No dia seguinte, muito cêdo ainda, Helena de Noronha que passára a noite socegada, accordou inquieta e perguntou á creada se já tinha chegado uma senhora que devia vir do Porto.
— Não sei, minha senhora — respondeu a creada que estava já prevenida — mas eu hei-de dizer que senti ha pouco parar um trem ao portão...
— Oh! vá saber sem demora — pediu Helena — e se fôr a pessoa que eu espero, diga a sua ama que lhe peço para a fazer entrar aqui o mais depressa possivel...
A creada subiu a cumprir a ordem recebida. Pouco depois entrava a dona da casa.
— Veio? — perguntou-lhe Helena.
— Dá-me alviçaras, minha amiga — disse D. Aurelia alegremente — porque, contra a tua espectativa, madre Paula está n'esta tua casa!
Helena levantou-se a meio no leito.
— Por Deus, minha filha, diz-lhe que entre... que entre já!
Madre Paula, que ficára occulta com o reposteiro, penetrou de um salto no aposento, dizendo:
— Não é preciso, minha querida Helena, não é preciso, porque a tua amiga está aqui!
— Paula! — exclamou Helena, estendendo para ella os braços, n'um alvoroço de indizivel contentamento.
Estiveram assim as duas amigas por muito tempo abraçadas, n'um silencio apenas cortado pelos soluços que se escapavam do peito de ambas.
D. Aurelia assistia commovida a esta scena de uma terrivel eloquencia na mudez d'aquellas lagrimas que ambas vertiam ao abraçarem-se.
Por fim, foi Helena quem rompeu o silencio, exclamando:
— Vieste ver-me, minha amiga... Bem hajas pela caridade com que attendeste o meu pedido!
— Minha pobre Helena! — respondeu madre Paula — quantas vezes me tens lembrado nos longos dezesseis annos da tua ausencia! Procurei por mil modos saber noticias tuas... Tudo inutil!... Ninguem me dava relação de ti, ninguem te conhecia, ninguem sabia para onde tinhas partido...
— Fiz uma viagem muito longa, minha amiga... tão longa que só devia terminar no começo desta outra viagem mais longa ainda, que vou emprehender...
— O que! pois não ficas ainda aqui? Tencionas partir outra vez? — perguntou madre Paula admirada.
— Sim... vou partir e d'esta vez para nunca mais voltar... Vou emprehender a eterna viagem do sepulchro... Por isso te pedi que viesses...
— Morrer! — exclamou a abbadessa — que extranha fraqueza é essa? A vida chama-te ainda, minha querida... Tu és nova, és forte, és ainda uma mulher valida, tens um espirito são, uma alma extraordinariamente bella... Chama a ti todas as energias, reage contra os soffrimentos, oppõe ás violencias da dôr que te avassala, a força suprema da tua vontade e triumpha do abatimento physico pela energia moral.
Helena tornou a sorrir o sorriso triste dos que não se illudem na approximação do seu fim.
— Tu é que estás ainda a mesma, minha querida! — disse ella. — Não parece que passaram por ti dezesseis annos desde que nos separámos...
— Os meus cabellos branquearam um pouco, porque ninguem resiste impunemente á acção do tempo — replicou madre Paula — mas, comquanto um pouco mais velha que tu, não penso ainda na morte...
D. Aurelia, sentindo-se de mais n'aquelle colloquio entre as duas amigas, que certamente tinham mais importantes assumptos a tratar, interveio pedindo que a dispensassem por um instante, pois tinha que ordenar serviços domesticos da maior urgencia.
— Espera! — replicou Helena — deixa-me primeiro dizer á minha Paula quem tu és...
— Não é preciso — accudiu D. Aurelia com meiguice — já nos conhecemos desde hontem á noite...
— Sim — confirmou madre Paula — já devo a esta senhora a mais amavel e gentil hospitalidade que ha muitos annos me foi dado receber fóra do meu convento...
— Pois tu já cá estás desde hontem? — perguntou Helena admirada.
— Vim acompanhada pelo portador da tua carta e pelo reverendo padre Filipe, de quem certamente ainda te recordas...
— Oh, decerto, decerto! E como são gratas as lembranças que conservo d'esse honesto e digno sacerdote! Porque não veio elle ver-me tambem?
— Temos tempo, minha querida — disse madre Paula — Uma das principaes virtudes christãs é a paciencia... E o padre Filippe, que é, como acabaste de dizer, um honesto e digno sacerdote, exercita esta virtude como poucos... Elle espera, e é dos que sabem esperar...
Logo que D. Aurelia sahiu, madre Paula encarou fito Helena de Noronha e perguntou-lhe em voz sumida, n'um tom de mysterio:
— E o padre Anselmo?
— Matei-o!
— O que! — disse a religiosa empallidecendo — Mataste-o... quando?
— Ha desesseis annos, no dia em que deixei de ser superiora da casa conventual da Covilhã...
— É extraordinario! E como pudeste...?
— O miseravel, de quem eu tinha jurado vingança, não soube, no meio de toda a sua perversa astucia, desconfiar da apparente submissão da mulher que tão infamemente havia ludibriado e escarnecido... Julgou-se inteiramente senhor de mim e veio elle mesmo procurar a occultas o castigo que a sua torpeza e maldade mereciam...
— E o outro... o filho d'elle... o padre Hilario?
— Foi meu cumplice. Elle mesmo ajudou a crucificar o pae no subterraneo do convento. Oh! foi uma vingança terrivel, e esse dia, minha querida Paula, foi o mais bello e o mais feliz de toda a minha vida, desde que abandonei a casa de meu pae... de meu pobre pae que ingratamente condemnei á morte!
Os olhos de Helena de Noronha coruscavam ainda de furor satanico, ao recordar aquelle lance supremo em que havia dado morte horrivel ao jesuita que a perdera.
Madre Paula, tomada de pavor, encarava Helena de Noronha, mal podendo acreditar no que ouvia.
Fez-se um curto silencio em que os olhos das duas exprimiam um mundo de pensamentos.
— Sim... — disse Helena de Noronha como respondendo á pergunta muda que lhe dirigia a sua amiga — o padre Hilario foi, por assim dizer, o executor da sentença de morte a que eu havia condemnado o pae... E era preciso que assim succedesse para que a minha vingança fosse completa...
— Mas não sabia elle os laços de sangue que o prendiam a esse miseravel?
— Não o sabia; mas, ao expirar, o padre Anselmo patenteou-lhe toda a verdade do alto da cruz onde agonisava, amarrado como o mau ladrão. Disse-lh'o por entre maldições e injurias, e a voz do sangue não fallou no meu cumplice. Assistiu impassivel á agonia do pae, que elle immolava á minha vingança e sacrificava ao seu amor por mim... Oh! foi uma boa hora aquella, minha amiga! E se eu alguma vez pude crêr em Deus, foi justamente n'esse instante em que o maior dos criminosos expiava com a maior das agonias todo o seu passado de negras infamias!
E contou então como o padre Anselmo, apparecendo-lhe mysteriosamente no convento da Covilhã, desceu á cripta, no intuito, dizia elle, de orar aos pés da cruz, onde devia ser crucificado... Relembrou com infernal prazer todas as minucias d'essa scena horrivel; a maneira como, acompanhada do padre Hilario, o seguiu ao subterraneo e como, quando elle vinha sahindo, depois de ter feito ouvir por largo tempo o ruido surdo de quem cavava, o proprio filho, com um vigoroso murro, o fez cahir no meio do subterraneo, fechando-lhe a porta pelo lado de fóra... Depois, os tres dias de agonia lenta, torturado pela fome e pela sêde, todas as peripecias terriveis d'esse drama sombrio de vingança e de sangue, que teve a sua acção no medonho in-pace da Covilhã.
Madre Paula ouviu attonita toda esta narrativa, chegando por vezes a suspeitar que Helena de Noronha, tomada de loucura, estivesse phantasiando uma vingança que não realisára.
— E o padre Hilario? — perguntou por fim.
— Pobre rapaz! Nunca mais o tornei a vêr... O pensamento que nos uniu foi o mesmo que devia separar-nos e... separou-nos.
— Accusou-te depois, lançando sobre ti as culpas do remorso que o torturava?
— Oh, não! Eu poupei-lhe a desgraça do remorso, semeando-lhe no coração o odio por mim...
A abbadessa, de cada vez comprehendendo menos o sentido das palavras de Helena de Noronha, atreveu-se a inquirir:
— Trahiste o teu novo amante?...
— Meu amante! Nunca o foi. Trahi o cumplice, isso sim... Utilisei o instrumento da minha vingança emquanto o necessitava e arremesseio-o para longe de mim quando já me não era preciso... O padre Hilario amava-me... dizia elle que me amava.. Porém, eu não poderia vêr nunca n'esse homem senão o filho do padre Anselmo... Logo depois que a minha vingança estava cumprida, tratei de me affastar d'elle...
— Como?
— Enganando-o como o pae me enganou a mim. Disse-lhe que para não levantar suspeitas, era conveniente que ambos seguissemos por differente caminho para o mesmo ponto onde deviamos encontrar-nos.
Esse ponto era uma terra do estrangeiro, onde passariamos por marido e mulher, vivendo de algum dinheiro que eu tinha amealhado, emquanto não pudessemos voltar ao paiz, depois de obtida a certeza de que o nosso crime não havia sido descoberto. Elle tudo acreditou e, obcecado pela paixão, não duvidou um momento de que eu fosse reunir-me a elle. Partiu por um caminho, eu parti por outro, e até hoje nunca mais nos tornámos a vêr...
— De modo que...
— De modo que o meu cumplice, ao reconhecer-se ludibriado, deve ter sentido mudar-se lhe todo o amor que nutria por mim n'um odio profundo.
Madre Paula, profundamente impressionada com estas revelações, quasi não atinava com palavras que dissesse.
Parecia-lhe impossivel que aquella mulher fraca e ingenua, que ella recebera na casa das Sereias, pudesse vir a triumphar da maldade perversa do padre Anselmo, da sua astucia e systemathica desconfiança de tudo e de todos, tirando d'elle uma vingança atroz, que os mais poderosos agentes da Companhia não ousariam sequer sonhar.
— O que me contas é por tal modo extraordinario, minha querida Helena — disse ella, passados instantes — que me deixa muda de assombro! Se o não ouvisse de teus proprios labios, recusar-me-hia a acredital-o...
— Oh! minha boa Paula! — replicou Helena, ainda tremendo de ira — pois acaso não teria eu razão para muito mais? Não foi aquelle maldito a ruina, a miseria e a morte de toda a minha familia? Não abusou elle da minha innocencia e ingenuidade de creança para me aviltar, roubar e perder, fazendo de mim sua barregã e sua escrava? poderia eu perdoar ao maldito que tão infamemente lançou a desgraça e a deshonra sobre mim e sobre os meus?
— Tens razão. Mas não é a justiça da tua vingança que me surprehende...
— O que é que te surprehende, pois?
— Surprehende-me a habilidade e a coragem com que pudeste levar a cabo o teu plano...
— Auxiliou-me o acaso, se não foi antes um designio da propria Providencia que inspirou ao padre Anselmo a ideia de mandar o filho para junto de mim...
— Nunca mais ouvi fallar do padre Hilario... Naturalmente abandonou a Companhia.
— Era essa a sua resolução inabalavel quando nos separámos... Eu não sahi do paiz, como lhe prometti, e passei uma grande parte d'estes dezeseis annos perdida e obscura pelas terras de provincia, exercendo mysteres humildes, improprios da minha educação... Sujeitei-me a tudo, minha querida... Fui creada de quarto, fui costureira, fui creada de meninos, e confesso que me era menos amargo o pão em casa de meus amos do que n'esse antro maldito onde, por tua commiseração, fui elevada á dignidade de abbadessa! Abbadessa! que irrisoria e infame impostura, minha amiga!...
— Helena — disse madre Paula — pareceu-te assim porque não amaste... Se tivesses amado o padre Hilario como eu amei o padre Filippe...
— Oh! não! eu não podia amar a sotaina desde que a sotaina me havia ludibriado e escarnecido. No meu coração só havia odio por essa infame instituição que alberga no seu seio facinoras preversos da laia do padre Anselmo e vive da exploração cruel das suas victimas.
— E não tens, já não digo remorso, mas ao menos pezar, de haveres sacrificado ao teu odio e á tua vingança esse pobre rapaz que te amava e que pelo teu amor se fez parricida?
— Era filho d'elle. E o meu odio implacavel vae de paes a filhos... Elle proprio devia ser um monstro como seu pae..
— Todavia, minha querida... ha inda um filho do padre Anselmo que em nada o parece... nem na figura, nem no coração. É nobre, é digno, é honesto, é leal, é amoravel e trabalhador...
— Fallas de...?
— De teu filho, Helena de Noronha!
— Elle vive ainda?
— Vive e é um bello e gentil rapaz...
— Padre tambem?
— Não. É um academico distincto e espero que ha de ser um homem util a si e aos seus semelhantes, honrando a sciencia e a humanidade. Eu e o padre Filippe temol-o educado sob o influxo das doutrinas liberaes, longe de nós e estranho aos funestos exemplos da falsa religião que nos victimou.
— Não te conhece então?
— Conhece. E ama-me e respeita-me com um carinho e uma ternura que faz honra aos nobres sentimentos da sua alma.
— Sabe esse rapaz quem foram seus paes?
— Ignora-o inteiramente, comquanto use o teu appellido, Helena de Noronha.
— O que! pois tu... — ia a dizer Helena, levantando-se a meio no leito.
— Sim — atalhou madre Paula — quiz que se chamasse Paulo de Noronha, afim de que sua mãe um dia pudesse reconhecel-o e amal-o.
— Oh! nunca... nunca!
— Helena! — tornou madre Paula com severo aspecto — o odio que se estende ate aos proprios filhos das nossas entranhas é perversidade que repugna á razão e de que nem as bestas feras, na crueza de seus instinctos, jámais nos deram exemplo. Vê tu, minha amiga, que nem o padre Anselmo, esse cynico perverso, de uma ferocidade de chacal, pôde resistir ao amoravel sentimento que Deus poz no coração dos paes pelos filhos. E quererás tu cerrar teu peito ao affecto mais nobre e mais santo que póde caber no coração de uma mulher? Quererás morrer amaldiçoando teu filho innocente e deixar que elle viva sentindo n'alma o gelo da indifferença e do abandono de seus paes? Que triste herança lhe queres legar, minha amiga! E comtudo, Paulo é digno de que o amem porque nas nobres qualidades de seu caracter, na sua figura varonil e no porte altivo, reflecte bem a figura e as nobres qualidades d'esse santo e desditoso homem que foi teu pae.
— Meu pae! — gritou Helena de Noronha — Paulo parece-se com elle? Não tem na physionomia os traços odiosos de monstro que lhe deu o ser?
— Queres vêl-o? — perguntou madre Paula.
— Não, não! — recusou Helena tomada de subito terror — Para que has de pôr-me diante dos olhos, na hora extrema, um filho que eu não posso amar, uma creatura que ha de ser-me sempre odiosa pela recordação dos negros crimes que lhe andam ligados? Oh! deixa-me morrer, minha amiga, no esquecimento d'um dever que eu não tenho forças para cumprir...
Calou-se offegante. E depois, como fallando comsigo mesma:
— E como poderia eu dizer a esse rapaz: «Sou tua mãe!» sem ter que lhe confessar a minha miseria e a minha vergonha? Perguntar-me-ia o nome de seu pae... e eu teria que me calar vexada diante de meu filho para lhe não dizer: «Teu pae era o padre Anselmo, um monstro com figura humana... Ladrão e assassino da mais infima especie... Um miseravel sacrilego que tôrpemente entenebreceu a minha razão e abusou da religião de Christo para nos condemnar, a mim e a ti, a uma deshonra eterna!» Oh! não... não! prefiro morrer sem passar por mais esse doloroso transe, consolada com a certeza de que elle ignorará o nome da desgraçada que foi sua mãe!
— Socega, minha querida! — tornou-lhe madre Paula suavemente — O que eu te proponho não é bem isso que tu suppões...
— O que me propões então?
— Trazel-o até junto de ti para que o vejas e ouças e possas certificar-te pelo testemunho dos teus proprios sentidos, de que esse encantador rapaz, bem longe de reproduzir as feições repellentes do padre Anselmo, é o vivo retrato do teu pae, de quem parece ter herdado as santas virtudes e os nobres sentimentos. Em vez de ser para ti uma tortura, a sua presença ser-te-hia um dôce allivio e uma grande consolação. Crê, se eu fosse mãe de Paulo, sentir-me-hia orgulhosa e feliz da minha maternidade.
— E não corarias, ao menos de pejo, ao teres de lhe confessar a serie de monstruosas torpezas que deram origem ao seu nascimento, Paula?
— Não me apresentaria como sua mãe... exactamente como eu te proponho que o faças... A felicidade seria toda tua em poderes vêl-o junto do teu leito, sabendo que é teu filho e ignorando elle que sejas sua mãe...
— E a que titulo viria elle aqui, se a verdade não tivesse de lhe ser dita? Não... não! De que serviria isso? Sou pobre... nada tenho que lhe legar... Os bens que me pertenciam roubou-m'os o pae bem o sabes...
— Filha! é impossivel que no fundo do teu coração não esteja o sentimento mais sublime que póde nascer em peito de mulher — o sentimento do amor maternal. Tu, que eu conheci tão candida, tão amoravel e doce, tu que tiveste affectos para mim e para a pequena Lucilia, terás um coração insensivel á lembrança de teu pobre e innocente filho? Vamos! não me recuses a consolação de vêr que testemunhaste, ao menos secretamente e por alguns instantes, toda a grandeza da minha obra de dedicação e ternura. Puzeste nos meus braços um pequeno sêr, debil e fragil. Restituo-te um moço util, uma alma d'eleição.
Paulo, se eu o mandar chamar, virá immediatamente. Ama-me como filho e não estranhará que eu deseje tel-o junto de mim por alguns dias... Queres vêr o teu filho, ao menos por curiosidade? Admira o teu filho, Helena de Noronha e alegra-te com a ideia de que as virtudes da tua raça viverão n'elle com a mesma intensidade com que brilharam em teu pobre pae.
Helena guardou silencio.
— Pois bem — disse ella passados instantes — deixa-me recobrar alentos... e sobretudo deixa-me familiarisar com a ideia de que hei-de vêr n'esse rapaz sómente o meu filho e não o filho do padre Anselmo. Que tempo tencionas demorar-te aqui, minha amiga?
— Todo o que tu julgares preciso para a tua convalescença...
Helena teve um sorriso estranho.
— Pois sim... Convalescerei breve... — disse n'um tom cuja sinistra significação não escapou a madre Paula.
A freira atalhou:
— É porisso que eu queria que visses teu filho, Helena. Talvez que, conhecendo-o, sentisses acordarem em ti todos os ternos affectos que nos prendem á vida. O mundo, hoje, para ti é um deserto. Morres no isolamento e no abandono do coração... Nada ha que te estimule o desejo de viver, e consideras a morte como um beneficio. Mas se tivesses a tua existencia ligada a outra existencia, se te sentisses viver na vida de teu filho, então, minha querida amiga, terias triumphado da morte, justamente porque a vida te offereceria encantos.
— Ah! minha pobre Paula! comprehendes acaso que um risonho dia de primavera possa reverdecer a arvore a que destruiram as raizes e que, sêcca, perdeu a seiva e se despiu da folhagem? Eu sou uma arvore morta, minha amiga! Perdida a seiva da juventude, desfolhadas as minhas illusões e as minhas esperanças pelo rijo vendaval da desgraça, não ha mais para mim no mundo possibilidade de existencia tranquilla e socegada. Oh! agora só peço o esquecimento e a morte como suprema esmola da Providencia. Perdida a innocencia e as santas crenças da minha alma ingenua, vivi para a vingança. Realisada esta como um justo castigo de que fui providencial instrumento, restava-me viver para a expiação de minhas culpas... Expiei-as em 16 annos de servidão, de humilhações e de miserias de toda a ordem. Soffri o frio, a fome, as dôres da alma e do corpo, com a resignação do condemnado que caminha para o patibulo, conscio da sua libertação pela morte. Remorsos de haver suppliciado o infame que me perdeu, nunca eu os tive nem podia ter. Mas a dôr horrivel de haver causado a morte a meu pae e a meu primo... Oh! essa nunca me abandonou, e tanto bastava para que eu anceasse morrer, como o supremo bem a que podia aspirar... Chamei-te porque precisava rehabilitar-me no teu conceito... precisava que, ao lembrares-te de mim, não assomasse aos teus labios um sorriso de desprezo e me julgasses egual ás outras...
— Helena, minha amiga, minha irmã... não sejas injusta para commigo! Eu sabia que a tua grande alma era capaz de amar como era capaz de aborrecer... A vingança que tiraste do padre Anselmo foi justa e foi nobre. Libertaste a humanidade de um facinora que a envergonhava... Dou-te por isso sinceros louvores. Mais fraca do que tu, eu não ousei pensar sequer em tirar igual desforço d'aquelle que me condemnou a esta eterna servidão em que vivo... E não pensei, porque o meu coração deixou-se illaquear nas redes de um affecto vivissimo qual é o que tributo ao padre Filippe, tu bem o sabes. Tu mais infeliz do que eu, não amaste... Porisso, o fel do teu odio se converteu em veneno mortal para aquelle que te perdeu...
— Não amei, dizes? Amei, sim... amei um homem que teria feito de mim a mais venturosa das mulheres se, na hora em que o encontrei, eu não fosse já indigna da estima de um homem de bem.
— Fallas de Julio de Montarroyo?
— Fallo, sim, Paula! Amei-o com todas as véras da minh'alma. Amei-o e fugi-lhe para não soffrer a horrivel dôr de me ver depresada por elle!
— Tornaste alguma vez a ter noticias suas?
— Nunca mais. Recuperada a minha liberdade com a morte do padre Anselmo e separada do meu cumplice, cuja presença me seria horrorosamente insupportavel, considerei-me morta pela segunda vez. Nem Helena de Noronha nem irmã Dorothea deviam existir jámais... Portanto, a minha nova existencia passou a ser outra bem differente das duas primeiras... Na misera e obscura condição social a que desci, ninguem, nem mesmo tu, minha amiga, terias adivinhado sequer, quanto mais reconhecido, a filha de Norberto de Noronha ou a superiora da casa conventual da Covilhã...
Calou-se offegante e exhausta.
— Comtudo... — proseguiu passados instantes — comtudo eu poderia ter trazido do subterraneo da Covilhã uma grande riqueza... e não a trouxe...
— Uma grande riqueza, dizes?
— Sim... O padre Anselmo appareceu-me inesperadamente no convento uma noite, exigindo que a sua chegada não fosse conhecida de pessoa alguma... Elle disse-me que tinha de descer ao subterraneo, no cumprimento sagrado de uma promessa que fizera para que eu correspondesse dignamente aos pezados e espinhosos encargos do logar para que me nomeara. E realmente, na noite seguinte — a noite da rigorosa justiça — elle, persuadido de que ninguem o observava desceu ao in-pace... Mas lá, com a porta fechada á chave por dentro em vez de rezar aos pés da cruz, como promettera, cavou na terra por muito tempo... Ouvimos-lhe cá fóra o bater da enxada no solo recalcado... Tive a suspeita de que alguma coisa importante elle ia esconder alli... E essa suspeita converteu-se em certeza, quando do alto da cruz a que o amarraramos, vociferando maldições e insultos sobre mim e sobre o filho parricida, declarou n'um accesso de furor que possuia riquezas immensas que tencionava legar ao filho maldito, mas que lhe permaneceriam vedadas porque o seu thesouro ninguem o descobriria...
Madre Paula ouvia com singular attenção esta parte da narrativa de Helena...
— Talvez isso não passasse de uma allucinação dos ultimos momentos... — disse ella.
— Não... O padre Anselmo tinha ido alli enterrar o seu thesouro, estou bem certa d'isso... Ao expirar, olhou para o lado direito da cruz e o olhar baço, de moribundo, perdeu-se-lhe no canto mais escuro e mais sombrio do subterraneo... Se algum dia lá fôres... manda cavar alli... manda revolver toda aquella terra e encontrarás, estou bem certa, o producto de tantos crimes accumulados d'aquelle sicario maldito que o inferno confunda!
— E o padre Hilario não manifestou desejo de se apoderar do thesouro do pae?
— O padre Hilario, esse comprehendes bem... n'aquelle momento, obcecado pelo amor e pelo ciume, não via nem comprehendia outra coisa que não fosse a posse da mulher por quem enlouquecera e se tornára parricida... Deixou o convento no mesmo dia em que eu o deixei, precedendo-me algumas horas na partida, convencido de que eu iria reunir-me a elle... E nunca mais... oh, nunca mais voltou á Covilhã, estou bem certa d'isso... Depois de se vêr ludibriado por mim, a recordação do seu crime deve ter-se-lhe tornado bem negra! O proprio remorso o deve ter afugentado de lá...
— E viverá ainda?
— Não sei... Se o remorso matasse, elle deveria ter morrido. Mas o remorso é um veneno que vae minando lentamente a existencia. Tortura, mas não fulmina, as suas victimas. Elle matou o pae, é bem certo. Mas tambem eu matei o meu e não morri... Não morri, quando tantas vezes pedia a morte a Deus! Deve portanto viver.
— Socega, minha amiga... — observou-lhe madre Paula, vendo-a de cada vez mais agitada. — Tens fallado muito... e, no estado de abatimento e fraqueza em que te encontras, é isso uma imprudencia grave.
Disse e saiu deixando a doente em repouso.