Na ausência do vigário alguém foi procurá-lo e deixou com o pequeno seu criado um ofício com a marca Serviço Público.

— Então Sua Mercê não está? Eu podia ir levar a carta na casa... Mas não estou para ver poucas-vergonhas.

O pequeno, sem entender o sentido das palavras que ouvira, respondeu ingenuamente:

— Ele deve estar ali na casa do defunto professor. D. Eulália esteve aqui, chorou muito e saiu correndo.

— É isto mesmo; o patife do seu amo é bom... Eu já estive com o Marciano; sei a história.

O pequeno muito admirado foi relatar tudo à cozinheira, velha muito discreta, mas amiga de saber por miúdo a vida alheia.

— Foi o comboieiro quem me disse, e estava muito zangado.

— Olhem só! uma coisa tão velha; já dos tempos do professor as raparigas diziam que andava coisa entre as moças. Da feita da procissão, aquele recado, não sabe?

— Fui eu que o recebi.

— E na noite da estralada com o Feitosa a que horas ele entrou?

— Nós já estávamos dormindo.

— O barulho foi perto, espantou... Mas, boca fechada e deixe lá o mundo. Ciumadas!... você não entende disso; lave os pratos para o homem jantar.

O pequeno José obedeceu, mas de chofre, parando, perguntou à velha Antônia:

— E não se lembra que foi no outro dia da história com o tal Feitosa que nós vimos a camisa e a volta com sangue, e a água da bacia, hein?

— Cala a boca, rapaz! você não esteja a lembrar coisas! Arrenego.

José calou-se e continuou o seu trabalho, mas, ao pôr a mesa, ainda repetiu com a ingenuidade dos seus 13 anos:

— Se o Feitosa soubesse disto, hein, tia Antônia?

— Do que há de saber, cabra malvado?

— Da bacia, da camisa...

— Estupor dê nesta língua, cabra!

— Tínhamos o conto de réis, logo a rodar!

Antônia, que estava a temperar uma panela e levava a colher à boca para provar, parou de soprar o caldo fumegante e estremeceu, tornando-se carrancuda.

— Oh! rapaz, você não espalhe isto, olhe que o sr. vigário desanca-o.

— Eu não disse por mal, tia Antônia.

Mas o semblante da cozinheira não se desanuviou: dir-se-ia que um pensamento pertinaz a trabalhava profundamente.

— Ai! minha pobre gente! - suspirou, retirando do fogo a panela muito carregada de tempero. - Pobrezinhos! o que será deles por esses sertões da Maria Pereira!


Marciano, ao sair da casa do vigário, hesitou sobre a direção que devia tomar, mas resolveu-se por fim a seguir para a outra face da praça, porque lá havia sombra.

Andava devagar e com a cabeça pendida; ia pensando na resolução que devia tomar definitivamente sobre o seu negócio.

A idéia de ir ao Ceará em procura de Monte fascinava-o, mas ao mesmo tempo acudia-lhe como objeção a dificuldade de viajar agora pelos sertões, carregando todo o indispensável para a vida, e demais disso exposto à crueldade dos Viriatos. Acrescia ainda a má vontade da família, que não lhe perdoaria qualquer desgraça que por fatalidade sobreviesse.

Além disso o vigário tinha mudado o modo de tratá-lo, e conservá-lo-ia para não ver assoalhado o seu segredo. Não havia, pois, remédio senão esquecer o sonho dourado da captura de Rogério, e ficar adstrito ao tinir da cambada de chaves e à corda dos dois sinos da paróquia.

— Com mais dez mil-réis sempre se vai atamancando -pensou o sacristão; - mais tarde farei o resto.

Continuou a caminhar, e já se preparava para ir a casa jantar com a disposição de quem almoçara mal, quando uma pergunta assustadora formulou-se-lhe no espírito, e desdobrou-se numa série de suspeitas.

— E se o vigário me enganasse para tomar tempo?

Nada mais natural: era um homem que não se importava que lhe atassalhassem a reputação, desprezava as murmurações e ria-se com escárnio daqueles que o julgavam servir, informando-o de tais maledicências. Desde que ele pudesse apagar os vestígios do seu crime para com a filha do amigo, não temeria mais que o acusassem; a sua frieza bastaria para deixar duvidosos os mais convencidos.

— Não, eu não lhe deixarei a melhor - pensou o sacristão; - hei de apanhá-lo mesmo lapeando o copázio.

Tinha chegado junto à capelinha e parou sob o telheiro, que servia de campanário, olhando para o chão, distraído a seguir o curso do pensamento que lhe aconselhava toda a prevenção contra o vigário. Mas um som vivo de chocalhar e um estrupido intenso de animais chamaram-lhe a atenção e moveram-lhe a curiosidade.

Deu volta apressadamente à igrejinha e foi colocar-se do lado oposto.

— Como é isso, o comboio já de volta? Anda tudo agora abaixo e acima... Ah! vem quase vazio, não foi muito longe.

Quando a tropa desfilou pela sua frente, os camaradas limitaram-se a cumprimentá-lo e pedir novas do povoado, mas o comboieiro parou.

— Sabe de uma novidade, velho Marciano?

— Não se pode mais vencer com animais até o Aracati, não é?

— Qual! é o diabo, mas sempre se chega; haja vista eu. ~ coisa mais fina: o imperador não manda mais gêneros para os retirantes de cá dos sertões.

— Deveras?!

— Quem quiser há de ir lá para o Ceará; mesmo no Aracati ele já faz cara feia, tem-se descoberto muita muamba, sabe, não é? - muita tratantada. As folhas gritam todos os dias, segundo ouvi falar.

— Então isto vai ser o diabo.

— O que quer você? Pensa que o Antão Ramos faz o que faz à toa?

— Isto sei eu.

— Coitados dos pobres!

— Vai ser uma calamidade.

— A gente do professor está melhor?

— Qual, ainda agora venho de lá; a Eulália está com barriga, coitada.

— Inchação, hein? - É andaço geral.

— É uma inchação que há de acabar no fim de nove meses. Histórias lá com o vigário.

— Que me diz? Pois o velhaco divertiu-se também com ela?

— Segredo de amigo: é uma verdade.

— Qual segredo, nem meio segredo para aquele traste. Aquilo era a pobre rapariga ter alguém que descascasse a faca no diabo.

— Mas o que quer? Ela é sozinha...

— Pobre gente... Faz-me um favor, Marciano? Eu trago aqui uma carta para a casa do professor. Quem escreve pensa que o infeliz ainda é vivo. Você diga lá que foi um retirante do Aracati quem ma entregou.

— Talvez seja do Monte - disse Marciano, olhando muito para o comboieiro.

— Talvez, mas eu não o vi. Até logo; vou entregar as cargas do Antão e um ofício ao tal sr. vigário. Até logo.

— Por entanto! - respondeu o sacristão metendo a carta no bolso - eu entrego logo mais a carta.

Só, e longe dos olhares do comboieiro o sacristão tomou de novo entre as mãos a carta misteriosa e fez menção de abri-la, mas hesitou; e, coçando a cabeça, resmungou:

— Diabo! eu devo ler esta carta, mas tenho medo. Se aquele honrado homem soubesse? - acrescentou assinalando o comboieiro; - se o destemido Estevão desconfiasse apenas, matava-me! Não, o melhor é não arriscar; demais posso desanimar da minha empresa; esperarei pois.

Tornou a meter a carta na algibeira e caminhou apressadamente para casa precipitado, inconsciente como quem acaba de achar um tesouro e descrê da sua própria felicidade. Mundica esperava-o impaciente e assustada, costurando à sombra das árvores da entrada, e, ao vê-lo apressado correu-lhe ao encontro com a sofreguidão da curiosidade.

— Decidiram alguma coisa, meu pai?

— O vigário prometeu abandonar Eulália.

— Não basta prometer; é preciso que ele o faça logo, e eu duvido...

— Vejamos primeiro, filha, pode ser.

— Não acredito; eu só ficaria contente se visse aquela delambida fora da paróquia.

— Com o tempo há de acontecer isto mesmo.

— O sr. vigário prometeu também?

Marciano abaixou os olhos e tartamudeou querendo mentir, mas depois respondeu com firmeza:

— Não, mas arranja-se: confie você em mim, tenho meios para obrigá-lo a fazer o que eu quiser.

Mundica não respondeu, mas inundou o rosto do pai com o seu olhar meio irritação, meio ternura, e pensou consigo:

— Eu hei de fazê-la sair, ou então nem eu nem ela.

Paula assomou na extremidade da cerca e, olhando para dentro, exclamou afinando a voz no tom de boa camaradagem:

— O bom filho à casa torna.

— Espere, que eu vou repicar os sinos - disse Marciano, dirigindo-se para a cancelinha fazendo-a girar sobre o pé. - A casa está sempre ás ordens.

Mundica não teve forças para dar um passo. Amolentada pela satisfação de ver o amante, parecia a estátua da hesitação à espera de um afago lascivo. Causava-lhe uma sensação suave de bem-estar a oscilação do passo do vigário, que afigurava-se-lhe uma aparição que magnetizava-a, e tinha desejos de servi-lo como escrava, e hospedá-lo como a hebréia lendária, lavando-lhe os pés em óleo perfumoso, dizendo-lhe palavras ternas, que significassem confiança e cordialidade.

O vigário pegou-lhe na mão abandonada, colocou-a entre as palmas da sua e fitando-a com um sorriso:

— És mesmo uma santa, Mundica! Não tens uma palavra áspera para mim, que a mereço e muito.

Entraram na saia e sentaram-se todos silenciosos, até que Paula reatou a conversa.

— Há alguma novidade, Marciano?

— A chegada do comboieiro do Aracati; ele trouxe carta para Vossa Mercê.

— Veio o carregamento?

— Diz Estevão que não vem mais nenhum, porque deixaram de dar socorro aos pobres do sertão; quem quiser há de ir para o Ceará.

— Oh! isto é grave - Mande-me buscar a carta; já deve estar em casa.

— Vou eu mesmo.

Paula e Mundica ficaram sós: ele contemplando a moça com o seu olhar desdenhoso, ela cabisbaixa a sacudir as pernas trançadas, que se desenhavam no vestido sem goma.

— Vamos ficar bons amigo, como outrora, não é? -perguntou o vigário.

— Eu nunca fui sua inimiga.

— Sabia bem disto, mas quis experimentar-te.

— Deveras ? - sorriu Mundica. - Pois agora vou eu também fazer outra experiência.

— Qual?

— Peço-lhe que faça com que Eulália deixe a paróquia; só assim...

— Mas você bem vê que isto é um impossível...

— Não vejo impossível nenhum, desde que o senhor queira.

— É uma infeliz rapariga, vocês andam caluniando-a; eu nada tenho com ela.

— Vai ser mãe de um filho seu, é o que o é, e o senhor esqueceu-me por ela.

Paula conseguiu sufocar a comoção que o assenhoreava, e com uma risada de fingida bonomia:

— Quem te meteu isto na cabeça, Mundica? Olha que é tão verdade como eu não estar agora aqui.

— Eu não sei se é verdade, ou não - respondeu resolutamente Mundica. - Se ela ficar, hei de espalhar por toda a parte que é assim, e só assim.

— E eu - respondeu o vigário contrariado - hei de reduzir vocês a não ter o que comer; percebeu?

— É o mesmo - disse Mundica friamente.

Calaram-se e ficaram a olhar indiferentes para as árvores; Mundica muito calma, Paula carrancudo, com os olhos brilhantes como os de um tigre que se vai assanhando.

— Vocês pensam que eu sou agora o brinquedo da paróquia, não?

— Eu não penso nada.

— Pois eu hei de ensiná-los... hei de convencê-los de que se enganaram, foram injustos comigo.

Depois de corrigir a frase desabrida, Paula ajuntou o afago fingido à sua hipocrisia e caminhou para Mundica, que o esperou com a mesma impassibilidade, deixando-se abraçar e beijar sem resistência.

— Por que não hás de ser sempre boa assim? Para que ouves teu pai? Não te zangues; eu prometo-te que dentro em três dias Eulália nos deixará em paz. E inocente, mas... é preciso não parecer culpada.

— Jura-me?

— Juro.

— E se não o fizer?

— Faze tu o que entenderes.. . Salvo se ficar provado que não há verdade no que diz teu pai.

Mundica perdeu um pouco da frieza com que malgrado seu tratava o amante, e pôs-se a desfiar as queixas que tinha de tão prolongada ausência, que ela não sabia como não a tinha matado.

— As mulheres são muito mais sinceras do que os homens; o senhor nem pode imaginar o que nós sofremos - concluiu Mundica.

— Talvez; mas eu posso mais ou menos avaliar. Juro-te, porém, que não sofrerás outra vez por mim. Eulália há de aparecer de novo aos teus olhos tão pura como antigamente descansa.

— Cá está o ofício, sr. vigário - disse Marciano, aparecendo à porta.

E voltando-se para a filha, a sorrir:

— Mulheres! Veja como já está com uma carinha de Páscoa.

Paula pôs-se a ler o ofício e por fim exclamou:

— E exato, estão suspensas as remessas para o sertão. Que inferno vai ficar isto! Ninguém poderá mais ficar aqui. Eu não serei o último a sair.

— Parte, então? - perguntou Mundica, sobressaltada.

— De certo modo; não hei de morrer à fome.

— Ah! - exclamaram a um tempo Marciano e Mundica.

E olharam-se enquanto o vigário, abstrato, pôs-se a reler o ofício.

— O pior é que eu não sei como acomodar os retirantes -disse Paula; - nós já não temos nada para dar-lhes. Antão Ramos cobra mundos e fundos, mas no fim de contas os retirantes estão à ração magra.

— Então o sr. Ramos meteu o dente na esmola? - perguntou Marciano com intenção.

— Não digo isso; falo das contas, que são grandes.

— Ah! isto é outro contar... eu pensei que...

— Você pensa sempre assim. Estás ouvindo bem, Mundica?

— Engano de ouvido, sr. vigário.

— Ora esta - ponderou Paula. - Então não há mais socorro? Vou já entender-me com Antão Ramos.

Tomou o chapéu sorrindo, e abraçou Mundica despedindo-se.

— Estamos bons amigos, não? Queira Deus que isto continue. O Marciano já tem o seu auxílio, e está contente; porque diz ele que sem comida não há amor.

— É verdade - concordou o sacristão.

Mas logo que o vigário afastou-se disse voltando-se para a filha:

— O que te disse o monstro?

— Que Eulália partiria, se não se provasse a sua inocência.

— E você?

— Eu disse que sim!

— Ainda não o conhece, e já devia conhecê-lo. Ela partirá, porém com ele, e você ficará com uma bonita cara. Não o ouviu dizer que não seria o derradeiro a sair daqui?

Os olhos de Mundica fuzilaram o clarão temeroso do ciúme e as lágrimas deslizaram-lhe pelo mortal palor das faces.

— Não pense nisto, meu pai; eles hão de pagar-me primeiro.