Em um pequeno valle rodeado de bosques e rochedos, vivian, ha muitos seculos, alguns pobres carvoeiros. As suas choupanas estavam dispersas aqui e alli na encosta das collinas. A fortuna d'elles se compunha de algumas cerejeiras e ameixeiras ao redor de cada casa, um campo de trigo, um pouco de canhamo e de linho, uma vacca, e algumas cabras. Elles ganhavam muito pouca cousa a trabalhar para uma forja que havia perto d'alli. Era gente muito pobre, mas gente feliz porque se contentavam com o que tinham e nada mais. No meio de uma vida dura, sobria e laboriosa, gozavam de perfeita saúde, e n'essas humildes choupanas encontrava-se o que em vão se procuraria nos palacios : homens de mais de cem annos de idade, e gozando ainda das delicias da vida.
Um dia que a aveia começava a ficar amarella e que fazia grande calor, a filha de um carvoeiro que estava guardando as cabras, veiu correndo para casa e disse aos seus parentes que tinham chegado ao valle diversas pessoas com umas maneiras especiaes e que fallavam de um modo particular : era uma grande dama com seus dois filhos e um homen de idade que, se bem ricamente vestido, parecia ser o criado. « Ah! meu Deus, disse a rapariga, essa gente está morrendo de fome e estão muito cançados : encontrei-os quando corria atraz de uma das cabras, e mostrei-lhes o caminho do valle. Vamos levar-lhes alguma cousa para comer e beber e veremos depois se podemos dar-lhes pousada por esta noite em nossa casa ou em casa de algum vizinho. » Os paes tomaram logo pão d'aveia, leite e queijo e acompanharam a fillha.
Os extrangeiros tinham-se postos á sombra de um rochedo cheio de matto onde fazia muito fresco. A senhora estava sentada em uma pedra coberta de musgo; um véo de fina escumilha cobria-lhe o rosto ; uma menina bella como o dia descançava no seu collo. O velho servidor descarregava a besta que vinha com elles; a outra criança, um bello menino, dava cardos ao animal que comia com avidez.
O carvoeiro e sua mulher approximaram-se respeitosamente da extrangeira, pois, á nobreza do seu todo, á dignidade de suas maneiras e principalmente por causa de seuvestido comprido, viram que era uma senhora de alto nascimento. « Repara, disse baixinho a carvoeira ao marido, repara só no grande collarinho tão finamente dobrado com preguinhas, e as finas rendas que cobrem a metade d'aquellas mãos delicadas; e os sapatos, Deus do céo, como elles são brancos como as flôres de nossas cerejeiras, e estão enfeitados com flôres de prata. » O marido, porém, zangando-se com estas observações, disse-lhe: « Sempre com a tua tola vaidade ! as roupas mais finas convêm á gente de distincção; e com tudo isto a roupa não torna a gente melhor, e esses sapatos tão bonitos, tão delicados, não impediram que a pobre senhora ficasse com os pés arranhados mais de uma vez nos maus caminhos. »
O carvoeiro e a sua mulher offereceram á nobre extrangeira, leite, queijo e pão. Ella levantou o véo e elles admiraram o brilho do seu rosto, e a doçura dos seus traços. Depois de agredecer-lhes a bondade que tinham, ella tomou a tijella de leite e deu a beber á criança que tinha no collo. Lagrimas de ternura rolaram-lhe pela face corada, vendo a criança tomar a tijella com as duas mãosinhas, leval-a á boca e beber com gosto. O menino chegou-se também, e sua terna mãe deu-lhe a beber. Em seguida ella repartiu o pão, e só depois que seus filhos ficaram satisfeitos é que cuidou em si. Quanto ao velho servidor, regalou-se com um pedaço de pão com queijo. Emquanto tomavam esta pequena refeição, os habitantes do valle tinham vindo todos, e faziam roda em volta da interessante familia.
Depois da refeição, o velho criado pediu á essa boa gente que arranjasse para a senhora um pequeno aposento por pouco tempo sómente : ella não lhes seria pesada, pagaria tudo com generosidade. « Ah ! sim, accrescentou a senhora com voz doce e commovida, tenham dó de uma mãe infeliz e de seus dous filhos que um destino horrivel obrigou-os a deixar o solo paterno. » Os habitantes se consultaram e trataram de soecorrer a extrangeira.
No alto do valle havia um riacho que sahia do meio dos rochedos, que elle branqueava com sua escuma, e não longe d'alli fazia mover um moinho que parecia estar suspenso nos rochedos. O moleiro tinha construido do lado opposto uma casinha bem bonitinha : é verdade que era feita de madeira, como todas as cabanas da vizinhança, mas rodeada de grandes cerejeiras e edificada no meio de um jardim, fazia muito bonita vista. O moleiro offereceu-a á desconhecida. « A casinha (que a senhora avista d'aqui, disse-lhe apontando-a com o dedo, eu lhe cedo com muito gosto : ella está novasiuha e ainda ninguen morou n'ella ; mandei fazel-a para eu mesmo habital-a quando passar o moinho para meu filho. Como a Providencia trouxe-a aqui a proposito ! a casinha ficou acabada hontem e a senhora pode já ir para ella : dir-se-hia que a mandei fazer para a senhora. Ella ha de agradar-lhe.
A nobre senhora aceitou com reconhecimento este delicado offerecimento. Depois de descançar ainda mais um pouco, ella dirigiu-se para a sua nova morada, levando nos braços a filhinha ; o velho segurava o menino pela mão, e o obsequioso moleiro conduzia a besta pelo freio.
A senhora achou a casa muito bonita : o moleiro já a tinha mobiliado com mesas, cadeiras, cama, emfim de tudo quanto se precisa n'uma casa. A senhora tinha trazido bellos tapetes, ricas cobertas e colchas ; ella se preparou logo para passar a primeira noite em sua nova morada.
Antes, porém, de ir dormir, deu graças a Deus, que depois de tantos desgostos e ancias lhe tinha dado um asylo tão conveniente. « Quem havia de dizer, disse ella suspirando, que criada em palacios, eu havia de me considerar muito feliz um dia em ser acolhida em uma pobre cabana ! Ah ! como os grandes da terra têm o maior interesse em tratar bem seus inferiores! Como devem ser affaveis para com elles ! Se a compaixão não os leva a isso, pelo menos a prudencia devia induzil-os a mais circumspecção ; pois, quem pode saber o que o destino nos reserva ?
No dia seguinte de manhã, a boa senhora sahiu com os filhos a visitar a região hospitaleira ; ella nada tinha podido vêr na vespera porque estava muito cançada. Logo que poz o pé fóra, um lindo espectaculo se apresentou diante dos olhos. As cabanas espalhadas dos carvoeiros formavam bonitos grupos, que pareciam semeados aqui e alli no valle ; o riacho corria entre ellas com a sua agua limpida como um fio de crystal; os rochedos cobertos de matto e de relva que as cabras da comiam, estavam allumiados pelos raios do sol nascente e apresentavam á vista um quadro que não podia ser reproduzido pelo mais habil pintor.
Ao vêr a bella desconhecida, o velho moleiro sahiu do moinho, atravessou a taboa que servia de ponte em eima do riacho e veiu ter com os seus hospedes. « Então, disse-lhes elle de longe, poderá haver no valle um lugar mais bonito do que este ? Aqui gozamos dos primeiros raios do sol : aquellas cabanas ainda estão na escuridão que aqui o sol dora os campos, e os nevoeiros deixam apenas avistar as chaminés das cabanas que aqui já se aprecia um céo puro e calmo. »
As crianças da senhora divertiam-se cada uma a seu modo. Ellas estavam admiradas em vêr girar a roda do moinho sempre no mesmo lugar ; ellas ouviam com surpresa o barulho da cunha que nunca parava, e o murmurio da agua que corria aos borbotões. A menina gostava muito de vêr essa immensa quantidade de bolhas d'agua, parecidas com perolas brilhantes, voando nos ares, saltando na roda, e cahindo depois aos montões n'agua.
A senhora passou o dia a arranjar a casa o melhor que poude. Aquella boa gente forneceu-lhe os viveres, a lenha, a louça, tudo emfim que lhe faltava ainda. A joven carvoeira que lhe tinha ensinado o caminho do valle, e que se chamava Martha, ficou sendo sua criada.
A senhora preparou-se para fazer a comida. « Mas antes de tudo, disse ella á Martha, preciso de ovos; toma dinheiro e vai buscar-me alguns ovos. — Ovos? perguntou Martha admirada, para que quer a senhora ovos? — Para cozinhal-os, replicou a senhora. Anda, vai depressa e não te demores. — Para cozinhal-os! mas os passarinhos não têm mais ovos, e demais seria pena : seria preciso alguns centos de ovos de pintasilgo e tentilhoes para dar a comer a quatro pessoas. — O que é que estás ahi a contar ? Quem te falla em ovos de passarinhos? São ovos de gallinha que te peço que me vás busear! » Ao ouvir isto, a pequena sacudiu a cabeça dizendo : « eu não conheço d'esses ovos, nunca os vi. — 0 que! exclamou a senhora, vocês não sabem ainda o que é uma gallinha ? »
Os meus jovens leitores hão de ficar admirados da ignorancia da joven carvoeira ; no emtanto não se hão de admirar mais quando souberem que as gallinhas nos vêm do Oriente, e que no tempo em que se deram os acontecimentos que estou contando, ellas eram tão raras em certas regiões como é ainda agora o pavão em muitos paizes.
Como não havia carne, a senhora ficava ás vezes atrapalhada sem saber o que fazer para comer. « Nunca teria pensado que um ovo fosse um presente tão precioso da bondade divina ; vejo agora que isso é verdade. Ah! não é a primeira lição que devo á desgraça. » As necessidades e a adversidade têm ao menos isto de bom, que ellas nos mostram o quanto devemos ser reconhecidos a Deus, ellas nos mostram tambem o valor de muitos dos seus beneficios, que não sabemos apreciar na prosperidade.
A boa senhora vivia bem pobremente e era obrigada a passar por muitas privações. Não era porque no valle não se esforçassem todos a satisfazer os seus desejos e suavisar o mais que podiam o rigor do seu destino.
Quando o moleiro pescava alguma bonita truta ou apanhava alguns tordos, ia logo offerecel-os á sua nobre hospede. O vellho criado, sobretudo, prestava lhe grandes serviços. Ella ainda tinha algumas joias de preço, algumas pedras preciosas e outros objectos de valor. O bom velho ausentava-se de tempos em tempos para ir vendel-os, e trazia d'essas viagens uma quantidade de cousas necessarias para a casa.
Os habitantes do valle tinlham notado que todas as vezes que o velho Kuno voltava d'essas excurções, a senhora parecia mais triste e mais
afflicta. Elles queriam saber quem era ella, mas não se atreviam perguntar-lhe, e quando fallavam a este respeito com Kuno, este lhe dizia uma quantidade de cousas e de nomes tão exquisitos, tão extraordinarios, tão difficeis a pronunciar e sobretudo a guardar na mente, que acabaram por comprehender que o jocoso velho divertia-se á custa d'elles.
Um dia, chamaram o menino : « Diz-nos, lhe perguntaram elles, como é que se chama sua mãe? diz-nos aqui no ouvido, nós não diremos á ninguem. » O menino respondeu-lhes com muito mysterio, mas com toda a confiança e bondade : « Ella se chama maman. »
As respostas do menino não foram mais satisfactorias para aquella boa gente, e deixaram ao tempo a descoberta do mysterio.