10 de dezembro de 1891
Setúbal é, como naturalmente sabem, uma cidade pequena, na margem do Sado, vivendo magramente de banhistas e fábricas de sardinha. Tem quatro velhas paróquias, de roda de cujas igrejas se enroscam vielas nauseabundas, dois conventos ou três, sem maior importância arqueológica – exceção feita ao de Jesus, de que falarei depois com mais vagar – e como obras modernas, uma extensa avenida marginal sem terraplenos de cais ocultando a imundície da praia coberta de dejetos, alguns desmazelados jardins impasseáveis, e uma estátua a Bocage, vestida de criado d'ópera, defronte dum portal gótico e ao pé dum chafariz seco. Na varruscadela à pressa das ruas, na brunidura módica de certas casitas novas, na ornamentação dos passeios e alamedas suburbanas, uma pelintrice salta, de cidade que se acapitala, sem estipêndios fixos, particulares ou municipais, e a quem a necessidade da clientela banhista impõe, no verão, despesas, cujos frutos a penúria do inverno inutiliza.
Nos bairros velhos, como as construções são primitivas, nulo o conforto, a higiene um mero acinte, acontece que a podridão dos lares corre nas ruas, descoberta, em jorros negros, cujo fartum humano se intromete ao do peixe podre, e ao dos monturos acogulados pelos cantos. Esta povoação de meias sujas, velha e mesquinha, espécie de Ribeira Velha complicada de Alfama e Cruzes da Sé, alastra-se à beira-rio num leque branco, circuntornado de pomares e d'arvoredos, para além de cuja fímbria se alteia depois um aro de serras magníficas, com tiaras de rochas e pinhais.
Estes pomares, laranjais na maior parte, que a epidemia arrasou em alguns anos de devastações não combatidas, foram por muito tempo em Portugal um oásis raro, tornando o vale de Setúbal numa corbeille-caçoila, reconstruída sobre desenhos do Éden, e a que parecia estar de guarda, Palmela, a prumo na serra, crenelada e estupenda, com o seu formidável ar de ninho de dragões. A laranjeira morta, as vinhas filoxeradas, outras frondes cobriram a argila riquíssima das veigas, árvores novas supriram, nos regadios das quintas, os cadáveres das antigas, e o pinheiral desceu até dos píncaros, a povoar as calvas que os agricultores não replantavam. De sorte que o forasteiro sincero, depois que passeado na cidade, se vai desinfetar do seu mau cheiro aos campos, ao surpreender o contraste da obra de Deus com a dos homens, a primeira oração que faz é pedir aos céus o terremoto, agora que o Marquês de Pombal já cá não volta, com um indulto para o convento de Jesus, para os Castelos de S. Filipe da Serra e S. Tiago d'Outão, para os portais da igreja do Sapal, e algumas miudezas mais de que este exíguo roteiro não dá conselho.
Foi o que eu fiz em toda a consciência, depois de um dia de passeios no Bonfim e gasosas no Lapido, vendo as sécias alentejanas, com colares de varina, pavonear modas confecionadas nos ateliers da rua do João Galo e beco das Donzelas, sobre fazendas de quatrocentos e quarenta o metro, entrando as guarnições.
Fui-me pr'ós campos, e como tinha os ouvidos cheios de sumptuosidades reais da torre d'Outão, tomei um carro e diz-me transportar té lá, no decidido propósito de um inquérito formal sobre as quantias e luxo esparso naquele tronício estábulo de Verão.
Há um macadame de via larga, entre a cidade e o castelo, à beira-rio (a famosa estrada de cinquenta contos o quilómetro, feita em três meses, a tiros na rocha c'os britadores suspensos de cordas, a medonhas alturas sobre o rio), e assim o percurso antigo se abrevia, por maneiras de pôr Outão num arrabalde quase da cidade. Apenas transposta a casaria do arrabalde, a poente, e os pomares e jardins da casa O'Neill, começa uma rampa leve a nos fazer subir os planaltos primeiros da riba-Sado. À esquerda o rio alarga-se; pela direita, montes cavalgando, vinhedos, árvores, moinhos: e para trás Setúbal, e S. Filipe a cavaleiro. Gibóia a estrada em sucessivos ziguezagues, sem afastar-se d'água um só momento, trepando sempre, de sorte que a paisagem desfrutada, da Toca do Pai Lopes à Comenda, não faz senão ir decuplicando o raio da mais embriagante marinha que olhos touristes podem contemplar. A poucos metros da Toca, que é um corredor triangular entre duas massas de salão desagregável, separadas talvez por alguma construção subterrânea, a estrada despega um ramal que desce à praia, parando á porta d'Albarquel, um velho forte de cantaria, quadrado e inofensivo, colaborando nas antigas obras de defensão do rio, e com algumas peças ferrugentas na plataforma, para enviar descargas à flor d'água. O forte é hoje casa de Verão do Sr. Peito de Carvalho, que anexou jardinetes à esplanada, tornando as casernas em residência confortável, e envolvendo os canhões numa camisa de trepadeiras cascadantes. Anda-se além, e a estrada trepa mais, sobre verdadeiros montes agora, internando-se ao de leve, para nos fazer gozar todos os pontos panorâmicos do seu curso; e assim, junto à Comenda, no mais sobranceiro trâmite do macadame, a duzentos metros da água, o espetáculo é quanto pode ser de extático e magnífico! Tem-se p´ra baixo, à esquerda, esborcinando o olhar da amura de madeira, fundos precipícios, revoluções de terra que as águas castigaram, calvários destacados, ravinas bruscas, quebradas, tudo duma cor vermelho sangue, cortada de verdes bronze, ou sujo, ou mais vivo, ou mais violento, e sobre este casco de gangas ferruginosas, da cor trágica das guerras e dos poentes, pinheiros direitos, decapitados nas copas, esgalhados lugubremente nas braçadas, altercando entre si como cruzes que se disputam um mau ladrão para um suplício.
Pela direita toda, sempre a serra, com as suas massas d'argilas fuscas, areias quaternárias, calhaus conglomerados em cabeçorras nuas, lá nos píncaros a serra a despenhar-se sobre o viandante, cheia de cicatrizes dos tiros dos britadores, lascada a prumo por machados de cíclopes furiosos, e curveteando sempre, e desdobrando-se com um extraordinário pitoresco d'agulhas, crenéis, contrafortes d'apoio, linhas, socalcos, fustigada da luz, zebrada de nevoeiro, em destaques cruéis e escuros rhembrandtescos e d'uma infinita poesia d'ajoelhar e dizer os hinos d'Eurico sobre o Calpe. Tal a visão da terra. Para exprimir a do rio, necessário se faz fluidar tintas d'estilo té um inverosímel lance de gradações quase incorpóreas, ter ligeirezas de tom capazes d'exprimir não sensações, mas sonhos de sensações, almas de cores, tão vaporosa im,aterialidade se exala dessa marinha única de harmonia, embaladora d'idílio, a entredizer, num murmúrio de beijos, como o Hamlet:
«Dormir, talvez sonhar, talvez!...»
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ALMEIDA, Fialho de. Os Gatos: Publicação Mensal de Inquérito à Vida Portuguesa. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 6.ª ed, 1933, volume V, pp. 7-20