De volta à sala de Queiroz, Eulália e Paula estavam apoderados de sentimentos diversos.

A filha do professor tinha medo de si mesma. Lembrava-se de que um enleio inexplicável avassalou-a e converteu-a em títere de um impulso ignoto, mas triunfante, que a entregaria ao vigário como escrava. O calor daquelas mãos, que apertaram as suas com um tremor carinhoso, coara-se-lhe como um veneno pelas veias; sentiu-se alquebrada, sem vontade, sem domínio sobre si, e deixar-se-ia até beijar se não fosse o canto providencial do doido.

Semelhante recordação afogueava-lhe o pudor e obrigava-a a ocultar-se para esconder as lágrimas. Mas a solidão fazia-lhe medo; via-se fraca, dominável por tudo, inerte ao ponto de se deixar vencer até pelo raio do sol moribundo. O polido do espelho do seu quarto figurava-se-lhe uma lanterna que lhe acendiam dentro da consciência, a cuja luz não podia esconder que o vigário a impelia com um aceno, escravizava-a com um olhar. Lutava então contra o amargor de tão triste certeza, mas a imaginação baralhava-se-lhe num cismar cambiante como as vistas de um caleidoscópio. No entanto, não tinha forças para repreender-se severamente, porque o que sentia agora não era senão a reprodução do que sentira desde a infância pelo sr. vigário.

Recordava-se de que, em pequena, era de um gênio violento e excessivamente traquinas. Em vão as carícias paternas e as de sua boa mãe buscavam contê-la: continuava sempre, e, se a castigavam, cedia por temor, mas não por estar convencida de que fizera mal. Entretanto, se a ameaçavam dizendo que iam contar ao sr. vigário, aquietava-se logo, e, sem ressentir-se, distraía-se e ia ler ou amimar sua boneca. Depois de crescida, já mocinha, sentia uma satisfação untuosa, fresca como o contato de uma pele, ouvindo as prédicas daquele homem que fazia estremecer todos os corações, que falava em nome de Deus, e não obstante na sua casa desfazia-se em afagos e em meiguices para consigo. Depois foi gradativamente compreendendo que Paula era um homem de espírito, superior à gente rude da paróquia, que o maldizia porque não o entendia, e não se compenetrava de que o pároco, gravitando em outra esfera, não podia deleitar-se com os seus divertimentos grosseiros e com os seus costumes semi-selvagens. Este conceito exagerado, que cimentou-se com as repetidas afirmações de Queiroz, predispuseram-na a deixar-se levar pelo vigário, a quem devotava uma afeição quase igual à que dava ao pai; afeição desinteressada, sem laços materiais, como se evidenciava do desassombro com que ouvia falar na filha do sacristão, a formosa Mundica.

Hoje, porém, descobrira em si fraqueza demais na sua afeição; fora obrigada a corar por ela, e sobressaltada, querendo fugir de si mesma, Eulália não tinha coragem de comunicar a ninguém o estado do seu espírito, e nem ao menos ousava repreender-se: fora confessar a si mesma um crime sem perdão.

Paula, ao contrário, deixava transparecer uma alegria serena, mas expansiva, que precisava de corrigir-se pelo seu hábito inveterado de conter-se, ainda nos momentos mais difíceis.

O seu espírito, orgulhoso do triunfo conseguido sobre Eulália, tinha necessidade de apossar-se de todo o horizonte, de ter a largueza de quem se espreguiça para afugentar os restos do sono.

O conchego da família do seu amigo era um círculo estreito para a sua respiração: abafava-o. Precisava de ar livre, da posse ampla do ambiente para que os seus pulmões resfolegassem com a amplitude do seu contentamento.

— Vou fazer uma obra de caridade - disse ele a Queiroz: - vou até o Engenho conversar com essa pobre gente que lá tem arranchado;

— É um belo passeio - ponderou-lhe Queiroz -, mas é um pouco distante e você voltará já com a noite.

— Que quer? É o meu oficio.

— O que vale é que faz luar.

— O dever não espera pelo escuro, nem pela claridade.

— Nem sempre - respondeu o professor, batendo-lhe no ombro.

Paula saiu com o seu passo firme e compassado, e enveredou pela ladeira norte da colina, a cumprimentar aqui e ali os paroquianos, que se descobriam todos ao vê-lo. Pouco demorou a estar fora do povoado e a ficar só, no isolamento sussurrante da estrada e no júbilo do seu amor, agora esperançado.

A soledade dava-lhe alguma coisa de fantástico: parecia o luto visitando a devastação. A sua batina negra como que distendia-se por diante do povoado, extensa como a espessa barreira de trevas em que a população inteira vinha abismar-se e asfixiar-se na desesperança e no pranto.

A vegetação combalida, agitada pelo vento da tarde, parecia estremecer ante o hóspede inesperado, as claridades do crepúsculo recuavam diante dele como diante da noite. O cruzeiro do cemitério, sobranceiro aos arbustos de copa emurchecida, envolvia-o com o seu olhar sem pupilas, o agudo olhar da crença que penetra no mais insondável do desconhecido. Mas Paula caminhava com o mesmo passo inalterável, tranqüilo, absorto na sua alegria, sentindo talvez nas suas o calor virginal da mão trêmula de Eulália.

A cerca do cemitério começou a aparecer diante dele, perfilada como um pelotão apresentando as armas ao seu superior, e Paula, estremecendo, malgrado seu, descobriu-se. Os zumbidos dos grilos, sobressaindo no profundo silêncio, avultavam como se fossem gemidos alados de dentro das sepulturas: um coro trépido vindo de além-túmulo.

A solenidade da morte, pairando sobre o terreno limpo do campo-santo, impunha-se com todo o seu respeito supersticioso. Paula sentia a conquista desse poder inexplicável, e tanto que, apesar seu, apressava o passo e fazia ressoar pisadas mais fortes.

Em frente à cancela que fechava o cemitério um outro homem impressionava-se também e punha o ouvido à espreita. Era o Joaquim Maluco, o endemoninhado. Todas as noites o mísero pai vinha exacerbar a sua loucura com uma visita ao jazigo dos filhos, ou, como ele dizia, esperar o vigário, que tinha fugido para muito longe. Esta visita dolorosa foi principalmente a causa de o julgarem endemoninhado, porque havia noites em que, nas violências dos seus acessos, o velho Joaquim, depois de abraçar-se com o cruzeiro solitário, rogar-lhe piedade e justiça para a sua angústia, indignava-se contra o seu silêncio e concluía por um grito sacrílego:

— Ah! Não me respondes? Vou esbofetear-te, cuspir-te na face, filho daquela alcoviteira; espera!

E marinhava alucinado pelo madeiro nu, até chegar aos braços onde julgava encontrar o Cristo, para profaná-lo. Lá em cima, despeitado e receoso, o doido, escarranchando-se no cruzamento dos dois madeiros, atordoava o povoado com uma vozeria horrífica, misto de blasfêmias e de pedidos de socorro, seguido de gargalhadas medonhas.

— Fugiu; fugiu também com o vigário; ele também fugiu! Vejam, ele fugiu porque sabia que eu vinha cá em cima esbofeteá-lo!

O povoado inteiro abalava-se então, e, transido de terror, suplicava ao endemoninhado que descesse.

O Joaquim Maluco, certificando-se de que alguém se aproximava, levou o indicador aos lábios, e, acocorando-se por detrás do esteio da cancela, esperou.

Quando Paula ia passar em frente, o doido, pulando com a elasticidade da loucura, veio colocar-se-lhe em frente, agachado como um tigre preparado para dar o bote.

— Pare aí, pare! - bradou o desventurado... - Então pensava que ela estava aqui sozinha como no confessionário? Vai morrer já, agora mesmo.

Paula, com os cabelos eriçados, a fisionomia descomposta pelo susto, estremecendo convulsivamente, tinha estatelado em face do velho Joaquim. O doido aparecia-lhe com as cores sobrenaturais do remorso; o seu olhar esgarado subjugava-o com a força de um pulso de aço e deixava-o imóvel, mudo e passivo como um cadáver.

— Quer rezar primeiro? - perguntou-lhe o doido. - Venha rezar para morrer.

Travou-lhe violentamente do braço, puxou-o após si até junto do cruzeiro. Paula, tendo nas veias a anestesia do remorso, deixou-se ir, abandonado àquela fúria que, ao mesmo tempo que o torturava, fazia-lhe bem. A lembrança de Eulália, não tendo tido tempo de esvair-se, sobrestava-lhe o pensamento, radiante no abandono da cena da horta, prestes a vergar ao menor aceno audaz. Ser-lhe-ia agradável morrer assim; a morte viria como um desmaio suave, sob o contato carinhoso daquela imagem imaculada.

— Ajoelhe-se e reze - continuou o doido -, eu vou acordá-la; ela está acolá; há de gostar de vê-lo estrebuchar.

Retirou-se, olhando de vez em quando para o vigário, que, de pé, o fitava também, imóvel e silencioso. Mas a alguns passos deteve-se, e voltando-se rapidamente, veio de novo parar diante de Paula.

— Ajoelhe-se - repetiu o desgraçado. - Tem medo da morte?... A minha filha adormeceu sorrindo; o meu filho, o que está ali fora de sentinela, não pestanejou quando teve de partir. Reze!

Livre da pressão do seu temível ameaçador, Paula foi pouco a pouco recobrando o seu sangue-frio habitual. Conservou-se de pé, olhando o doido que se afastava, e sorriu, meneando a cabeça piedosamente. Depois, cruzando os braços sobre o peito, relanceou os olhos pelo cemitério, como quem procura alguma coisa. Encostado à cerca, próximo à cancela, luzia o aço polido de uma enxada, como o olhar facínora, ávido de um crime.

Paula, com o seu sorriso de desprezo, encarou para o instrumento, e depois volveu o olhar à direção tomada pelo doido.

— Coitado, talvez eu tenha de feri-lo ou estrangulá-lo! -resmungou desdenhosamente.

Continuou imóvel à espera, sombrio como a premeditação nefanda de um crime hediondo. A perversidade daquela natureza avultava em todo o seu relevo, na plenitude dos seus contornos. As mangas largas da batina deixavam-lhe ver os pulsos sertanejos, grossos e achatados, traindo a força dos vaqueiros que derrubam com uma laçada os touros bravios, e semelhantes a duas jibóias enroscadas esperando presa. Mas Paula cansou por fim, e com o seu passo firme e pausado, relanceando o olhar em torno de si, retirou-se sem que fosse sentido.

O mísero pai, alucinado, de joelhos sobre uma sepultura na extremidade do cemitério, ocupava-se exclusivamente em acordar o esqueleto soterrado da filha.

Já o vigário estava no Engenho, sentado a conversar com os seus novos habitantes, e quem passasse pela frente do cemitério veria ainda o doido, ajoelhado, batendo com as mãos espalmadas na terra, e ouvi-lo-ia, com uma rouquidão carinhosa, exclamar repetidas vezes:

— Acorda, filha; vem, ele está ali; eu vou matá-lo.


À noite, Eulália e Irena estavam juntas, e, conforme o seu costume, fecharam-se por dentro, na alcova da primeira.

Mais do que a porta de cedro, separava-as do resto da família a abstração em que elas se achavam. A caçula dormia e os velhos, na sala das aulas, jogavam calorosamente a bisca, emparceirados com d. Ana e Chiquinha. Duas caboclas, que eram as criadas da casa, encostadas aos umbrais da porta, espiavam o jogo.

As duas moças, atravessadas na rede, que Eulália impelia de quando em quando, fincando no ladrilho a pontinha do pé, puseram-se a conversar.

— Tem-no visto? - perguntou Eulália.

Irena fitou significativamente a sua amiga e meneou a cabeça, afirmando.

— E não está alegre?

— Você bem sabe que eu não posso ficar alegre quando o vejo; cada olhar seu parece que me afasta de meu pai para sempre.

Estas palavras, proferidas com a sincera acentuação de uma dor verdadeira e profunda, foram seguidas por um longo silêncio, durante o qual as duas moças, balançando-se sem se encarar, olhavam com indiferença para o espelho que as refletia em frente.

— Você já sondou seu pai, Irena? Talvez não se zangue, ele estima-a tanto! - ponderou Eulália. - Cede por força.

— Acredita? Pois era o mesmo que dar-lhe uma facada.

E Irena, sentando-se, desfiou as razões da sua afirmação peremptória:

Tinha-o conversado sobre os Feitosas, a propósito das palavras do vigário; lembrara-lhe que mais de um rio de sangue já havia passado sobre as ofensas das duas famílias e nada mais devia existir entre os seus parentes e os seus rivais.

O velho pai respondeu-lhe, porém, com o laconismo da intransigência:

— Os Feitosas são homens que insultam mulheres, que assassinam as crianças dos seus inimigos; não serei eu, nem filho meu, que os perdoe.

— Então não há nenhuma esperança?

— Nenhuma - suspirou tristemente Irena -, e tenho vontade de dizer-lhe que o melhor para nós ambos é o esquecimento. Mas...

— Não pode - continuou Eulália. - E assim mesmo quando se encontra um embaraço.

— Não posso, minha amiga, não posso.

Pôs-se então a dizer com que profunda dedicação amava Feitosa. Foi através de dois séculos de ódio, separados por um rio de lágrimas e sangue, em cuja correnteza boiavam cabeças decepadas de anciãos, de mulheres e de crianças, recordações tristíssimas das cenas mais bárbaras, destroços de habitações, novelos de fumo ainda prenhes de labaredas de incêndio; foi através da antipatia mais arraigada que se viram. Foi isto em janeiro, em uma procissão de preces. Feitosa estava na paróquia havia poucos dias e era o alvo dos comentários de todos, e só por isso levantou os olhos para ele. Os seus olhares se encontraram, os seus cabelos loiros e a pele muito fina, suando sangue, impressionaram-na. Pareceu-lhe não ser um Feitosa, mas um gêmeo seu, com a mesma alma tímida, com a mesma índole condescendente. Desde logo Irena sentiu que ele também se impressionara consigo, e, de volta da procissão, olhavam-se com um olhar comunicativo, sem sombras, quase sem receio, prestes a ser íntimo.

Em fins de janeiro, Rogério Monte deixou por alguns dias o povoado, para ir até a fazenda, e Irena ficou em casa de Queiroz, onde, pela primeira vez, falou com Augusto Feitosa. As poucas palavras que trocaram entre si foram uma revelação invencível, espontânea, partida ao mesmo tempo de ambos, ardente, expansiva, irredutível. Só mais tarde, quando já a saudade alimentava-lhes a paixão, quando o impulso do coração desmoronava os brios tradicionais, pensaram na rivalidade das duas famílias. Feitosa jurou imediatamente contrapor a espontaneidade do seu afeto à resistência dos seus, mas Irena, certa de que era a única alegria do velho Rogério Monte, hesitou e tremeu pelo futuro. Deveria sacrificar ao egoísmo do coração a honra do pai? O amor respondia-lhe peremptoriamente - sim! Mas a piedade filial aconselhava-lhe que - não! Pensou então em suplicar-lhe, em demovê-lo do pensamento mau que lhe pairava como ave agoureira sobre a integridade do caráter, mas não teve coragem de levar por diante a sua tentativa, porque viu alevantar-se ameaçador, intransigente, o ódio vivaz com que o velho tinha sido aleitado, embalado na meninice, alimentado na mocidade. O seu espírito condescendente conciliou por um adiamento as dificuldades da sua posição, e Irena deliberou continuar clandestinamente a amar Feitosa, apesar de seu pai.

Um dia o noivo falou-lhe em fugir, e tremeu depois da sua revolta. Pediu-lhe que a deixasse, que não a quisesse perder, assassinando seu pai; mas aos poucos a certeza da intransigência paterna habituou-a com o triste pensamento, e foi ela mesma quem, mais tarde, disse que às vezes tinha vontade de fugir.

— E o que há de por fim acontecer - concluiu Irena, enxugando as lágrimas que lhe borbulharam incontinenti.

Osilêncio interpôs-se de novo à confidência, e os vaivéns da rede tornaram-se mais fortes, fazendo ranger a corda nos armadores. De espaço a espaço ouviam-se as risadas e os protestos de Chiquinha, arrebatada no calor do jogo, e a barulhada de todas as vozes, comentando a mão acabada.

— Penso mal, não é, Eulália?

— Não sei, filha; se não houver outro remédio!... Mas pense bem primeiro; talvez se faça por gosto dele: pense bem.

— Qual! - murmurou Irena, meneando a cabeça. - Meu pai não volta atrás o que diz.

— Você está resolvida então?

Irena afirmou com o gesto, mal contendo os soluços, e escondeu a cabeça nos punhos da rede, para ocultar da amiga o rosto envergonhado. Eulália calou-se amigavelmente e, inclinando-se sobre Irena, beijou-lhe a face escaldada pelo pudor.

— Eu também resolvi ainda agora uma coisa contra o vigário - disse Eulália. - Não o quero aturar mais.

— Continua com os seus modos? - perguntou Irena.

— Cada vez mais desabridos; eu sou o seu adufe.

— Mas de onde tirou o vigário estes modos com você, ele que a estimava ternamente?...

— Agora - disse Eulália, sorrindo tristemente -, eu calculo para ser estimada, como da outra vez eu faltava o respeito à religião junto do andor de Nossa Senhora.

— Você calcula? E que ele ainda está doente. Mas você por que não diz isto a seu pai?

— Eu?! - disse Eulália sobressaltada - Nem com você podia falar: foi um segredo do confessionário.

— Ah!

Quando reataram a conversação, Irena parecia alucinada; o seu coração impoluto, ferido pelo golpe desfechado em sua amiga, atinou facilmente com a causa das descortesias insensatas do vigário. Foi com um abraço estreito, com um beijo, longo como o seu sofrimento, que ela começou a revelar à amiga a sua suspeita.

— Você vai ficar mal comigo, Eulália, vai abandonar-me.

— Está doida, menina! - respondeu Eulália, com uma erupção brusca de jovialidade. - Olhe, o melhor é abreviar antes de tresler.

— Antes estivesse doida; mas infelizmente sou eu quem está sendo motivo para seu sofrimento!

— Você?

— Sim; eu pelo Augusto.

— Ah! Que malvado é o tal sr. vigário!

— Você bem disse que nós somos bem infelizes! Eu sou a culpada do que você sofre.

— Você? Que culpa tem você de que eles julguem mal os outros? Deixa-os ! Eu serei sempre sua amiga.

— Mas é preciso desconvencer o vigário, dizer-lhe que se enganou.

— Se eu pronunciasse o nome de Augusto era pior ainda: aquele homem é um perverso.

A última frase foi acentuada com o amargor da convicção, e a fisionomia de Eulália testemunhava a sinceridade com que fora ela proferida. Dir-se-ia que a filha do professor estava pronta para abrir luta com o maior amigo de seu pai; que lhe pagaria ofensa por ofensa, descortesia por descortesia. Mas o eco da voz de Paula penetrou, como um espião, dentro do quarto, e trazia umas palavras cheias de doçuras para o coração de Eulália.

— Onde estão as meninas? - perguntara o vigário.

— Enterrando os vivos e desenterrando os mortos - respondeu Queiroz. - Estão fechadas no quarto a conversar... Aproveita a vaza, Ana, não há mais trunfo fora.

— Contou mal, contou mal! - gritou Chiquinha, rindo muito. - Cá está o valete.

— E aqui um reizinho, minha filha, e você bem sabe que o rei mata.

— Mas não faz a gagosa, não passou escoteira.

— Paciência, mas vocês tomaram capote.

— Boas! Conte.

A voz de Queiroz continuou a penetrar no quarto de Eulália, agora com ecos da contagem, e afinal exclamou o professor:

— E quatro, oitenta e nove, e dois, noventa e um! Passa o capote ali para o vigário.

— Que grande coisa! Quando se está infeliz, tudo acontece.

— Tem razão - interveio Paula -, eu ia ainda agora morrendo.

Eulália, contendo a tempo um grito, buscou esconder a Irena a sua comoção, e perguntou-lhe sorrindo, com a sensaboria da dissimulação:

— Ouve o que ele está dizendo? Que ia morrendo... Irena, que levantara os olhos para a amiga, ficou assombrada de ver como estava descomposta a sua fisionomia.

— O que tem você, Eulália?

— Nada!... não sinto nada.

— Mas está tão pálida!

— É que eu não posso ouvir mais a voz do vigário; mas isto passa. Vamos lavar o rosto, porque você também está com os olhos pisados.

— É como lhes digo - continuou Paula -, fui assaltado pelo Joaquim Maluco, que me obrigou a voltar acompanhado.

Eulália lavava-se sofregamente e apressava Irena, como se lhe quisesse comunicar a própria impaciência.

Quando acabaram:

— Vamos para a sala - disse ela -, antes que nos chamem. Evitamos alguma graça do sr. vigário; principalmente eu.

Entraram na sala e depuseram os seus beijos respeitosos na mão de Paula, que prosseguia em historiar a cena da tarde com o doido.

— Aquele é um perigo para você, vigário - ponderou Rogério.

— É pedreiro livre - riu Francisco de Queiroz -, inimigo do altar.

— Ora, o que se lhe há de fazer? Há maiores doidos que vivem e ninguém os incomoda. Não concorda, não pensa do mesmo modo, d. Eulália?

— Mas esses outros são mansos - respondeu a moça; não querem matar os outros de emboscada.

— É exato, há diversos modos de ser doido.

Quem olhasse atentamente para Eulália veria quanto fel semelhantes palavras lhe haviam coado no coração. Mas felizmente para o vigário só Irena compreendia o amargor que as repassava, e esta limitava-se a desesperar com a sua amiga.

Paula demorou-se pouco; viera só deixar a perplexidade no espírito de Eulália, de certo ainda impressionada pelo que se passara na horta. O efeito estava produzido com mais eficácia do que tinha calculado. Saiu, pois, satisfeito, com o seu passo firme e pausado.

Rogério Monte entendeu também que devia cessar o jogo, e tomou o chapéu.

— Perdoe-me o que eu lhe faço sofrer - disse Irena, mal contendo as lágrimas.

— Não me faça padecer mais, Irena; que tem você com isso ? Você faz-me detestar ainda mais aquele miserável.