sabe que eu não utilisei, que não foram para mim e que não posso pagar n'esta occasião! Escrevi-lhe a expôr-lhe a minha má situação e a pedir-lhe que não me apertasse por uma divida que, por emquanto, me é impossivel solver. Pois este miseravel, este infame ameaça-me com os jornaes, se eu não lhe mandar na volta do correio os trezentos mil reis! O biltre! o canalha! E é capaz de o fazer, desacreditando-me, cobrindo-me de opprobrio e de vergonha aos olhos de todo o mundo, sem ter em consideração que eu um dia hei de ser rico e que basta que de hoje para amanhã morra minha tia Quiteria, que é doida por mim, e que me deixa tudo por sua morte, para eu poder atafulhar-lhe de contos de reis a guela ignobil!

Dito isto com o calor e a convicção que põem nas mentirosas phantasias todos os intrujões que fazem officio de o ser, o bohemio tornou a levantar-se de repellão, passeando agitadamente pela sala.

— E é que, se elle cumpre a ameaça, eu sou um homem perdido! Sou um homem perdido, porque vou ter com elle, metto-lhe uma bala na cabeça e depois acabo com a vida, dou um tiro n'um ouvido!

— Eugenio! meu Eugenio! — exclamou afflicta a loura Leonor — não penses em fazer tolices...

— Como queres tu, meu anjo, que eu continue a viver depois de ter soffrido este horroroso ultraje? Homem honrado, antes morto do que injuriado! E eu não posso... não posso com esta ideia de me vêr offendido por um homem que se dizia meu amigo! Ah! eu só queria ter os trezentos mil reis para lhe atirar com elles á cara e dizer-lhe: «Ahi tens, miseravel! Eugenio de Mello é mais nobre na sua pobreza, do que tu, infame, em todo o teu fastigio de homem rico!»

— E assim lhe dirás, meu amigo! — exclamou fremente de indignação a apaixonada loura. — Não será por trezentos mil reis que esse canalha, quem quer que elle é, ha-de desacreditar o meu Eugenio... Os trezentos mil reis tel-os-has amanhã.

— Oh! mas eu não posso acceitar... — recusou o bohemio, em cujos olhos fulgiu um raio de alegria. — Tens feito tantos sacrificios por mim... Devo-te já tantas provas de ternura e carinhosa dedicação, que não devo consentir em que te sacrifiques mais...

— Cala-te, não sejas creança! — interrompeu Leonor, pondo-lhe a pequenina mão na bocca para o impedir de continuar. — O meu maior prazer, a minha maior felicidade n'este mundo seria dar a vida para te ver contente e feliz!

— Como és boa e como eu te adoro! — exclamou Eugenio, cingindo-a ardentemente nos braços com amoroso impulso.

Não devemos nem é justo deixar mais tempo o leitor sem a explicação que esta scena extraordinaria requer.

Em poucas linhas se resume a vulgar e triste historia d'estes abjectos e sujos amores.

Leonor era uma creatura plebeia, divinamente esculptural, que um velho commendador — o sr. commendador Garcia — encontrára um bello dia á sahida da loja da modista onde a pobresinha picava os dedos afilados e bonitos, a preço de tres tostões por dia.

O commendador Garcia, picado tambem pela belleza provocante da rapariga, começou a sentir-se apaixonado por ella, e a tal ponto, que offereceu envolvel-a em sêdas e velludos, recamal-a de perolas e brilhantes, se ella lhe cedesse a elle, commendador, os graciosos encantos da sua mocidade e da sua gentileza em vez de os desperdiçar no provavel matrimonio com algum pobre operario faminto e honrado.

Leonor ouviu os conselhos auctorisados de uma comadre experimentada em varios lances d'esta natureza e ao cabo de poucos dias, sentindo-se abalada nos seus escrupulos de mulher honesta, acceitou o dinheiro do generoso commendador.

Deslumbrou então o Porto e a sociedade elegante do Palacio de Crystal com o rico esplendor dos seus vestidos caros e com a phenomenal belleza da sua figura gentilissima.

O commendador deu-lhe mestra de francez e professora de piano, que passaram um tenue verniz de educação por sobre aquella rudeza nativa do berço humilde da linda Leonor; e então era vêl-a, esquecida da sua pobre origem, affectar modos de duqueza, desdenhosa e altiva, quando passava nas ruas, fazendo gala do seu impudôr.

Entre o rapaziada fina do Porto foi por muito tempo Leonor o appetecido pomo, tanto mais cubiçado quanto era difficil colhel-o, tal era a altura em que o commendador bizarro e dadivoso a collocára.

Por esse tempo appareceu Eugenio no Porto, bafejado por uma sorte rara á roleta, que em tres dias successivos o favorecera com quatro contos de reis em uma das nossas praias mais concorridas.

O bohemio, de origem pobre e plebeia, porém, naturalmente fino e intelligente, educara-se na convivencia dos rapazes estroinas da capital e d'elles copiára as maneiras elegantes, a linguagem culta e até — oh supremo instincto de imitação! — o apparente despreso pelo dinheiro que os outros desperdiçavam ás mãos cheias, porque eram ricos e que elle raras vezes possuia, porque era pobre.

Com taes predicados e n'uma sociedade para a qual as apparencias são tudo, e que abre sem escrupulos os braços e as portas ao primeiro adventicio que lhe mostra uma mão-cheia de libras, sem dizer de que maneira as adquiriu, Eugenio foi, como não podia deixar de ser, logo recebido como uma das primaciaes figuras da elegancia portuense.

Viu Leonor. Atrevido e audacioso com as mulheres, habituado, além d'isso, a explorar o vicio dourado da capital, comprehendeu desde logo que estava alli uma fonte de receita apreciavel, pois que podia facultar-lhe vida larga por muito tempo, e tentou a conquista. Ora como as mulheres do mau sempre escolhem o peor, Leonor, que rejeitara desdenhosa as homenagens de tantos que podiam augmentar-lhe os rendimentos, afinal decidiu-se por aquelle que não podia senão diminuir-lh'os.

Começou então entre os dois um doce idylio, em que para Leonor havia apenas o travo do commendador Garcia a empecer-lhe as noites até ás dez horas e a impedir-lhe a expansão franca do seu coração amoroso.

Eugenio, é claro, apresentou-se como um rico herdeiro do Alemtejo, futuro senhor de porcos e cortiça que chegariam para pagar a divida externa, mas, por desgraça, victima imbelle dos rigores de um pae protervo e sem coração, que o condemnara á pobreza por elle não querer sacrificar o seu coração de rapaz brioso á cortiça e aos porcos de uma prima com quem pretendiam casal-o.

Assim, Leonor, orgulhosa de ter conquistado o coração rebelde de um moço que tão impavidamente resistia ao despotismo paterno e á cortiça de uma prima detestada, puzera á disposição do amante numero dois, o seu coração virgem de affectos e todo o dinheiro que lhe sobrava das despezas a que occorria o amante numero um.

Dera-lhe uma gazua da porta e marcara-lhe a hora da entrada: á noite, depois das dez. De dia, a toda a hora.

Eugenio, porém, hospedara-se no Hotel Francfort como convinha e era prudente, para que estas relações, que deviam conservar-se clandestinas, não chegassem a escandalisar o commendador Garcia.

Logo que Leonor lhe deu a certeza de que no dia seguinte lhe facultaria os tresentos mil reis para atirar com elles á face estanhada do amigo indigno, o bohemio mudou de aspecto e entregou-se sem restricções e sem sombra de melancholia á mais carinhosa e enthusiaetica adoração que um coração de mulher louca e linda jamais recebeu do seu amante.

— Sabes? — disse-lhe elle. — De ti recebo estas provas de affecto e orgulho-me dos sacrificios que fazes por minha causa, porque te amo, porque o meu coração todo te pertence e, assim, vejo que entre nós não ha meu nem teu, tudo é commum, tudo é igualmente compartilhado pelos dois. E de minha prima... vê tu lá! — ainda que viesse de rastos lançar-se a meus pés, pedir-me que recebesse d'ella a salvação da minha vida, a salvação da minha alma, eu repellil-a-hia, morreria, iria para o inferno, mas não acceitava d'ella um real que fosse!

— É porque não a amas...

— É porque te amo, Leonor! É porque só tu n'este mundo tiveste poder para quebrantar o meu orgulho de homem e fazer que eu recebesse de ti um dinheiro que, vindo d'outra parte, me escaldaria as mãos!

— Como és bom! e como eu gosto de ti, meu amigo! Só queria ser bem rica para te fazer o mais rico dos homens! Nenhum havia de fazer melhor figura que tu, nenhum havia de poder collocar-se ao pé de ti!

— Quando eu fôr senhor d'aquillo que é meu, então, Leonor, o que tu hoje desejas fazer-me, é justamente o que eu te hei de fazer a ti! Hei de pegar n'essas joias todas e atiral-as pela janella fóra! Hei de trazer-te como uma princeza, viveremos em Lisboa, que é outra terra, e então verás o que é vida, o que é gosar! Havemos de ir a Paris, á Italia, a Londres, ver esse mundo todo, unidinhos como dois noivos que se amam, que se adoram e que fazem a inveja do mundo inteiro! Queres?

— Se quero! Como eu seria feliz, se pudesse viver contigo sósinha, sem estorvos, sem impecilhos, ainda que fosse num canto bem retirado do mundo, numa casinha bem pobre, onde só eu e tu coubessemos!

— Amor e uma cabana! — disse rindo maliciosamente o velhaco, beijando-a com enthusiasmo. — Graças a Deus, havemos de ter melhor do que isso...

E suspirando com tristeza:

— Para isso bastava só que morresse meu pae!

— Deixa-o lá, coitado! - intercedeu piedosa a ingenua loura.

— Deixo, deixo... Eu não lhe desejo a morte... Mas acredita que, ás vezes, Leonor, até chego a pensar que não tenho pae!

O velhaco tinha razão.

Ele não só já o não tinha, como nunca fizera caso d'elle, desde que pôde abandonar o pequeno cubiculo em que o desgraçado vendia, como adelo, botas e livros velhos, numa das alfurjas do Bairro Alto, alli pelas immediações da travessa dos Fieis de Deus.

Mãe, uma esfregadeira que a miseria tinha levado na sua onda negra para o hospital de S. José, onde falleceu, nunca elle a conhecera.

Portanto, esta exclamação: «ás vezes até chego a pensar que não tenho pae», ficaria verdadeira, horrivelmente verdadeira, se dissesse que desde criança se habituára a pensar que o não tivera.

No dia seguinte, Leonor mandou pedir ao commendador Garcia os tresentos mil reis que o bohemio devia levar, não para o phantasiado amigo, mas para o jogo do monte, que era o sorvedouro horrivel onde o miseravel não só afundava o dinheiro que podia obter á custa de tranquibernias e abjecções, mas ainda a sua propria saude e robustez de homem válido.

O commendador, capitalista opulento, mandou o dinheiro pedido, não sem notar de si para comsigo a frequencia com que taes exigencias se repetiam.

No emtanto, como a sua paixão por Leonor era violenta como um incendio n'uma casa velha, ainda d'esta vez não se atreveu a fazer a menor objecção.

Foi com extremo contentamento que Leonor passou para as mãos do seu anjo mau o dinheiro extorquido á imbecilidade senil do commendador.

— Aqui tens — disse ella — paga a esse canalha, a esse falso amigo, e lembra-te que no mundo ninguem te ama tanto como a tua amiguinha!

— Juro-te, meu amor, minha alma, minha vida, que ninguem no mundo adora tão ardentemente os teus encantos como eu! — replicou o bohemio, radiante de contentamento, guardando na algibeira a generosa dadiva da amante.

Almoçou e sahiu, pretextando que ia enviar aquella quantia ao seu destino.

Eram onze horas da manhã quando entrou no escriptorio do Belchior.

— Olhe lá — disse elle — esta noite posso dispôr de mim, ou teremos nova estopada?

— Não sei... Deixe vêr o que diz o Custodio. Elle lá ficou encarregado de tecer os pausinhos...

— O diabo da sirigaita é dura da bocca... Mas não tem duvida que, se me entra para a loja, eu saberei applicar-lhe a espora e obrigal-a a tomar andadura regular.

— Isso, depois, é lá comsigo e com ella — respondeu rindo o procurador. — Mas eu sempre lhe darei de conselho que a leve por bem, emquanto o Custodio não esticar o pernil...

— Isso é dos livros! Mas sabe você que já me vae enfadando tanta difficuldade?

— Meu amigo, não se agarram trutas a bragas enxutas... N'estas coisas, é preciso muita paciencia, porque de outro modo não se faz nada.

— Mas vamos a saber: poderei hoje ao menos convidar alguns amigos para uma ceia?

— Póde... Se tem dinheiro, póde. Quem é que o ha de impedir?

— Quem me impediu hontem. Você é sempre o meu desmancha prazeres, amigo Belchior!

— Para seu bem.

— E para seu...

— Claro! Para o bem de nós ambos. Mas muito mais para você do que para mim.

O bohemio ia a retrucar, quando a porta se abriu e appareceu o Custodio de Jesus.

— E então? — interrogaram os dois.

— Então, sabem o que ella me disse?

— O que foi?

— Adivinhem!

— Não somos bruxos! — replicou o procurador — Falle para ahi, com seiscentos diabos! Sim ou não?

— Pois bem — não!

— Hein?! — fizeram os dois espantados.

— É verdade! Disse-me agora muito terminantemente que não.

— E você não voltou á historia do tiro na cabeça? — observou o procurador.

— Espere ahi, que o mais bonito está por dizer. A pequena não só me declarou abertamente que não queria casar com o sr. Eugenio, mas fez mais. Pediu-me que visse eu quanto me era preciso para solver as minhas dividas e que lhe apresentasse uma nota dos credores, porque ella se encarregaria de resolver a questão de modo satisfatorio e que nos puzesse a coberto da miseria que eu tanto temia...

— E você o que respondeu a isso? — perguntou o Belchior.

— O que havia de eu responder? Fiquei entalado com esta sahida... Sim, porque você bem vê que, depois d'uma resposta d'estas, eu já não podia dizer que ia dar um tiro na cabeça...

— Mas o que pensa então fazer? — interrogou Eugenio.

— Esperar, a ver o que sae d'aqui...

— D'ahi o que sae é ella perceber que você não está arruinado como diz, e não só recusar-se a casar aqui com o meu amigo e sr. Eugenio, mas ainda pôr-se a chuchar comsigo! — exclamou o Belchior furioso. — Segue-se que você representou mal a scena e não é por esse modo que nós conseguiremos nada.

— Espere, homem, espere! — interrompeu o Custodio. — Eu tenho uma ideia.

— Que ideia é?

— Ella hontem, depois que vocês sahiram, foi ainda á janella fallar ao tal rapaselho que a namora...

— Você viu?

— Vi, porque eu, como já estou prevenido, ando desconfiado, e quando eu desconfio ninguem me faz o ninho atrás da orelha... Não ouvi o que disseram, mas calculo... A rapariga disse ao rapaz o que se passava, e elle, naturalmente, prometteu-lhe salvar-me das difficuldades financeiras em que me encontro, para evitar que o casamento se faça...

— Isso é lá possivel! O rapaz é pobre, e se prometteu isso, com certesa temos intrujice no caso, porque elle não póde arranjar cem mil reis, quanto mais uns poucos de contos.

— Bem! Mas a mim lembra-me uma coisa: é apresentar-lhe a nota dos meus crédores e deixar que elle confesse que não póde fazer nada. Então eu torno a ameaçar que me mato e ella não terá remedio senão ceder.

— Mas isso então quer-se para breve! — objectou o procurador — Aqui o sr. Eugenio de Mello tambem não póde estar na contingencia da pequena querer ou não querer... Porque é pessoa respeitavel e tomaram-n'o muitas meninas em tão boas ou melhores condições de fortuna do que sua filha...

— Eu é porque devéras a amo! — explicou o bohemio — Sinto-me loucamente apaixonado pela senhora D. Beatriz e estou disposto a todos os sacrificios para conquistar a ventura immensa de a possuir como esposa. Mas permitta-me que eu lhe pergunte: se esse rapaz conseguir offertar generosamente a quantia que o meu amigo disser carecer para reconstituir a sua fortuna... o que fará o sr. Custodio de Jesus?

— O que farei? Essa é boa! Faço o que deve fazer todo o homem de juizo: pego no dinheiro com as mãos ambas, e depois não dou o consentimento para a pequena casar.

— Ande-me assim, seu Custodio! — bradou o procurador. — Essa é de mestre... Mas n'esse bolo havemos de ir feitos...

— Está dito! Reparte-se pelos tres... Mas acho que não havemos de ter questões por causa da partilha...

Os tres desataram a rir.

— Vamos a ver o que sae d'aqui! — disse por fim o Belchior. — Tinha graça se o rapazote nos sahia á ultima hora a fazer chover dinheiro ao toque d'uma varinha magica, tal qual como nas peças de theatro!

— Amigo Belchior — expôz o Custodio — parece-me que andei bem em não apertar o fiado... O melhor que temos a fazer agora é preparar uma relação dos crédores e apresental-a á rapariga...

— Qual relação de crédores! — protestou o procurador. — Você não tem senão um credor... Esse credor sou eu. Você deve-me cincoenta contos, e elle que venha entender-se comigo...

— Justamente! — apoiou Eugenio. — E assim ficaremos sabendo os recursos de que o tal menino dispõe...

— Está dito! — decidiu o Custodio. — É claro que cincoenta contos não se arranjam como se fossem cincoenta reis; e logo que o tal badaméco ouça fallar em tanto dinheiro, põe-se a andar e não torna a apparecer. Então ficaremos com o campo livre para continuar a representar a scena do tiro na cabeça, se a pequena teimar em não querer este casamento.

— Se se dér o caso do rapaz, assustado com tamanha quantia, passar o pé, a propria pequena, por despeito e por vingança, será a primeira a dizer que pensou melhor e que acceita o noivo que se lhe propõe — opinou o procurador.

— Fiquemos então n'isto. Você é meu credor, com letras acceites por mim, e impõe que ou este casamento se faça, ou eu pague no dia do vencimento, que está para breve — concluiu o Custodio, voltando-se para o Belchior.

— Exactamente — respondeu este. — E mandemos para cá, que eu me encarregarei de resolver a questão.

O procurador piscou o olho a Eugenio e fez-lhe um signal para que sahisse.

O bohemio comprehendeu-o e despediu-se, affirmando que estava irresistivelmente apaixonado por Beatriz e appellando para a amizade dos dois, afim do que envidassem os seus esforços em defesa da sua causa.

Logo que o Belchior se viu a sós com o Custodio, abriu a gavêta da escrivaninha e, tirando de dentro uma certidão do escrivão de fazenda de Borba; apresentou-lh'a, dizendo:

— Veja você, amigo Custodio, a pechincha a que a sua filha torce o nariz!

O Custodio pegou na certidão das contribuições pagas por Eugenio de Mello á Fazenda Nacional.

— Com os diabos! — disse elle — para pagar tudo isto, perto de dois contos de reis, é preciso que tenha uma fortuna enorme!

— Este diabo nem sabe o que tem de seu! E ainda você está com pannos quentes com a rapariga! Onde vae ella encontrar um partido como este?

— Pois, amigo Belchior — affirmou o Custodio com resolução — ainda que saiba de a levar pelos cabellos á egreja, esta fortuna é que eu não deixo perder.

— Mas é preciso que isto não demore muito tempo a decidir.

— Isto por esta semana rebenta! Deixe-me cá manobrar á vontade e você verá como a coisa se arranja...

Tendo affirmado isto, o Custodio deixou o procurador e partiu a arranjar a conta do seu debito para apresentar á filha.