O padre Filippe, quando chegou a casa, depois de ter assistido aos ultimos momentos de Maria do Carmo, tirou da sotaina a sacca das libras e o manuscripto que a moribunda lhe confiara, atirando tudo para dentro da gaveta da sua secretária, sem se dar pressa em observar de perto o estranho legado.
Vinha fatigadissimo e como a idade já lhe não permittia prolongadas vigilias, recolheu-se ao leito, reservando para o dia seguinte o exame do mysterioso manuscripto.
A confissão da velha, porém, impressionara-o.
Elle conhecera o padre Hilario e sabia muito bem, pelo que lhe dissera madre Paula, que o novel capelão da Covilhã era filho do padre Anselmo. O que de todo o ponto ignorava eram as particularidades que a velha lhe revelára nos ultimos momentos.
Nunca tivera grande curiosidade de saber a origem d'aquelle filho que o padre Anselmo parecia querer encobrir, não obstante a grande protecção que sempre lhe dispensára e que era o que afinal trahira o seu segrêdo. Mas, comparando os relativos cuidados havidos para o padre Hilario com o abandono a que Paulo fôra votado, o padre Filippe não sabia explicar a differença, senão pelo grau de affecto que separava aquellas duas mães no coração do padre Anselmo.
Todavia, madre Paula suppunha a Irmã Dorothêa vivendo em paiz estrangeiro, protegida pelo seu seductor, a essas horas talvez elevado ao cargo de Provincial ou Assistente, com outro nome diverso do que a principio tivera. E n'este caso, como é que os dois esqueceram Paulo, deixando-o entregue aos cuidados de duas pessoas amigas, de quem mais não quizeram saber?
Emaranhado n'esta ordem de considerações, o padre Filippe adormeceu, reservando para o dia seguinte a leitura do manuscripto, que talvez viesse fazer luz em tão escuro labyrinto.
Se essa leitura alguma coisa o esclareceu, poderemos nós avaliar pela conversação que, na tarde d'esse mesmo dia, se travou entre elle e madre Paula, na casa das Sereias.
— Sabes, minha amiga — disse o padre Filippe, entrando na cella da abbadessa — que tive noticias do padre Anselmo?
— Sim? — perguntou madre Paula com curiosidade.
— É verdade. Noticias bastante retardadas, mas em todo o caso novas para mim e creio que tambem para ti...
— Decerto. Ha muitos annos que não tenho noticias do padre Anselmo. É ainda vivo?
— Não sei. A pessoa que d'elle me fallou é já morta, e, ao expirar, não soube dizer-me se elle ainda vivia.
— Alguem, ao morrer, fallou-te do padre Anselmo?
— Uma tal Maria do Carmo, que foi creatura muito d'elle...
— Tenho ideia d'essa mulher. Persuado-me que a vi duas ou tres vezes procurar o padre Anselmo, quando elle se demorava n'esta casa.
— Eu não a conhecia, mas fui chamado hontem á noute para a ouvir de confissão, porque a pobre creatura não queria morrer sem fazer revelações importantes.
Contou então toda a conversação que tivera com a moribunda e o legado de que ella o fizera depositario.
— E o manuscripto o que diz?
— O manuscripto — replicou o padre — é uma sentida e commovente narrativa feita pela mãe do padre Hilario ao filho, revelando-lhe o segredo do seu nascimento e dando conta dos funestos amôres que, desde muito nova ainda, a ligaram ao padre Anselmo...
— É singular!
— Pelo que d'esse manuscripto se deprehende, essa mulher não vira mais o filho desde o momento em que o déra á luz. O padre Anselmo arrebatara-lh'o da vista, dera-o a crear e encarregara-se da sua educação, conservando no mais rigoroso mysterio as circumstancias do nascimento d'aquella creança. Chamava-se Carlota a mãe, e por suggestões do padre Anselmo, casara em Braga com um agiota chamado Custodio de Jesus...
— Custodio de Jesus! — repetiu madre Paula, sobresaltada.
— Sim, Custodio de Jesus — tornou o padre Filippe — Porque te sobresalta esse nome?
— É porque Custodio de Jesus se chama tambem o pae de Beatriz, a namorada de Paulo; e creio ter ouvido dizer que esse homem residira primitivamente em Braga.
— É extraordinario! — exclamou o padre Pilippe — Dar-se-ha caso que Beatriz seja filha da amante do padre Anselmo?
— Não sei. É possivel, como é possível que a propria Beatriz seja... irmã de Paulo.
— Convem esclarecer esse mysterio, mas de modo que não transpire a menor suspeita do que se trata.
Madre Paula ficou por alguns instantes pensativa.
— Chamava-se D. Carlota — disse — a mãe do padre Hilario?
— Chamava.
— É ella mesma quem se declara casada com Custodio de Jesus, no manuscripto que te veio ás mãos?
— É. E posto não diga claramente que as suas relações intimas com o padre Anselmo continuaram, bem o deixa perceber nas differentes passagens em que se refere ás supplicas que frequentemente lhe fazia para que a deixasse vêr e beijar o filho, seu unico amor, sua unica aspiração.
— De modo que — tornou ainda madre Paula — se Beatriz é filha de D. Carlota...
— Não haverá remedio senão impedir por todos os modos o casamento d'essas duas creanças, ainda mesmo que não tenhamos a certeza moral do impedimento dirimente.
— E teremos então que revelar a Paulo o segredo do seu nascimento?
— Não me parece que o devamos fazer emquanto não tivermos esgotado todos os outros meios ao nosso alcance.
— Paulo ama loucamente essa menina e é correspondido com igual vehemencia por parte d'ella... Creio bem que será empreza difficilima arrancar ao coração dos dois um sentimento que alli tem creado tão fundas raizes.
— Buscaremos convenientemente empregar os nossos esforços no sentido de suavisar o melhor que pudermos o golpe que talvez sejamos obrigados a vibrar-lhes... E se queres que te diga, minha querida, acho extemporaneas quaesquer considerações a esse respeito... Primeiramente, devemos informar-nos acerca da identidade d'esse Custodio de Jesus. Póde muito bem acontecer que, em vez de se tratar da pessoa que suspeitamos, se trate apenas de um homonymo do marido de D. Carlota.
— Tratarei de averiguar por alguma das serventuarias do convento.
— O que não convem — recommendou o padre Filipe — é que Paulo tenha conhecimento d'estas nossas indagações que não devem perder o caracter do mais intimo segredo...
— Descança, meu amigo. Paulo nada saberá.
N'essa mesma tarde, madre Paula chamou á sua cella uma das serventuarias do convento e incumbiu-a de averiguar e saber de certeza certa quem era Custodio de Jesus, que pessoas compunham a sua familia, qual o seu estado, e como se chamava a mãe de Beatriz.
— Quero saber isto com a maxima exactidão e a mais breve possivel — disse madre Paula.
— Isso é uma coisa que eu vou já tratar de saber... Alli perto tenho uma alminha do senhor, muito devota e que sabe a vida de toda a gente da vizinhança... Ella diz-me tudo assim que eu lá fôr...
— Veja lá, olhe que tenho o maximo interesse em saber tudo...
— Ó minha senhora! Fique vossa maternidade descançada que lhe trago aqui tudo sabidinho, sem faltar nada... Eu parece-me que essa familia não é lá de grande religião, porque não tenho ideia de a vêr muito pelas igrejas...
— Saiba se esse Custodio de Jesus é de Braga e se vive cá no Porto ha muito tempo.
— Sim, minha senhora.
— Saiba tambem se a mãe da menina que é filha d'elle, e que se chama Beatriz, tem o nome de D. Carlota...
— Sim minha senhora! Eu vou saber tudo isso...
Sahiu a serventuaria e duas horas depois regressava com tudo sabido.
— Já aqui estou de volta com tudo na ponta da lingua! — disse lépida a cuscuvilheira.
— Então, o que soube?
— O homem é de Braga, chama-se Custodio de Jesus e já cá está no Porto ha muitos annos. Empresta dinheiro sobre hybotécas e pelos modos leva coiro e cabello... Tem má fama, mas é home de dinheiro...
— E a familia?
— A familia é só elle e mais a filha e mais a creada — uma focinho de cão que primeiro que se lhe arrinque uma palavra do bucho é um dia de juizo!
— E a mulher? Elle não é casado?
— Já é viuvo duas vezes. A primeira mulher morreu-lhe ainda elle estava em Braga... Chamava-se D. Carlota e d'essa não teve filhos. A segunda chamava-se D. Anna, tinha vindo do Brazil com fama de trazer mundos e fundos, mas acho que eram mais as vozes do que as nozes...
— E o que foi feito d'essa mulher? Morreu tambem?
— Pois já se sabe! Morreu e elle fez-lhe um enterro muito rico...
— Então esta menina Beatriz é filha da segunda mulher, da tal snr.ª D. Anna?...
— É como diz, minha senhora! Ella é um palminho de cara muito bonito... E parece que não ha de ter mau interior; mas o pae, que é má farda, não a deixa pôr pé em ramo verde... Veja lá como aquella alminha ha de estar carregada de peccados!
— Tem vocemecê bem a certeza de que essa menina Beatriz é filha da segunda mulher do Custodio de Jesus?
— Então não tenho, minha senhora?! Aquillo foi chegar a casa d'aquella santa Maria do Rosario e ella contar-me tudo p-a-pá Santa Justa, nem que estivesse a lêr n'um livro aberto! E olhe que ella não me engana, porque quem lhe disse tudo, como era e como não era, foi a criada do seu préscurador chamado o snr. Mélchior, que é lá todo da casa do Custodio de Jesus e mais as senhoras d'elle, que são as que contam estas coisas todas diante da criada... Inda ella honte lá esteve, porque agora, pelos modos, vae lá um inferno em casa p'ra amôr do namorico — Credo! Santo nome de Jesus! — que a pequena traz com um estudante que se chama Paulo... E o pae quer mas é que ella case com oitro, que diz que é pôdre de rico.
— Está bem! — disse madre Paula.
— Veja lá a senhora as desgracias que vão por esse mundo, tudo causado pela falta de religião e temor de Deus!...
— Está bem! — repetiu madre-Paula, despedindo a devota onzeneira. — Vá na graça de Deus e escusa de dizer a alguem que eu a incumbi d'este serviço...
Quando o padre Filippe voltou ao outro dia, madre Paula disse jubilosa:
— Já sei tudo. O pae de Beatriz é o mesmo Custodio de Jesus, marido da D. Carlota do padre Anselmo... porém, esta pequena é filha do segundo matrimonio... A mãe era uma tal D. Anna, que tambem já morreu, pois que o Custodio de Jesus é viuvo duas vezes...
O padre Filippe, encarou, sorrindo, madre Paula:
— As tuas informações condizem perfeitamente com aquellas que eu pude obter...
— Ah! tambem indagaste?
— Tambem. Ha, porém, um ponto escuro que eu ainda não pude aclarar...
— Qual é?
— É que D. Carlota morreu ha dezoito annos, envenenada em Lisboa pelo padre Anselmo, e esta pequena Beatriz, se não tem mais, deve ter pelo menos uma idade que regula por esse tempo...
— D. Carlota morreu envenenada pelo padre Anselmo, dizes?
— Morreu.
— Como o sabes?
— Revelou-m'o a velha Maria do Carmo na hora extrema.
— De modo que essa desgraçada não chegou a vêr o filho?
— Não.
— E o padre Hilario, pela sua parte, se ainda é vivo, deve ignorar quem foi sua mãe?
— Decerto.
— Aquelle padre Anselmo era um sicario da peor especie! — disse ainda horrorisada a bella abbadessa.
— O padre Anselmo, que nós conhecemos, era um facinora como tantos outros que se acobertam com a religião santa do Crucificado... Ambicioso e profundamente perverso, tudo era capaz de sacrificar sem escrupulo á sua desmedida ambição...
— Envenenaria tambem a pobre Helena de Noronha? Quem sabe?
— Para isso, bastaria só que ella lhe fosse um leve estorvo na sua carreira de crimes...
— Não terias meio de indagar se ella ainda vive?
— Como? Se é hoje Provincial ou Assistente e usa de outro nome, como poderei descobrir-lhe o rasto? Mas nem isso agora nos serviria de nada. Paulo é para todos os effeitos nosso filho adoptivo. Desde qua tomamos sob a nossa protecção essa creança devemos proceder para com ella como se foramos seus unicos e verdadeiros paes... De que serviria sabermos que o padre Anselmo e a irmã Dorothea são ainda vivos? A mãe renegou-o ao nascer, e o pae nem talvez tivesse noticia do seu nascimento. Dizer ao filho o nome dos que lhe deram o sêr era ensinar a Paulo o nome dos que devia amaldiçoar... Não, minha amiga... Sejamos caridosos para com a pobre creança. Uma vez que não tem fundamento o nosso receio de que Beatriz seja irmã de Paulo, deixemol-os amarem-se e unirem-se livremente. Concorramos na medida das nossas forças para a sua união e que sejam felizes amando-se como nós nos temos amado sempre.
O padre Filippe, sempre de uma galanteria correcta a despeito da idade, sellou estas ultimas palavras com um delicado beijo na face de madre Paula, que, a sorrir, o estreitou com frenesi ao seio palpitante de alegria.
— Sempre o mesmo gentilissimo espirito! sempre o mesmo generoso e nobre coração! — disse ella commovida.
— Esse Custodio de Jesus — continuou o padre Filippe retomando a sua attitude grave — é, ao que me consta, um sordido usurario que sonha um casamento rico para a filha... Ha de ser difficil demovel-o d'este proposito, que seria desculpavel se elle não tivesse a certesa de que vae assim sacrificar o coração de duas pobres creanças.
— Talvez que tu, procurando-o, o pudesses convencer a dar o seu consentimento...
— Já me lembrou isso. Mas se elle alguma vez veio a ter conhecimento dos amores da sua primeira mulher com o padre Anselmo, a presença de um homem de sotaina não deve ser-lhe muito sympathica... E talvez mesmo que, em vez de o demover a favor de Paulo, isso o irrite e de cada vez mais o mantenha no proposito de contrariar o casamento...
Como respondendo a esta pergunta, ouviu-se fóra da porta da cella a voz de Paulo:
— Dá licença, minha mãe?
— Ah! és tu? Entra, entra, meu filho! — exclamou a abbadessa correndo ao seu encontro.
O mancebo beijou-lhe a mão com respeito filial, e vendo o padre Filippe dirigiu-se a elle, de braços abertos, dizendo com sincera alegria:
— Que felicidade! encontro-os a ambos reunidos quando tanto precisava de os consultar e pedir o seu conselho e o seu auxilio!
— Tu dirás, meu amigo, o que desejas — disse, bondoso, o padre Filippe — e se fôr, como creio, coisa compativel com as nossas forças, pódes dispôr de nós...
Paulo principiou dizendo:
— O que venho pedir-lhes é realmente um sacrificio... Mas sacrificio de que está dependente a minha vida, mais que a minha vida, toda a minha felicidade futura, e porisso espero bem que o não recusarão ao seu filho, a este filho que não conheceu nunca outros paes nem tem no coração logar para outro affecto igual...
— Falla, falla, meu Paulo! — animou com doçura a bondosa abbadessa.
— O caso é este — continuou o mancebo — Beatriz, de quem lhes tenho fallado, está em risco de ser victima de uma monstruosa infamia com a cumplicidade de seu proprio pae!
— O que! O que dizes tu, meu filho? — interrogou madre Paula.
— A verdade, minha mãe!
O padre Filippe silencioso, encarando fito o mancebo, parecia observal-o com attenção.
— Repara, meu amigo, que essas palavras envolvem uma accusação terrivel para o pae da tua amada, o que é sempre uma coisa grave e digna da maior censura, quando se não tem a certeza do que se affirma...
— Mas eu tenho a certeza! — protestou Paulo — E porque a tenho é que venho pedir-lhe o auxilio no sentido de obstar a que tal infamia se realise.
— Falla! — disse o padre Filippe.
O mancebo prosegniu:
— Custodio de Jesus, o pae de Beatriz, depois de ter inutilmente envidado todos os esforços para coagir a filha a casar com um tal Eugenio de Mello, que se diz um rico proprietario do Alemtejo, resolveu, de combinação com o pretendente e com o procurador Belchior, que tem sido o agente d'esta ignobil negociata, proteger o rapto da propria filha, com o fim de, por este meio, a violentar a acceitar o noivo que se lhe impõe e que ficará sendo o unico que em taes condições não duvide recebel-a por esposa.
— Isso é impossivel, Paulo! — bradou madre Paula, indignada — Não ha um pae que pense em realisar uma tal monstruosidade! Tu és por força victima de um engano, talvez de um cruel gracejo de alguem que deseja vêr até que ponto vae a tua cegueira por essa menina, que não te recusas a acceitar invenções de tal ordem!
— Não, minha mãe! — volveu Paulo — O que lhe digo é absolutamente certo e vae realisar-se, se eu o não impedir como me cumpre. Um amigo intimo de Eugenio de Mello e que com este deve tomar parte na miseravel aventura foi quem o declarou diante de mim.
— É o que eu digo! gracejo de rapazes.
— Não é gracejo como suppõe, minha mãe. Quem isto revelou fel-o em taes circumstancias que não podia nem lhe era permittido gracejar. O rapto está combinado e deve effectuar-se amanhã, durante um passeio ao campo que as duas familias — a do Belchior e a de Beatriz — teem preparado.
— E Beatriz sabe a infame cilada que lhe querem armar?
— Beatriz nada sabe, nem eu tenciono prevenil-a.
— O que tencionas então fazer? — perguntou o padre Filippe.
— Castigar o miseravel pae que assim malbarata a honra da propria filha n'um trafico infame, aproveitando-me das circumstancias por elle preparadas, para lh'a raptar eu.
— Tu?!
— E porque não? Se ella me ama e eu a adoro e a quero para minha mulher, heide deixar que m'a roubem e levantem entre mim e ella uma barreira impossivel de transpor — a barreira da deshonra? Tenho tudo prevenido e tudo preparado para arredar sem escandalo, e até sem suspeita do que vae passar-se, os raptores de Beatriz, e tomar eu e um outro meu amigo o seu logar. Falta-me apenas uma coisa.
— O que é? — interrogou madre Paula.
— A salvaguarda de uma mulher honesta para garantir a reputação de Beatriz que eu não quero vêr maculada, com a sombra de uma suspeita, antes de a receber por esposa perante o altar do Deus Vivo.
O padre Filippe e madre Paula trocaram um rapido olhar.
Se o mancebo pudesse conhecer o segredo da sua origem e saber a quem devia a vida, teria traduzido n'esse olhar esta phrase que estava no pensamento dos dois:
— «Não parece filho do padre Anselmo!»
— Desejas então...? — interrogou madre Paula dirigindo-se ao mancebo.
— Que minha bôa mãe, de cuja virtude ninguem ousará suspeitar, se digne receber a minha noiva em sua companhia durante todo o tempo que ella seja forçada a conservar-se occulta...
— Queres trazel-a para aqui, Paulo? Isso, meu filho, é um passo muito grave, que póde pôr em risco a bôa ordem e segurança d'esta santa casa... Imagina que as auctoridades são obrigadas a intervir, e por qualquer circumstancia descobrem aqui essa menina, que, de mais a mais, não consultaste ainda sobre se consente em acolher-se á nossa protecção?
— É tal a confiança que tenho no amôr de Beatriz, minha mãe, que não duvido asseverar que ella dará por bem feito tudo quanto eu haja deliberado, logo que conheça os motivos que me obrigaram a raptal-a...
O padre Filippe, que durante esta conversação guardára absoluto silencio, resolveu-se afinal a intervir.
— Parece-me que tudo se póde conciliar muito bem — disse elle. Paulo deseja salvaguardar a reputação da sua noiva, o que é de todo ponto justo e nobre. Para isso, pois, pede o concurso de sua mãe adoptiva, porque sob a égide da virtude da madre Paula, ninguem se atreverá a julgar menos licitos os intuitos d'este rapto. Portanto, madre Paula deve intervir com a sua presença, porque é um acto de verdadeira caridade evangelica o que se lhe pede. Mas surge uma difficuldade, que é o poder comprometter por esta fórma os interesses d'esta santa casa, se a trouxer para aqui...
— É justamente esse o inconveniente que já apontei — interrompeu a abbadessa.
O padre Filippe fez um gesto e proseguiu:
— Ha, porem, um meio, que me parece rasoavel, de obviar a esse inconveniente...
— Qual?
— Paulo buscará uma casa profana para onde conduzirá a sua noiva; e ahi, madre Paula, vestindo trajos seculares, receberá a pobre menina e conserval-a-ha em sua companhia durante os primeiros dias. Se depois de Beatriz conhecer do que se trata, manifestar desejos de acompanhar madre Paula para esta santa casa, poderemos então, com as devidas cautelas e resguardos, internal-a aqui até que as circumstancias lhe permittam legalisar a sua união com Paulo. Não acha acceitavel este alvitre, minha amiga? — concluiu interrogando a abbadessa.
— As opiniões do padre Filippe teem para mim o valor de leis indiscutiveis. Far-se-ha como diz, concordou madre Paula.
Paulo abraçou n'uma expansão de reconhecimento o padre Filippe.
— Sempre generoso e bom para mim! disse o mancebo com as lagrimas nos olhos.
— Vamos, vamos! — replicou o padre Filippe commovido, procurando furtar-se ás demonstrações de reconhecimento do pobre rapaz — Trata de procurar uma casa em condições de abrigar por alguns dias tua mãe adoptiva e a tua noiva. Os meus recursos são minguados — concluiu — Sou um pobre sacerdote que fez eterno voto de pobreza... de pouco posso dispôr... Mas até onde as minhas magras economias o permittam, tudo está á tua disposição, porque tudo é teu, meu Paulo.
— Oh, meu pae!
— Essa menina deve ser tratada com a decencia e conforto a que certamente esta habituada...
— Eu tenho amigos, meu pae! — affirmou Jorge.
— Os teus primeiros amigos somo nós, eu e madre Paula. Não tens, pois, o direito de recorrer ao auxilio monetario dos segundos emquanto existirem os primeiros. A minha casa irás buscar todo o dinheiro de que careceres. Vê bem a casa que escolhes para receberes n'ella a tua familia.
— Tenho um amigo, quasi um irmão, que não só me acompanha e auxilia na aventura do rapto, como põe á minha disposição a sua casa, onde não tem mais familia e onde nada falta.
— Muito bem. Se entendes que ahi pódem acolher-se sem perigo, deves acceitar.
— Já acceitei, meu pae!
O leitor já conhece como o rapto se effectuou e como madre Paula recebeu com os extremos e carinhos de mãe a gentil Beatriz, salva das garras do aventureiro Eugenio de Mello e da sua alma negra, o procurador Belchior, por maneira tão original como inesperada.
Agora, emquanto a pobre menina, livre de perigo, encontra na doce convivencia da abbadessa os affectos maternaes que a morte lhe roubára e os tres sujos heroes d'esta repellentissima, porém veridica, historia se empenham n'uma lucta de desconfianças e malquerenças, que são o seu verdadeiro castigo, voltemos a S. Martinho do Campo, onde novos e interessantes episodios se estão dando.