1
Não sabia em que modo festejasse
O Rei Pagão os fortes navegantes,
Para que as amizades alcançasse
Do Rei Cristão, das gentes tão possantes;
Pesa-lhe que tão longe o aposentasse
Das Européias terras abundantes
A ventura, que não no fez vizinho
Donde Hércules ao mar abriu caminho.
2
Com jogos, danças e outras alegrias,
A segundo a polícia Melindana,
Com usadas e ledas pescarias,
Com que a Lageia António alegra e engana
Este famoso Rei, todos os dias,
Festeja a companhia Lusitana,
Com banquetes, manjares desusados,
Com frutas, aves, carnes e pescados.
3
Mas vendo o Capitão que se detinha
Já mais do que devia, e o fresco vento
O convida que parta e tome asinha
Os pilotos da terra e mantimento,
Não se quer mais deter, que ainda tinha
Muito para cortar do salso argento;
Já do Pagão benigno se despede,
Que a todos amizade longa pede.
4
Pede-lhe mais que aquele porto seja
Sempre com suas frotas visitado,
Que nenhum outro bem maior deseja,
Que dar a tais barões seu reino e estado;
E que enquanto seu corpo o espírito reja,
Estará de contino aparelhado
A pôr a vida e reino totalmente
Por tão bom Rei, por tão sublime gente.
5
Outras palavras tais lhe respondia
O Capitão, o logo as velas dando,
Para as terras da Aurora se partia,
Que tanto tempo há já que vai buscando.
No piloto que leva não havia
Falsidade, mas antes vai mostrando
A navegação certa, e assim caminha
Já mais seguro do que dantes vinha.
6
As ondas navegavam do Oriente
Já nos mares da Índia, e enxergavam
Os tálamos do Sol, que nasce ardente;
Já quase seus desejos se acabavam.
Mas o mau de Tioneu, que na alma sente
As venturas, que então se aparelhavam
A gente Lusitana, delas dina,
Arde, morre, blasfema e desatina.
7
Via estar todo o Céu determinado
De fazer de Lisboa nova Roma;
Não no pode estorvar, que destinado
Está doutro poder que tudo doma.
Do Olimpo desce enfim desesperado;
Novo remédio em terra busca e toma:
Entra no úmido reino, e vai-se à corte
Daquele a quem o mar caiu em sorte.
8
No mais interno fundo das profundas
Cavernas altas, onde o mar se esconde,
Lá donde as ondas saem furibundas,
Quando às iras do vento o mar responde,
Netuno mora, e moram as jocundas
Nereidas, e outros Deuses do mar, onde
As águas campo deixam às cidades,
Que habitam estas úmidas deidades.
9
Descobre o fundo nunca descoberto
Das areias ali de prata fina;
Torres altas se vêem no campo aberto
Da transparente massa cristalina:
Quanto se chegam mais os olhos perto,
Tanto menos a vista determina
Se é cristal o que vê, se diamante,
Que assim se mostra claro e radiante.
10
As portas douro fino, e marchetadas
Do rico aljôfar que nas conchas nasce,
De escultura formosa estão lavradas,
Na qual o irado Baco a vista pasce;
E vê primeiro em cores variadas
Do velho Caos a tão confusa face;
Vêem-se os quatro elementos trasladados
Em diversos ofícios ocupados.
11
Ali sublime o Fogo estava em cima,
Que em nenhuma matéria se sustinha;
Daqui as coisas vivas sempre anima,
Depois que Prometeu furtado o tinha.
Logo após ele leve se sublima
O invisível Ar, que mais asinha
Tomou lugar, e nem por quente ou f rio,
Algum deixa no mundo estar vazio.
12
Estava a terra em montes revestida
De verdes ervas, e árvores floridas,
Dando pasto diverso e dando vida
As alimárias nela produzidas.
A clara forma ali estava esculpida
Das águas entre a terra desparzidas,
De pescados criando vários modos,
Com seu humor mantendo os corpos todos.
13
Noutra parte esculpida estava a guerra,
Que tiveram os Deuses com os Gigantes;
Está Tifeu debaixo da alta serra
De Etna, que as flamas lança crepitantes;
Esculpido se vê ferindo a terra
Netuno, quando as gentes ignorantes
Dele o cavalo houveram, e a primeira
De Minerva pacífica oliveira.
14
Pouca tardança faz Lieu irado
Na vista destas coisas, mas entrando
Nos paços de Netuno, que avisado
Da vinda sua, o estava já aguardando,
As portas o recebe, acompanhado
Das Ninfas, que se estão maravilhando
De ver que, cometendo tal caminho,
Entre no reino d'água o Rei do vinho.
15
"Ó Netuno, lhe disse, não te espantes
De Baco nos teus reinos receberes,
Porque também com os grandes e possantes
Mostra a Fortuna injusta seus poderes.
Manda chamar os Deuses do mar, antes
Que fale mais, se ouvir-me o mais quiseres;
Verão da desventura grandes modos:
Ouçam todos o mal, que toca a todos."
16
Julgando já Netuno que seria
Estranho caso aquele, logo manda
Tritão, que chame os Deuses da água fria,
Que o mar habitam duma e doutra banda.
Tritão, que de ser filho se gloria
Do Rei e de Salácia veneranda,
Era mancebo grande, negro e feio,
Trombeta de seu pai, e seu correio.
17
Os cabelos da barba, e os que descem
Da cabeça nos ombros, todos eram
Uns limos prenhes d'água, e bem parecem
Que nunca brando pentem conheceram;
Nas pontas pendurados não falecem
Os negros misilhões, que ali se geram,
Na cabeça por gorra tinha posta
Uma muito grande casca de lagosta.
18
O corpo nu, e os membros genitais,
Por não ter ao nadar impedimento,
Mas porém de pequenos animais
Do mar todos cobertos cento e cento:
Camarões e cangrejos, e outros mais
Que recebem de Febe crescimento,
Ostras, e camarões do musgo sujos,
As costas com a casca os caramujos.
19
Na mão a grande concha retorcida
Que trazia, com força, já tocava;
A voz grande canora foi ouvida
Por todo o mar, que longe retumbava.
Já toda a companhia apercebida
Dos Deuses para os paços caminhava
Do Deus, que fez os muros de Dardânia,
Destruídos depois da Grega insânia.
20
Vinha o padre Oceano acompanhado
Dos filhos e das filhas que gerara;
Vem Nereu, que com Dóris foi casado,
Que todo o mar de Ninfas povoara;
O profeta Proteu, deixando o gado
Marítimo pascer pela água amara,
Ali veio também, mas já sabia
O que o padre Lieu no mar queria.
21
Vinha por outra parte a linda esposa
De Netuno, de Celo e Vesta filha,
Grave e Ieda no gesto, e tão formosa
Que se amansava o mar de maravilha.
Vestida uma camisa preciosa
Trazia de delgada beatilha,
Que o corpo cristalino deixa ver-se,
Que tanto bem não é para esconder-se.
22
Anfitrite, formosa como as flores,
Neste caso não quis que falecesse;
O Delfim traz consigo, que aos amores
Do Rei lhe aconselhou que obedecesse.
Com os olhos, que de tudo são senhores,
Qualquer parecerá que o Sol vencesse:
Ambas vêm pela mão, igual partido,
Pois ambas são esposas dum marido.
23
Aquela que das fúrias de Atamante
Fugindo, veio a ter divino estado,
Consigo traz o filho, belo Infante,
No número dos Deuses relatado.
Pela praia brincando vem diante
Com as lindas conchinhas, que o salgado
Mar sempre cria, e às vezes pela areia
No colo o to a a bela Panopeia.
24
E o Deus que foi num tempo corpo humano,
E por virtude da erva poderosa
Foi convertido em peixe, e deste dano
Lhe resultou deidade gloriosa,
Inda vinha chorando o feio engano
Que Circe tinha usado com a formosa
Cila, que ele ama, desta sendo amado,
Que a mais obriga amor mal empregado.
25
Já finalmente todos assentados
Na grande sala, nobre e divinal;
As Deusas em riquíssimos estrados,
Os Deuses em cadeiras de cristal,
Foram todos do Padre agasalhados,
Que com o Tebano tinha assento igual.
De fumos enche a casa a rica massa
Que no mar nasce, e Arábia em cheiro passa.
26
Estando sossegado já o tumulto
Dos Deuses, e de seus recebimentos,
Começa a descobrir do peito oculto
A causa o Tioneu de seus tormentos:
Um pouco carregando-se no vulto,
Dando mostra de grandes sentimentos,
Só por dar aos de Luso triste morte
Com o ferro alheio, fala desta sorte:
27
"Príncipe, que de juro senhoreias
Dum Pólo ao outro Pólo o mar irado,
Tu, que as gentes da terra toda enfreias,
Que não passem o termo limitado;
E tu, padre Oceano, que rodeias
O inundo universal, e o tens cercado,
E com justo decreto assim permites
Que dentro vivam só de seus limites;
28
"E vós, Deuses do mar, que não sofreis
Injúria alguma em vosso reino grande,
Que com castigo igual vos não vingueis
De quem quer que por ele corra e ande:
Que descuido foi este em que viveis?
Quem pode ser que tanto vos abrande
Os peitos, com razão endurecidos
Contra os humanos fracos e atrevidos?
29
"Vistes que com grandíssima ousadia
Foram já cometer o Céu supremo;
Vistes aquela insana fantasia
De tentarem o mar com vela e remo;
Vistes, e ainda vemos cada dia,
Soberbas e insolências tais, que temo
Que do mar e do Céu em poucos anos
Venham Deuses a ser, e nós humanos.
30
"Vedes agora a fraca geração
Que dum vassalo meu o nome toma,
Com soberbo e altivo coração,
A vós, e a mi, e o mundo todo doma;
Vedes, o vosso mar cortando vão,
Mais do que fez a gente alta de Roma;
Vedes, o vosso reino devassando,
Os vossos estatutos vão quebrando.
31
"Eu vi que contra os Mínias, que primeiro
No vosso reino este caminho abriram,
Bóreas injuriado, e o companheiro
Aquilo, e os outros todos resistiram.
Pois se do ajuntamento aventureiro
Os ventos esta injúria assim sentiram,
Vós, a quem mais compete esta vingança,
Que esperais?Porque a pondes em tardança?
32
"E não consinto, Deuses, que cuideis
Que por amor de vós do céu desci,
Nem da mágoa da injúria que sofreis,
Mas da que se me faz também a mi;
Que aquelas grandes honras, que sabeis
Que no mundo ganhei, quando venci
As terras Indianas do Oriente,
Todas vejo abatidas desta gente.
33
"Que o grã Senhor e Fados que destinam,
Como lhe bem parece, o baixo mundo,
Famas mores que nunca determinam
De dar a estes barões no mar profundo.
Aqui vereis, ó Deuses, como ensinam
O mal também a Deuses: que, a segundo
Se vê, ninguém já tem menos valia,
Que quem com mais razão valer devia.
34
"E por isso do Olimpo já fugi,
Buscando algum remédio a meus pesares,
Por ver o preço que no Céu perdi,
Se por dita acharei nos vossos mares."
Mais quis dizer, e não passou daqui,
Porque as lágrimas já correndo a pares
Lhe saltaram dos olhos, com que logo
Se acendem as Deidades d'água em fogo.
35
A ira com que súbito alterado
O coração dos Deuses foi num ponto,
Não sofreu mais conselho bem cuidado,
Nem dilação, nem outro algum desconto.
Ao grande Eolo mandam já recado
Da parte de Netuno, que sem conto
Solte as fúrias dos ventos repugnantes,
Que não haja no mar mais navegantes.
36
Bem quisera primeiro ali Proteu
Dizer neste negócio o que sentia,
E segundo o que a todos pareceu,
Era alguma profunda profecia.
Porém tanto o tumulto se moveu
Súbito na divina companhia,
Que Tethys indignada lhe bradou:
"Netuno sabe bem o que mandou".
37
Já lá o soberbo Hipótades soltava
Do cárcere fechado os furiosos
Ventos, que com palavras animava
Contra os varões audazes e animosos.
Súbito o céu sereno se obumbrava,
Que os ventos, mais que nunca impetuosos,
Começam novas forças a ir tomando,
Torres, montes e casas derribando.
38
Enquanto este conselho se fazia
No fundo aquoso, a leda lassa frota
Com vento sossegado prosseguia,
Pelo tranquilo mar, a longa rota.
Era no tempo quando a luz do dia
Do Eôo Hemisfério está remota;
Os do quarto da prima se deitavam,
Para o segundo os outros despertavam.
39
Vencidos vêm do sono, e mal despertos;
Bocejando a miúdo se encostavam
Pelas antenas, todos mal cobertos
Contra os agudos ares, que assopravam;
Os olhos contra seu querer abertos,
Alas estregando, os membros estiravam;
Remédios contra o sono buscar querem,
Histórias contam, casos mil referem.
40
"Com que melhor podemos, um dizia,
Este tempo passar, que é tão pesado,
Senão com algum conto de alegria,
Com que nos deixe o sono carregado?"
Responde Leonardo, que trazia
Pensamentos de firme namorado:
"Que contos poderemos ter melhores,
Para passar o tempo, que de amores?"
41
"Não é, disse Veloso, coisa justa
Tratar branduras em tanta aspereza;
Que o trabalho do mar, que tanto custa,
Não sofre amores, nem delicadeza;
Antes de guerra férvida e robusta
A nossa história seja, pois dureza
Nossa vida há de ser, segundo entendo,
Que o trabalho por vir me está dizendo."
42
Consentem nisto todos, e encomendam
A Veloso que conte isto que aprova.
"Contarei, disse, sem que me repreendam
De contar cousa fabulosa ou nova;
E porque os que me ouvirem daqui aprendam
A fazer feitos grandes de alta prova,
Dos nascidos direi na nossa terra,
E estes sejam os doze de Inglaterra.
43
"No tempo que do Reino a rédea leve
João, filho de Pedro, moderava,
Depois que sossegado e livre o teve
Do vizinho poder, que o molestava,
Lá na grande Inglaterra, que da neve
Boreal sempre abunda, semeava
A fera Erínis dura e má cizânia,
Que lustre fosse a nossa Lusitânia.
44
"Entre as damas gentis da corte Inglesa
E nobres cortesãos, acaso um dia
Se levantou discórdia em ira acesa,
Ou foi opinião, ou foi porfia.
Os cortesãos, a quem tão pouco pesa
Soltar palavras graves de ousadia,
Dizem que provarão, que honras e famas
Em tais damas não há, pera ser damas.
45
"E que se houver alguém, com lança e espada,
Que queira sustentar a parte sua,
Que eles, em campo raso ou estacada,
Lhe darão feia infâmia, ou morte crua.
A feminil fraqueza Pouco usada,
Ou nunca, a opróbrios tais, vendo-se nua
De forças naturais convenientes,
Socorro pede a amigos e parentes.
46
"Mas como fossem grandes e possantes
No reino os inimigos, não se atrevem
Nem parentes, nem férvidos amantes,
A sustentar as damas, como devem.
Com lágrimas formosas e bastantes
A fazer que em socorro os Deuses levem
De todo o Céu, por rostos de alabastro,
Se vão todas ao duque de Alencastro.
47
"Era este Inglês potente, e militara
Com os Portugueses já contra Castela,
Onde as forças magnânimas provara
Dos companheiros, e benigna estrela:
Não menos nesta terra experimentara
Namorados afeitos, quando nela
A filha viu, que tinto o peito doma
Do forte Rei, que por mulher a toma.
48
"Este, que socorrer-lhe não queria,
Por não causar discórdias intestinas,
Lhe diz: - "Quando o direito pretendia
Do reino lá das terras Iberinas,
Nos Lusitanos vi tanta ousadia,
Tanto primor, e partes tão divinas,
Que eles sós poderiam, se não erro,
Sustentar vossa parte a fogo e ferro.
49
"E se, agravadas damas, sois servidas,
Por vós lhe mandarei embaixadores,
Que, por cartas discretas e polidas,
De vosso agravo os façam sabedores.
Também por vossa parto encarecidas
Com palavras de afagos e de amores
Lhe sejam vossas lágrimas, que eu creio
Que ali tereis socorro e forte esteio." -
50
"Destarte as aconselha o Duque experto,
E logo lhe nomeia doze fortes;
E por que cada dama um tenha certo,
Lhe manda que sobre eles lancem sortes,
Que elas só doze são; e descoberto
Qual a qual tem caído das consertes,
Cada uma escreve ao seu por vários modos,
E todas a seu Rei, e o Duque a todos.
51
"Já chega a Portugal o mensageiro;
Toda a corte alvoroça a novidade;
Quisera o Rei sublime ser primeiro,
Mas não lhe sofre a Régia Majestade.
Qualquer dos cortesãos aventureiro
Deseja ser, com férvida vontade,
F, só fica por bem-aventurado
Quem já vem pelo Duque nomeado.
52
"Lá na leal Cidade, donde teve
Origem (como é fama) o nome eterno
De Portugal, armar madeiro leve
Manda o que tem o leme do governo.
Apercebem-se os doze, em tempo breve,
De armas, e roupas de uso mais moderno,
De elmos, cimeiras, letras, e primores,
Cavalos, e concertos de mil cores.
53
"Já do seu Rei tomado têm licença
Para partir do Douro celebrado
Aqueles, que escolhidos por sentença
Foram do Duque Inglês experimentado.
Não há na companhia diferença
De cavaleiro destro ou esforçado;
Mas um só, que Magriço se dizia,
Destarte fala à forte companhia:
54
- "Fortíssimos consócios, eu desejo
Há muito já de andar terras estranhas,
Por ver mais águas que as do Douro o Tejo,
Várias gentes, e leis, e várias manhas.
Agora, que aparelho certo vejo,
(Pois que do mundo as coisas são tamanhas)
Quero, se me deixais, ir só por terra,
Porque eu serei convosco em Inglaterra.
55
- "E quando caso for que eu impedido
Por quem das cousas é última linha,
Não for convosco ao prazo instituído,
Pouca falta vos faz a falta minha:
Todos por mim fareis o que é devido;
Mas, se a verdade o espírito me adivinha,
Rios, montes, fortuna, ou sua inveja,
Não farão que eu convosco lá não seja."
56
"Assim diz, e abraçados os amigos,
E tomada licença, enfim se parte:
Passa Lião, Castela, vendo antigos
Lugares, que ganhara o pátrio Marte;
Navarra, com os altíssimos perigos
Do Perineu, que Espanha e Gália parte;
Vistas enfim de França as coisas grandes,
No grande empório foi parar de Frandes.
57
"Ali chegado, ou fosse caso ou manha,
Sem passar se deteve muitos dias:
Mas dos onze a ilustríssima companha
Cortam do mar do Norte as ondas frias.
Chegados de Inglaterra à costa estranha,
Para Londres já fazem todos vias.
Do Duque são com festa agasalhados,
E das damas servidos e amimados.
58
"Chega-se o prazo e dia assinalado
De entrar em campo já com os doze Ingleses,
Que pelo Rei já tinham segurado:
Armam-se de elmos, grevas e de arneses:
Já as damas têm por si, fulgente e armado,
O Mavorte feroz dos Portugueses;
Vestem-se elas de cores e de sedas,
De ouro e de jóias mil, ricas e ledas.
59
"Mas aquela, a quem fora em sorte dado
Magriço, que não vinha, com tristeza
Se veste, por não ter quem nomeado
Seja seu cavaleiro nesta empresa;
Bem que os onze apregoam, que acabado
Será o negócio assim na corte Inglesa,
Que as damas vencedoras se conheçam,
Posto que dois e três dos seus faleçam.
60
"Já num sublime e público teatro
Se assenta o Rei Inglês com toda a corte:
Estavam três e três, e quatro e quatro,
Bem como a cada qual coubera em sorte.
Não são vistos do Sol, do Tejo ao Batro,
De força, esforço e de ânimo mais forte
Outros doze sair, como os Ingleses,
No campo, contra os onze Portugueses.
61
"Mastigam os cavalos, escumando,
Os áureos freios com feroz semblante;
Estava o Sol nas armas rutilando
Como em cristal ou rígido diamante;
Mas enxerga-se num e noutro bando
Partido desigual e dissonante
Dos onze contra os doze: quando a gente
Começa a alvoroçar-se geralmente.
62
"Viram todos o rosto aonde havia
A causa principal do reboliço:
Eis entra um cavaleiro, que trazia
Armas, cavalo, ao bélico serviço.
Ao Rei e às damas fala, e logo se ia
Para os onze, que este era o grã Magriço;
Abraça os companheiros como amigos,
A quem não falta certo nos perigos.
63
"A dama, como ouviu que este era aquele
Que vinha a defender seu nome e fama,
Se alegra, e veste ali do animal de Hele,
Que a gente bruta mais que virtude ama.
Já dão sinal, e o som da tuba impele
Os belicosos ânimos, que inflama:
Picam de esporas, largam rédeas logo,
Abaixam lanças, fere a terra fogo.
64
"Dos cavalos o estrépito parece
Que faz que o chão debaixo todo treme;
O coração no peito, que estremece
De quem os olha, se alvoroça e teme:
Qual do cavalo voa, que não desce;
Qual, com o cavalo em terra dando, geme;
Qual vermelhas as armas faz de brancas;
Qual com os penachos do elmo açouta as ancas.
65
"Algum dali tomou perpétuo sono
E fez da vida ao fim breve intervalo;
Correndo algum cavalo vai sem dono
E noutra parte o dono sem cavalo.
Cai a soberba Inglesa de seu trono,
Que dois ou três já fora vão do vale;
Os que de espada vêm fazer batalha,
Mais acham já que arnês, escudo e malha.
66
"Gastar palavras em contar extremos
De golpes feros, cruas estocadas,
É desses gastadores, que sabemos,
Maus do tempo, com fábulas sonhadas.
Basta, por fim do caso, que entendemos
Que com finezas altas e afamadas,
Com os nossos fica a palma da vitória,
E as damas vencedoras, e com glória.
67
"Recolhe o Duque os doze vencedores
Nos seus paços, com festas e alegria;
Cozinheiros ocupa e caçadores
Das damas a formosa companhia,
Que querem dar aos seus libertadores
Banquetes mil cada hora e cada dia,
Enquanto se detêm em Inglaterra,
Até tornar à doce e cara terra.
68
"Mas dizem que, contudo, o grã Magriço,
Desejoso de ver as coisas grandes,
Lá se deixou ficar, onde um serviço
Notável à condessa fez de Frandes;
E como quem não era já noviço
Em todo trance, onde tu, Marte, mandes,
Um Francês mata em campo, que o destino
Lá teve de Torcato e de Corvino.
69
"Outro também dos doze em Alemanha
Se lança, e teve um fero desafio
Com um Germano enganoso, que com manha
Não devida o quis pôr no extremo fio."
Contando assim Veloso, já a companha
Lhe pede que não f aça tal desvio
Do caso de Magriço, e vencimento,
Nem deixe o de Alemanha em esquecimento.
70
Mas, neste passo, assim prontos estando
Eis o mestre, que olhando os ares anda,
O apito toca; acordam despertando
Os marinheiros duma e doutra banda;
E porque o vento vinha refrescando,
Os traquetes das gáveas tomar manda:
"Alerta, disse, estai, que o vento cresce
Daquela nuvem negra que aparece."
71
Não eram os traquetes bem tomados,
Quando dá a grande e súbita procela:
"Amaina, disse o mestre a grandes brados,
Amaina, disse, amaina a grande vela!"
Não esperam os ventos indinados
Que amainassem; mas juntos dando nela,
Em pedaços a fazem, com um ruído
Que o mundo pareceu ser destruído.
72
O céu fere com gritos nisto a gente,
Com súbito temor e desacordo,
Que, no romper da vela, a nau pendente
Toma grã suma d'água pelo bordo:
"Alija, disse o mestre rijamente,
Alija tudo ao mar; não falte acordo.
Vão outros dar à bomba, não cessando;
A bomba, que nos imos alagando!"
73
Correm logo os soldados animosos
A dar à bomba; e, tanto que chegaram,
Os balanços que os mares temerosos
Deram à nau, num bordo os derribaram.
Três marinheiros, duros e forçosos,
A menear o leme não bastaram;
Talhas lhe punham duma e doutra parte,
Sem aproveitar dos homens força e arte.
74
Os ventos eram tais, que não puderam
Mostrar mais força do ímpeto cruel,
Se para derribar então vieram
A fortíssima torre de Babel.
Nos altíssimos mares, que cresceram,
A pequena grandura dum batel
Mostra a possante nau, que move espanto,
Vendo que se sustém nas ondas tanto.
75
A nau grande, em que vai Paulo da Gama,
Quebrado leva o masto pelo meio.
Quase toda alagada: a gente chama
Aquele que a salvar o mundo veio.
Não menos gritos vãos ao ar derrama
Toda a nau de Coelho, com receio,
Conquanto teve o mestre tanto tento,
Que primeiro amainou, que desse o vento.
76
Agora sobre as nuvens os subiam
As ondas de Netuno furibundo;
Agora a ver parece que desciam
As íntimas entranhas do Profundo.
Noto, Austro, Bóreas, Aquilo queriam
Arruinar a máquina do mundo:
A noite negra e feia se alumia
Com os raios, em que o Pólo todo ardia.
77
As Alcióneas aves triste canto
Junto da costa brava levantaram,
Lembrando-se do seu passado pranto,
Que as furiosas águas lhe causaram.
Os delfins namorados entretanto
Lá nas covas marítimas entraram,
Fugindo à tempestade e ventos duros,
Que nem no fundo os deixa estar seguros.
78
Nunca tão vivos raios fabricou
Contra a fera soberba dos Gigantes
O grã ferreiro sórdido, que obrou
Do enteado as armas radiantes;
Nem tanto o grã Tonante arremessou
Relâmpagos ao mundo fulminantes,
No grã dilúvio, donde sós viveram
Os dois que em gente as pedras converteram.
79
Quantos montes, então, que derribaram
As ondas que batiam denodadas!
Quantas árvores velhas arrancaram
Do vento bravo as fúrias indinadas!
As forçosas raízes não cuidaram
Que nunca para o céu fossem viradas,
Nem as fundas areias que pudessem
Tanto os mares que em cima as revolvessem.
80
Vendo Vasco da Gama que tão perto
Do fim de seu desejo se perdia;
Vendo ora o mar até o inferno aberto,
Ora com nova fúria ao céu subia,
Confuso de temor, da vida incerto,
Onde nenhum remédio lhe valia,
Chama aquele remédio santo e forte,
Que o impossível pode, desta sorte:
81
"Divina Guarda, angélica, celeste,
Que os céus, o mar e terra senhoreias;
Tu, que a todo Israel refúgio deste
Por metade das águas Eritreias;
Tu, que livraste Paulo e o defendeste
Das Sirtes arenosas e ondas feias,
E guardaste com os filhos o segundo
Povoador do alagado e vácuo mundo;
82
"Se tenho novos modos perigosos
Doutra Cila e Caríbdis já passados,
Outras Sirtes e baixos arenosos,
Outros Acroceráunios infamados,
No fim de tantos casos trabalhosos,
Por que somos de ti desamparados,
Se este nosso trabalho não te ofende,
Mas antes teu serviço só pretende?
83
"Ó ditosos aqueles que puderam
Entre as agudas lanças Africanas
Morrer, enquanto fortes sostiveram
A santa Fé nas terras Mauritanas!
De quem feitos ilustres se souberam,
De quem ficam memórias soberanas,
De quem se ganha a vida com perdê-la,
Doce fazendo a morte as honras dela!"
84
Assim dizendo, os ventos que lutavam
Como touros indómitos bramando,
Mais e mais a tormenta acrescentavam
Pela miúda enxárcia assoviando.
Relâmpados medonhos não cessavam,
Feros trovões, que vêm representando
Cair o céu dos eixos sobre a terra,
Consigo os elementos terem guerra.
85
Mas já a amorosa estrela cintilava
Diante do Sol claro, no Horizonte,
Mensageira do dia, e visitava
A terra e o largo mar, com leda fronte.
A densa que nos céus a governava,
De quem foge o ensífero Orionte,
Tanto que o mar e a cara armada vira,
Tocada junto foi de medo e de ira.
86
"Estas obras de Baco são, por certo,
Disse; mas não será que avante leve
Tão danada tenção, que descoberto
Me será sempre o mil a que se atreve."
Isto dizendo, desce ao mar aberto,
No caminho gastando espaço breve,
Enquanto manda as Ninfas amorosas
Grinaldas nas cabeças pôr de rosas.
87
Grinaldas manda pôr de várias cores
Sobre cabelo; louros à porfia.
Quem não dirá que nascem roxas flores
Sobre ouro natural, que Amor enfia?
Abrandar determina, por amores,
Dos ventos a nojosa companhia,
Mostrando-lhe as amadas Ninfas belas,
Que mais formosas vinham que as estrelas.
88
Assim foi; porque, tanto que chegaram
A vista delas, logo lhe falecem
As forças com que dantes pelejaram,
E já como rendidos lhe obedecem.
Os pés e mãos parece que lhe ataram
Os cabelos que os raios escurecem.
A Bóreas, que do peito mais queria,
Assim disse a belíssima Oritia:
89
"Não creias, fero Bóreas, que te creio
Que me tiveste nunca amor constante,
Que brandura é de amor mais certo arreio,
E não convém furor a firme amante.
Se já não pões a tanta insânia freio,
Não esperes de mi, daqui em diante,
Que possa mais amar-te, mas temer-te;
Que amor contigo em medo se converte."
90
Assim mesmo a formosa Galateia
Dizia ao fero Noto, que bem sabe
Que dias há que em vê-la se recreia,
E bem crê que com ele tudo acabe.
Não sabe o bravo tanto bem se o creia,
Que o coração no peito lhe não cabe,
De contente de ver que a dama o manda,
Pouco cuida que faz, se logo abranda.
91
Desta maneira as outras amansavam
Subitamente os outros amadores;
E logo à linda Vénus se entregavam,
Amansadas as iras e os furores.
Ela lhe prometeu, vendo que amavam,
Sempiterno favor em seus amores,
Nas belas mãos tomando-lhe homenagem
De lhe serem leais esta viagem.
92
Já a manhã clara dava nos outeiros
Por onde o Ganges murmurando soa,
Quando da celsa gávea os marinheiros
Enxergaram terra alta pela proa.
Já fora de tormenta, e dos primeiros
Mares, o temor vão do peito voa.
Disse alegre o piloto Melindano:
"Terra é de Calecu, se não me engano.
93
"Esta é por certo a terra que buscais
Da verdadeira Índia, que aparece;
E se do mundo mais não desejais,
Vosso trabalho longo aqui fenece."
Sofrer aqui não pode o Gama mais,
De ledo em ver que a terra se conhece:
Os geolhos no chão, as mãos ao céu,
A mercê grande a Deus agradeceu.
94
As graças a Deus dava, e razão tinha,
Que não somente a terra lhe mostrava,
Que com tanto temor buscando vinha,
Por quem tanto trabalho experimentava;
Mas via-se livrado tão asinha
Da morte, que no mar lhe aparelhava
O vento duro, fervido e medonho,
Como quem despertou de horrendo sonho.
95
Por meio destes hórridos perigos,
Destes trabalhos graves e temores,
Alcançam os que são de fama amigos
As honras imortais e graus maiores:
Não encostados sempre nos antigos
Troncos nobres de seus antecessores;
Não nos leitos dourados, entre os finos
Animais de Moscóvia zebelinos;
96
Não com os manjares novos e esquisitos,
Não com os passeios moles e ociosos,
Não com os vários deleites e infinitos,
Que afeminam os peitos generosos,
Não com os nunca vencidos apetitos
Que a Fortuna tem sempre tão mimosos,
Que não sofre a nenhum que o passo mude
Para alguma obra heróica de virtude;
97
Mas com buscar com o seu forçoso braço
As honras, que ele chame próprias suas;
Vigiando, e vestindo o forjado aço,
Sofrendo tempestades e ondas cruas;
Vencendo os torpes frios no regaço
Do Sul e regiões de abrigo nuas;
Engolindo o corrupto mantimento,
Temperado com um árduo sofrimento;
98
E com forçar o rosto, que se enfia,
A parecer seguro, ledo, inteiro,
Para o pelouro ardente, que assovia
E leva a perna ou braço ao companheiro.
Destarte, o peito um calo honroso cria,
Desprezador das honras e dinheiro,
Das honras e dinheiro, que a ventura
Forjou, e não virtude justa e dura.
99
Destarte se esclarece o entendimento,
Que experiências fazem repousado,
E fica vendo, corno de alto assento,
O baixo trato humano embaraçado.
Este, onde tiver força o regimento
Direito, e não de afeitos ocupado,
Subirá (como deve) a ilustre mando,
Contra vontade sua, e não rogando.