Os guardas, aproveitando-se da parada da multidão no seu ímpeto vingativo, puxaram a assassina para o interior da casa da autoridade, que, se postando na porta, impediu a invasão.
Todo o despeito popular limitou-se então a protestos contra a proteção com que se tratava uma fera, que havia assassinado para comer o próprio filho.
— Se lhe parece, deixe em liberdade o demônio.
— Mande-a enroupar e montar casa; ela merece.
Estas e outras invectivas à autoridade não foram, porém, respondidas e o ajuntamento foi a pouco e pouco se desfazendo.
Quando a multidão rareou, duas mulheres encontraram-se face a face; uma trazia nos braços o filho da assassina, outra segurava pela mão uma criança.
Um olhar de cólera foi trocado entre elas, mas a que trazia nos braços o filho da assassina, como se de súbito se arrependera de haver correspondido à provocação da outra, quis voltar sobre os seus passos.
Eulália, que era a que tentou voltar, foi porém detida pela outra, a vingativa Mundica, que veio postar-se-lhe diante.
— Eu recebi a esmola - murmurou a filha do sacristão o venho dar-lhe os agradecimentos.
Eulália calou-se e buscou desviar-se para seguir.
— Escute - acrescentou Mundica, travando-lhe o braço -, não pense que me mete medo com o seu desprezo. Eu recebi a esmola, mas quero saber de onde você a tirou para dar-ma.
— Deixe-me em paz, Mundica, eu nunca a ofendi; por que há de você querer maltratar-me?
— Não, nunca me ofendeu - sorriu Mundica -, mas a verdade é que eu estou na miséria e que você vive feliz.
— E que culpa tenho disto? Deixe-me sair, queixe-se de quem é a causa da sua desgraça.
— Quer sair, não? Sairá; porém, antes de tudo, há de dizer de onde lhe vem o dinheiro que tem.
— Deram-mo.
— E a pessoa não tem nome?
Eulália calou-se. Nem a sua dignidade permitia-lhe que respondesse a Mundica, nem devia pronunciar o nome de Virgulino, principalmente agora que tão lamentosa desgraça havia caído sobre a sua família.
— Cala, não é assim? Pois eu sei como lhe veio às mãos esse dinheiro...
Julgando que, por qualquer circunstância, Mundica tivesse conhecimento da sua estada na vendola e das suas relações com o bandido, Eulália não pôde esconder uma comoção violenta, que, por sua vez, não passou despercebida a Mundica.
— Pode dizer-me qual dos dois foi o que se incumbiu do roubo?
— Largue-me, pelo amor de Deus - murmurou Eulália forcejando por livrar o punho da mão de Mundica; - você está acostumada às brigas, eu não.
— Mas está acostumada ao roubo... Fale, grite, chore, não me foge; eu quero deslindar o caso diante do subdelegado. Você não passa de uma ladra!
A injúria foi vibrada em voz tão alta que chamou a atenção dos poucos circunstantes que ainda se achavam no lugar, e demais disso assustou de tal forma a mísera injuriada que ela murmurou, humilhando-se:
— Você bem sabe que eu não sou capaz de furtar, Mundica. Eu não mereço que você me faça mal, só por haver tirado do que tinha para repartir consigo.
— Eu também faria o mesmo, se fosse por minha causa que outra pessoa estivesse quase morrendo de fome. Boa caridade, minha ladra.
À medida que a atenção convergia para o grupo, Mundica alterava o tom, de modo que pudesse ser ouvida.
— Homem, aquilo creio que é estralada nova; elas estão a se chamar ladras.
— Não, uma delas é que é a ladra; não a viu quase ajoelhar-se diante da outra?
Diversas pessoas se aproximaram e Mundica, triunfante, continuou:
— Pode pedir até pelas cinzas de meu pai, eu não hei ficar enxovalhada por sua causa. Vamos à presença da autoridade.
E puxou pelo braço da outra, obrigando-a a reentrar na casa do subdelegado.
Ao passo que Mundica gesticulava, levantava estrepitosaente a voz e fazia requebros canalhas, Eulália, traspassada vergonha e de receio, limitava-se a chorar.
— Então o que temos? - perguntou o subdelegado.
— Foi esta mulher que furtou no pouso de... uma carteira do comissário, com mais de um conto de réis.
— Eu?! - interrogou Eulália admirada. - Eu?! – repetiu a sufocar-se em soluços.
Mundica sentiu falecer-lhe a coragem para prosseguir na acusação, tanto mais porque ela parecia-lhe agora de todo o ponto caluniosa. Mas o desejo de vingança, o grito selvagem do ciúme, veio logo fortalecê-la e a odienta rival acrescentou:
— Você mesma, não podia ser outra.
A autoridade, que simpatizava com Eulália por vê-la oferecer-se para tomar o encargo de cuidar do filho da assassina, interveio em favor da infeliz.
— E que prova tem você para fazer uma acusação destas?
— A prova é que esta moça era filha do professor de B. V. que morreu pobre como Jó; que ela saiu da paróquia muito pobre, que a família dela ficou tão pobre que talvez já tenha morrido à fome, e que ela do pouso de... para cá tem dinheiro e tanto que pode dar esmolas.
— Mas isto não é prova, pode ser que lhe dessem dinheiro...
— Mas se, na véspera da saída dela do pouso, sumiu-se uma carteira do comissário?...
— Isto ainda não é prova.
— Mundica acusa-me de ter tirado a carteira, mas eu não estive no abarracamento nem fui à casa do comissário; como, pois, havia de furtar? Ela bem sabe que a minha educação não foi essa.
— Nem a minha. Você tirou o dinheiro para me fazer mal. E de mais corram a nós duas, e veja-se quem é que traz dinheiro.
— É o que se deve fazer - ponderaram os circunstantes; - não há testemunhas nem pró nem contra, o dinheiro é quem fala a verdade.
O subdelegado mandou que ambas mostrassem as algibeiras dos vestidos e Eulália, sem relutar, tirou do bolso a carteira que lhe tinha sido dada por Virgulino.
— Eu tenho dinheiro nesta carteira, mas não é a quantia que sumiu-se ao comissário.
— É que você já deu destino ao que falta.
O dinheiro foi contado, mas com grande satisfação de Eulália reconheceu-se que a quantia não excedia a cem mil-réis.
— Já vêem que não é a quantia de que fala aquela mulher - ponderou o subdelegado.
— Vossa Mercê não sabe quem é esta rapariga - exclamou Mundica; - desde que ela foi amante do vigário de B. V., tem cometido todos os crimes. ~ tão boa que a família não a quis junto a si.
Eulália, que não havia ainda perdido o recato da mulher honesta, não sabia responder às acusações de Mundica, senão admirando-se da perversidade que as gerava, e a sua causa começou a perigar. Os circunstantes aceitavam todos, como prova de que Mundica dizia a verdade, o fato de se encontrar a carteira em poder de Eulália.
Observaram uníssonos:
— O melhor é retê-la até que prove que não é culpada.
O subdelegado lançou um olhar penetrante a Eulália, que tiritava debulhada em lágrimas. Dir-se-ia que esse olhar, como o brilho de uma lâmpada sobrenatural, tentava dissipar toda a sombra em que porventura a acusada se quisesse ocultar, e irradiar no íntimo da consciência dela. — Como obteve este dinheiro? - perguntou ele. - Diga quem lho deu.
Eulália abaixou os olhos e prorrompeu em soluços.
— Isto é o que ela não pode dizer - sorriu Mundica; - foi pilhada com a boca na botija.
— Não furtei - respondeu humildemente Eulália - deram-mo.
— Tem a boca dura como um poldro xucro - ponderaram os circunstantes. - Não confessa; cadeia com ela.
— Esteve ou não no povoado quando sumiu-se o dinheiro? - perguntou a autoridade.
— Estive - murmurou Eulália -, mas não conheci o comissário.
— Não esteve arranchada no abarracamento?
— Não; passei dois dias na casa da irmã do sr. vigário.
— Quando chegou ao povoado já trazia o dinheiro?
— Sim, senhor.
— Mas, não era tão pobre em B. V.? Como pôde conseguir tamanha soma?
“É que o vigário deu-lha” - pensou Mundica; - "hei de perdê-la, desgraçada. Há de pelo menos provar a cadeia."
— Saí de B. V. sem um vintém, mas em caminho encontrei com um homem, a quem havia prestado um pequeno serviço e ele deu-me esta carteira. — E qual foi o serviço que mereceu tamanha recompensa? Eulália calou-se e os circunstantes resmungaram:
— Está bem arranjada a desculpa, mas não pega, neste tempo não há quem faça disto.
— Se não diz quem lhe deu o dinheiro, eu me vejo obrigado a mandá-la deter até que se justifique. Você não tinha eira nem beira em B. V.; não podia também arranjar esta soma em viagem porque não há hoje meios de fazê-lo. Entretanto na sua passagem desapareceu um dinheiro; é sua obrigação dizer a verdade para que a autoridade saiba o que deve fazer.
O nome de Virgulino veio pairar à flor dos lábios da infeliz, porém a vergonha evitou que ele fosse proferido.
— Eu não posso deixar de tomar uma providência muito séria, minha filha, fale; defenda-se.
— Eu falo pela minha ama, sr. juiz - exclamou da porta o camarada, que tinha ficado perplexo ouvindo a acusação feita a Eulália. - Esta mulher - disse apontando Mundica - era amante do comissário de... Há cinco para seis noites, quando ela se retirou da casa do comissário, este deu por falta de um conto de réis, e deu-a como ladra desta quantia.
— Eu não nego que assim fosse - acudiu Mundica- mas o que é verdade é que eu não tive nem com que comprar um pires de farinha, e outra retirante, como eu, tem até para repartir com os outros.
— Com você, que é uma ingrata, que estava a morrer de fome e a quem ela deu metade do que trazia para socorrer à família expulsa de... por sua própria causa, Mundica.
Mundica sentiu-se momentaneamente confundida, mas o sangue-frio voltou-lhe de pronto e inspirou-lhe uma evasiva feliz.
— Eu não falo sem provas. Quando fui acusada pelo comissário, não invoquei o nome de Eulália, o que serve para mostrar que não é por ódio e muito menos por ingratidão que eu falo. Sabia que ela estava no povoado... mas não quis lançar sobre ela a pecha de que eu tanto me horrorizava. Mas hoje, que ela se apresenta com dinheiro, eu estou no meu direito obrigando-a a explicar a origem da sua fortuna.
— Ela não atribuiu a Eulália o crime, quando foi acusada no abarracamento? - perguntou a autoridade ao camarada.
— Não - respondeu este -, mas também é verdade que, logo que o fato tornou-se público, o comissário fez retirar a golpes de chicote Mundica e a sua família.
— Diga-me, onde está a sua família? Quero vê-la para poder fazer o meu juízo - disse a autoridade; - mandá-la-ei chamar.
— Eu não sei onde ela se acha.
— É o que eu já disse: desde que se fez amante do vigário Paula, brigou com a família para andar mais à solta.
— É verdade o que esta mulher está dizendo? - perguntou a autoridade a Eulália.
— É exato que eu me separei dos meus parentes, porém não fui por eles expulsa, nem lhes quero mal por isso.
A autoridade, visivelmente contrariada, porque certa da inocência de Eulália, via-a entretanto comprometida no juízo geral, e murmurou:
— Não tenho remédio senão tirar isto a limpo, e, para fazê-lo, ambas vocês ficarão às minhas ordens.
— Tenha pena de mim por esta pobre criança - soluçou Eulália; - a prisão vai prejudicá-la, e o sr. juiz não há de consentir que por uma calúnia sofra eu e este desgraçadinho.
— Disse que conhecia o vigário Belmiro e tanto que pousou na casa da sua irmã.
— Dois dias.
— Ele informará a seu respeito, qual o seu procedimento, a sua entrada e saída do povoado.
Eulália, comovendo-se inexplicavelmente, soltou um ai aflito ao ouvir as últimas palavras da autoridade e proferiu com um soluço:
— Estou perdida, meu Deus, eu não me despedi da família quando me retirei de lá!
Esta declaração de Eulália foi considerada uma circunstância agravante pelas pessoas presentes, que, por este simples fato, decidiram-se logo a favor de Mundica.
— Não há dúvida - ponderaram; - ela que fugiu alguma razão teve.
— Deixe ficar aí a criança - disse o subdelegado dirigindo-se a Eulália; e, voltando-se para dois dos circunstantes -. vocês façam-me o favor de conduzir estas duas mulheres até a cadeia.
A ordem do subdelegado foi cumprida pelos circunstantes e por Eulália, que entretanto demorou-se em abraçar e beijar o filho da assassina.
— Não sei por que - sorriam os circunstantes -, mas a verdade é que os criminosos têm sempre uma grande predileção pelos outros.
Mundica saiu desembaraçada e a sorrir, ao passo que Eulália mal podia mover-se. A ordem de prisão pesava-lhe sobre o caráter como se fosse um rochedo que lhe houvessem prendido aos pés.
Na porta da casa estava parada a família de Mundica, que se lhe dirigiu com a desenvoltura de uma virago:
— Não tenham medo, eu vou presa, mas não me hei de demorar muito lá. E depois, mais vale um gosto...
— Que gênio soluçou Amelinha. - Não sei de quem é que ela puxou tanta perversidade.
— Até logo - exclamou alegremente Mundica.
O homem que seguia Eulália impeliu-a brandamente para fazê-la caminhar e o subdelegado, que chegara à porta, murmurou com azedume apontando Mundica:
— Se os ânimos não estivessem hoje exaltados, eu havia de ensiná-la.
Acompanhadas pelos circunstantes, Eulália e Mundica puseram-se a caminho; a primeira insultada e a segunda felicitada pelos comentários gerais.
— Quem não deve, não teme.
— O crime é quem a faz andar devagar; não pensou que se viesse a descobrir tão cedo.
Quase à porta da cadeia, que ficava a pouca distância da casa do subdelegado, os olhares de Eulália e de Mundica encontraram-se com o de um cavaleiro, que era desconhecido para todos, mas que entretanto mostrava conhecer algumas pessoas do ajuntamento.
O pajem, que seguia o cavaleiro, veio por ordem dele informar-se do que se passava e perguntar, ao mesmo tempo, onde podiam ser encontrados o pároco e o subdelegado.
— Ambos em casa - responderam; - quanto ao que está vendo é a prisão de uma ladra.
O cavaleiro dispunha-se a galopar para apressar a chegada à casa da autoridade, quando um clamor o deteve:
— Lá vai ele acompanhando a assassina do próprio filho, a fera.
Adiantando-se do grupo, o cavaleiro dirigiu-se a galope até a porta da cadeia, e entregou ao subdelegado uma carta da parte do vigário Belmiro.
— Nem de propósito; o senhor vem de lá da freguesia?
— Parti ontem.
— E estava lá quando foi feito um roubo ao comissário?
— Feito por uma tal Mundica, não é verdade?
— Ela nega, e atribui a uma outra, chamada Eulália, o crime.
— É uma infame, aquela perdida; juro-lhe em como é uma calúnia, para tomar uma vingança miserável contra a outra. Queira ler a carta.
O subdelegado rasgava a obreia que fechava o papel, quando o grupo aproximou-se.
— Deixem em liberdade esta moça - disse ele assinalando Eulália; e dirigindo-se a esta: - pode retirar-se.
O cavaleiro, que havia dado as costas ao grupo, olhou de através para ver a direção tomada por Eulália.
— Conduzam esta outra para dentro, e esperem até que decida qual o destino que lhe devo dar.
Houve geral perplexidade da multidão, ainda despeitada por não ter podido efetuar justiça bárbara na pessoa da infanticida.
— Que vergonha: mosca-morta com uma assassina e cruel com uma inocente - murmuravam.
O subdelegado, que havia terminado a leitura, teve um movimento de surpresa e caminhou para o desconhecido.
— Queira perdoar-me qualquer desatenção; não tinha a subida honra de o conhecer, sr. vigário.
— Queira perdoar-me o vestuário; sirvo-me deste meio para evitar um escândalo. Pela carta sabe que fui torpemente caluniado em B. V., e para maior tristeza minha, com esta pobre menina que V. Sa. acaba de pôr em liberdade.
— A outra argumentou com esta circunstância.
— Ah! Ela tem razão, era filha do meu sacristão, e pensavam ela e o pai que tudo quanto pertencia direta ou indiretamente à igreja lhes pertencia.
Sorriram ambos, e o subdelegado perguntou:
— E a respeito do furto do dinheiro, o que hei de eu dizer?
— Que, felizmente, já apareceu a quantia furtada. Tem aqui V. Sa. uma prova evidente para dar, é uma carta do próprio comissário, que comunica ao vigário Belmiro haver encontrado a latinha no lugar que foi designado pelo seu hóspede.
— E este hóspede, era vossa reverendíssima?
— Exatamente; havia saído à noite para espairecer e passei pela casa do comissário, que, como sabe, mora na mesma rua em que reside o vigário. Vi então dois vultos dirigirem-se para a extremidade da rua e aí enterrarem no areal um objeto. Quando ouvi que o comissário tinha sido furtado, lembrando-me do caso, comuniquei ao vigário.
— E foi encontrada a quantia exata?
— Pode afirmá-lo sob palavra de honra. O pajem que me acompanha é do lugar; ele deve conhecer a Mundica, sabe do fato e pode já referi-lo.
— Bem me pareceu que a tal Mundica mentia, e que era ela a verdadeira autora.
— Eu não juro que fosse ela, mas juro que não foi Eulália.
— Não ficou averiguado então.
— Eu fui a única testemunha, e não pude reconhecer os vultos, quando procediam ao enterramento do furto.
— Neste caso, nada se deve também fazer à Mundica.
Paula, que temia o encontro com Mundica, porque tinha certeza da sua perseguição, ponderou com um suspiro:
— É certo que Mundica pernoitava na casa do comissário; que ambos dormiam no quarto em que estava o dinheiro; que à noite Mundica pediu ao comissário que lhe desse dinheiro para que ela se retirasse temporariamente do lugar; é certo também que o comissário mostrou-lhe o dinheiro que tinha em seu poder e que na mesma noite deu-se o roubo.
— É, pois, quase certo que não podia ser senão Mundica a autora do furto, porque ninguém senão ela podia saber onde estava o dinheiro.
— É pelo menos o que parece.
— Neste caso, o melhor é deixá-la ficar aí de molho, até que venham notícias de lá.
— Eu não faria assim; perdoe-me V. Sa., eu dava apenas exemplo. Em épocas de miséria tudo é possível e não se pode ser severo. Detinha-a por uma semana. E consigo pensava Paula:
"É o tempo necessário para que Eulália siga até Baturité, e daí por diante não tenho nada mais a temer".
— É o que vou fazer - disse o subdelegado, e, apontando a Paula o caminho da casa: - queira esperar-me lá; tenho muito que fazer aqui.
"Bem, cheguei uma vez a tempo" - pensou Paula, que, distanciando-se do grupo, dirigiu o olhar para o lado que Eulália havia tomado.
Ela caminhava apressadamente e o vigário, como se fosse pela força de uma torrente, seguia a mesma direção. No seu olhar brilhante a paixão tocava rebate ao coração deveras amargurado, convidando a dessedentar-se nas carícias Eulália, a escrava submissa de outrora, não ousaria negar.
— Não é na casa do subdelegado que Vossa Mercê pousar?
— É - respondeu Paula contrariado.
— Então já estamos quase à porta; é ali. Paula teve um sobressalto semelhante ao de quem é de e acordado, e, para não ter de parar, observou:
— Devemos ir primeiro entregar a carta ao pároco; depois pensaremos na casa do subdelegado.
— Se Vossa Mercê quer ir à casa do vigário, temos de voltar; já lá ficou.
Vendo que para guardar conveniências era obrigado a parar, porque se continuasse a seguir Eulália todos o perceberiam, Paula resignou-se a voltar em procura do vigário, a quem principalmente vinha recomendado.
À porta, não podendo resistir ao desejo que tinha de falar à Eulália, de conciliar-se com ela, de pedir-lhe, enfim, a dedicação do passado, Paula perguntou ao pajem:
— Reparou naquelas mulheres que iam presas?
— Uma era a Mundica.
— A outra seguiu por ali; não deve ir longe; você acompanhe-a e venha dizer-me onde ela está pousada.
Durante a manhã inteira Eulália ocupara-se em procurar pela vila a família, e foi com este fim que se dirigiu à casa da autoridade, para onde a maioria da população era atraída pela notícia do crime descomunal da mulher de Virgulino.
Aí a esperavam, além de uma desilusão, os sofrimentos que lhe ocasionou a sua presença em tal lugar, e quando, por uma razão que não sabia explicar, viu-se livre da prisão, a infeliz caminhou a esmo, apressada como se ouvisse após si os passos da justiça.
Na caminhada que levava, embarafustou pela feira, sem reparar nos ditos e nos olhares que a sua beleza, embora machucada pelo tormento, provocava. nos circunstantes. Não reparou também em um homem que, sentado em uma das saídas da feira, com o queixo fincado nas palmas das mãos, amargurava-se em silêncio, como uma fermentação de plantas venenosas.
Depois de haver passado por ele, o homem levantou-se como alucinado, e puxou-a bruscamente por um dos braços:
— É a minha boa ama - exclamou ele. - Eu estava aqui parafusando como havia de convencer esta gente de que a minha ama era inocente.
— Estou felizmente livre, meu amigo - respondeu Eulália - e quero certificar-me de que não estão mais aqui minha tia e minhas irmãs. Quer você acompanhar-me?
— Até que Vossa Mercê possa sair da vila; para adiante não, porque tenho também família e devo cuidar dela.
— Volta então?
— Amanhã, uma vez que a minha ama já não corre perigo. Eulália, depois de repetir os sinais da sua família e de recomendar ao camarada a maneira pela qual havia de dirigir-se a ela, caso a encontrasse, separou-se do seu honrado companheiro.
— Assim tenho a certeza de que não fica um único canto da vila sem ser examinado, e se elas estiverem aqui eu as encontrarei por força.
A pesquisa recomeçou com todo o ardor da piedade fraternal de Eulália, mas em vão, porque já d. Ana e as sobrinhas haviam deixado a vila.
O tratamento que era dado aos retirantes aconselhou à prudente senhora não demorar-se ai. Ainda na véspera da chegada, um sério conflito se havia travado entre a comissão, os seus empregados e os famintos, que, açulados pela fome, arrombaram o armazém do governo e tentaram assassinar um dos comissários. A punição do delito foi tremenda severidade e de justiça. Não só os chefes do assalto foram presos e metidos no tronco, mas as próprias mulheres foram vergastadas em público. Para que o exagero da pena chegasse ao máximo, mandaram prender todos aqueles que eram acusados pelos empregados, de modo que muitas pessoas, que não haviam tomado parte no acontecimento, foram castigadas. Além disso corria a fama de que a beleza das mulheres o aferidor das necessidades das famílias, e os empregados, provê-las, exigiam dos chefes que fossem as filhas, as esposas e as irmãs que as relatassem.
D. Ana julgou mais acertado vender os poucos objetos que lhe restavam e pôr-se de novo a caminho e sem demora. Não podia ser mais infeliz do que tinha sido, e além disso a estrada, muito mais habitada do que o interior do sertão, acenava-lhe como um abrigo em caso de penúria. Partiu, pois, demora em busca da esperança derradeira, que lhe ficara do passado de felicidade: encontrar-se com o velho Monte na capital da província.
Só à tardinha Eulália convenceu-se de que não podia descobrir a família em Quixadá, e, desanimada, fatigada, hesitou sobre a deliberação que devia tomar. Deveria seguir ou permanecer?
As hipóteses encontroavam-se no seu espírito, julgava impossível que d. Ana pudesse já haver passado pela vila, quando, além das meninas menores, tinha ainda a caçula para demorar-lhe a marcha. Por outro lado a estrada geral para a vila não dava ocasião a que os viajantes se desgarrassem, e portanto não era possível que d. Ana se houvesse desviado. Não podia ser também que estivesse ainda na vila, abrigada em qualquer casa, em que chamassem a comiseração para tamanha desgraça?
Esta hipótese, que era a menos justificável, mas que se fortalecia nos sentimentos generosos de Eulália, sobrepujou a todas, e a infeliz resolveu demorar-se na vila.
— Eu partirei amanhã, visto que a minha ama já não corre perigo - disse o camarada ao saber da resolução de Eulália.
Este aviso impunha à moça a obrigação de pagar na mesma ocasião os serviços do camarada, e Eulália, que estava na feira, onde viera encontrar-se com o seu companheiro, levou a mão à cintura.
— Ah! Ainda não fui buscar a carteira na mão do subdelegado. Espere-me um pouco, e, enquanto eu vou, arranje por aqui um lugar em que possamos pousar.
Quando Eulália se afastou, o pajem de Paula, que, ora a cavalo, ora de pé, a havia acompanhado sempre, aproximou-se do camarada e perguntou-lhe com a familiaridade própria dos sertanejos se aquela moça não era uma das que tinham sido presas.
Recebendo resposta afirmativa, o pajem, querendo informar-se do destino que Eulália ia tomar, entabulou uma rápida conversação com o camarada.
— Foi uma alhada de mil diabos, hein? Quase que a pobrezinha vai parar no tronco.
— Mas Deus protege os seus, e, como ela é uma pérola, achou quem a defendesse.
— É verdade; por fortuna, o homem a quem eu venho acompanhando sabia do negócio da Mundica, e pôde deslindá-lo.
— Aquela é que é uma peste! Passa fora, demônio! Aquela Mundica é mulher para dizer que Deus não é Deus.
— Má casta de gente. Eu não sei como a sua ama tem coragem de ficar aqui morando, quando a Mundica também fica. Mais dia menos dia, arma outra estralada...
— Agora ela já está conhecida, a peste da odienta, e além disso a ama só se demora aqui uns dias, para ver se encontra a família.
— Mas neste tempo mesmo...
— Quando a ama voltar, eu ainda hei de ver se lhe dou um jeito. Ela foi à casa do subdelegado, e não tarda aí. Ainda veremos se ela fica.
— Pois fale com ela, homem, diga-lhe que é bom ter cautela, e que é melhor fazer mais umas léguas, e ir descansar em Baturité.
— Havemos de ver isto - respondeu amavelmente o camarada, e perguntou ao pajem: - você que é mais sabido por aqui, não me dirá onde a gente poderá pousar aí por uns dois ou três dias? Está tudo isto tão mudado com a seca, que é custoso arranjar-se até quem dê uma sede de água.
— Pagando, acha-se sempre, vamos perguntar em qualquer venda.
Caminharam alguns passos e perguntaram em uma pequena vendola; mas, desde que o camarada informou que Eulália vinha só, negaram recebê-la. A mesma recusa foi feita em diversas casas, até que afinal o pajem ponderou:
— Homem, o melhor é não procurar muito; por aí há casas de algumas pessoas que não são muito lá para que se diga, mas que sempre servem para dormir. Vamos bater em uma delas?
— É o único recurso.
— Dentro em pouco estava arranjada a pousada para Eulália, e o pajem se despedia do camarada.
— Vou para a casa do subdelegado; lá no povoado, na casa do vigário, ficamos amigos, está dito?
— Dito! - respondeu o camarada apertando-lhe a mão.
Eulália, que não se demorou na casa da autoridade, encontrou-se ainda com o pajem a pequena distância da feira, e, admirada pelo cumprimento profundamente respeitoso que este lhe dirigiu, perguntou ao camarada quem era aquele homem.
— Um conhecido lá do povoado, e como sabe que eu estou ao serviço de Vossa Mercê, saudou-a.
Depois de haver exposto a dificuldade que tivera em arranjar pousada, o camarada disse constrangido a Eulália a casa em que ela devia pernoitar.
— Não faz mal - ponderou Eulália resignadarnente -, em qualquer lugar se dorme.
Encaminharam-se para a casa, que ficava perto da feira.
Eulália entrou com a repugnância da honestidade naquela morada do vício. Duas mulheres mal trajadas, de modos bruscos, filhos de uma afetação canalha, vieram recebê-la à porta, e cumprimentá-la por entre baforadas dos cachimbos que tinham entre dentes.
— É como se a casa fosse sua, moça - disse uma delas; - moramos aqui nós duas: a Candinha e eu, que sou a Nenê; veja os cômodos, para dizer onde se há de armar a rede.
Eulália, agradecendo o oferecimento, entrou na saia, que tinha por única mobília uma rede encardida, duas peles de cabrito, duas almofadas em que havia rendas já principiadas e uma meia dúzia de tamboretes. Um quadro, representando a crucificação de Cristo, com um grande aparato de centuriões de lança ao ombro em atitudes teatralmente ameaçadoras, decorava a sala.
— Eu fico aqui mesmo, não precisam ter maior incômodo - disse Eulália.
— Oh! Gente! - exclamou a Candinha. - Pois há de ficar na sala ?! Vote que até parece...
E riu desenvoltamente cuspindo por entre os dentes, com um chilrado canalha.
— Olhe que de noite, quando estivesse à fresca, podia alguém espiar - acrescentou ela - e você talvez não gostasse.
— Não, dona - ponderou Nenê, que, notando a confusão de Eulália, lançou um olhar repreensivo a Candinha; - não se avexe com a gente, temos quartos lá dentro onde pode ficar a seu gosto. Venha ver.
Eulália, que mal podia levantar os olhos, tão corrida estava, obedeceu e seguiu as duas moças, que a levaram para um quarto espaçoso, nos fundos da casa.
— Agrada-se deste?!
— Serve, sim, senhora; é só por um ou dois dias; qualquer lugarzinho chega.
— E como é só para dormir...
— Sim, senhora, é só para dormir.
— Pois então, é tomar conta a gosto.
— Está numa casa de moças solteiras - disse Candinha -, mas está tão guardada como na sua própria casa.
— Pode dormir descansada; trouxesse ouro em pó, não lhe havia faltar uma pitada.
— Na nossa casa há pouco, mas o que há para duas chega para três.
— Já jantou?
Eulália, que estremecera a princípio amedrontada pelos modos das duas mulheres, cobrou mais coragem e acolheu, com a sua boa vontade para com todos, os protestos e os oferecimentos que lhe eram feitos.
— Não quer mandar entrar o homem? Ele que se abolete por aí em qualquer canto, isto de homens dormem bem até sobre um espeto.
Chamaram pelo camarada, que entrou, e repetiram-lhe o oferecimento que haviam feito a Eulália.
— Minha ama sabe que eu devo seguir viagem amanhã, e, portanto, é só dar as suas ordens.
— Falaremos mais tarde - disse Eulália.
As duas mulheres saíram para arranjar o jantar para Eulália e o camarada, que ficaram sós.
— Para mim - disse o camarada - fica mais cômodo dormir aí em qualquer puxada. Posso levantar-me com a madrugada para seguir viagem, mas se minha ama quiser posso ficar aqui.
Eulália não respondeu.
— Tem algum receio? - acrescentou o camarada. - Desconfia que essas mulheres possam fazer-lhe alguma coisa?
— Não, parecem boa gente.
— Quase sempre são umas infelizes, e aquele rapaz, que foi quem me trouxe aqui, não me deu má nota a respeito delas.
— Eu verei se preciso ou não de si.
As mulheres trouxeram o jantar sem demora, e, pedindo desculpas, convidaram Eulália a servir-se dele.
— É de muito longe? - perguntou Nenê a Eulália.
— De umas 20 ou 30 léguas.
— Credo! E fez todo este viajão com essas cores? Nem parece retirante.
— E as senhoras são daqui mesmo?
— Somos: perdemos desde muito crianças nosso pai e nossa mãe; ficamos em companhia de uma madrinha, que morreu quando eu estava com 17 e Candinha com 13 anos. Por isso é que nos vê aqui sozinhas.
— E não têm parentes?
— Temos sim, porém eles nos deixaram por nossa conta.
Eulália, olhando para o camarada, que estava de pé a contemplá-la, disse para testemunhar-lhe a confiança que depositava nas mulheres.
— Quando acabar de jantar pode ir cuidar da sua vida.
Reatada a conversação, Nenê e Candinha desfiaram com a ingenuidade sertaneja todas as circunstâncias da posição que tinham. Acharam-se completamente sós no mundo, eram moças e diziam que eram bonitas. Houve quem se oferecesse para ajudá-las e aceitaram. Depois estas pessoas faltaram com as suas palavras e a necessidade veio bater-lhes à porta, porque as rendas e os labirintos, que faziam ainda hoje, não davam nem para pagar metade do que elas comiam num mês.
— Cada um tem a sua sorte - murmurou Nenê -, nós seguimos a nossa.
A sinceridade com que foi feita a narração comoveu profundamente a mísera Eulália, que antevia o seu destino nas palavras da moça.
Automaticamente apertava de encontro à cintura a carteira que lhe fora dada pelo bandido, como se temesse que a fatalidade viesse misteriosamente esvaziá-la e obrigá-la a cair no mesmo momento na degradação que ela piedosamente lastimava.
— Vai para o Ceará, não é verdade? - perguntou Candinha com respeitoso comedimento, nascido dos modos de Eulália.
Recebendo resposta afirmativa, perguntou com interesse:
— E tem lá parentes?
— Não, tenho amigos.
As duas moças olharam-se tristemente, e como percebessem que Eulália notara o mútuo olhar, acrescentaram para disfarçar:
— Então não há de passar pelo que temos passado aqui.
"São umas pobres de Deus", pensou Eulália, e, quando se despediu do camarada, agradeceu-lhe não só os serviços que dele havia recebido na viagem como o que lhe acabava de prestar.
À noite, a simpatia que de pronto nasceu no coração de Eulália pelas desgraçadas aumentou. Haviam-na deixado só, a pretexto de a deixarem descansar, e, dentro em pouco, soando na sala uma voz de homem, Eulália ouviu que Nenê recomendava-lhe que abaixasse a voz.
Durante a noite a casa inteira silenciou como se não fosse habitada. É que uma extraordinária reserva havia imposto temporariamente moderação à libertinagem. Todavia o vício não levantou daí a sua tenda, e se Eulália houvesse ousado o limiar do quarto, teria visto entrar cautelosamente na sala um homem que, sendo desconhecido para as duas moças, era não obstante recebido por elas.
Este desconhecido sentou-se na rede encardida, que era um dos ornamentos da sala, e Candinha sentou-se junto dele, com um requinte irrisório de acanhamento.
Envoltos na claridade crepuscular que espargia na sala vela de carnaúba colocada sobre um dos bancos em um cantos do recinto, os dois guardaram por algum tempo
Nenê foi em bicos de pés espreitar o corredor e, de volta, fez um sinal a Candinha, que abriu os lábios num sorriso acariciador para o desconhecido.
— Moram sós? - perguntou ele, tomando nas suas as mãos de Candinha.
— Sozinhas, com a graça de Deus - respondeu Candinha.
— Não temos a quem dar contas.
— É muito bom viver só.
O silêncio tomou de novo lugar entre o desconhecido e a moça, que, embaraçada e começando a entediar-se com a frieza do hóspede, levantou-se e foi ter com a irmã, que estava de costas para a sala, debruçada na janela.
— Veja se o desemburra: é um matuto muito peco - disse Candinha. - Está ali calado como uma pedra.
— Pois fale-lhe você, tente saber quem ele é, anime-o.
Candinha pós em prática a lição que recebera, mas apenas conseguiu saber que o desconhecido era de B. V., que se dirigia ao Ceará, e que só se demoraria mais um dia na paróquia. Não pôde dirigir a conversação ao ponto que visava.
Percebia-se claramente no olhar e no semblante do desconhecido que a sua visita à casa das duas moças não passava de um meio para chegar a um fim, que entretanto ele temia desvendar.
— Sabem que eu não sou aqui da vila, não é verdade? Pois bem, eu não sei se acertei, ou se me enganei vindo a esta casa à procura de uma pessoa que se hospedou aqui.
As duas irmãs olharam-se despeitadas, e Nenê, com um gesto amuado, respondeu:
— Veio certo, mas a pessoa não é o que o senhor pensa. A afirmação de Nenê fez com que o desconhecido resfolegasse à larga e o semblante se lhe desanuviasse. Perdendo o ar reservado que tinha guardado desde que chegara, passou o braço pela cinta de Candinha, que foi suavemente constrangida a sentar-se sobre os joelhos dele, e acenou para Nenê.
— Vamos ficar muito bons amigos; falando é que os homens se entendem.
— Está tão caído agora - murmurou Candinha -, não parece o mesmo bitu.
— Em primeiro lugar, aqui têm vosmecês isto - disse o desconhecido, apresentando duas notas do tesouro às moças; - falemos agora no nosso negócio.
Embora estivesse falando em voz muito baixa, abaixou ainda mais a voz, e acrescentou:
— Esta rapariga que aí está dentro é minha conhecida velha...
— Não temos nada feito - murmurou Nenê. - Pode guardar o seu dinheiro, se entende que nos compra com ele. A moça que se hospedou aqui não tem nada com a nossa vida.
— Eu bem o sei. Vi-a pequena, cresceu nos meus braços. Hoje é infeliz, e eu, que sou amigo da família dela, que posso ler no seu coração, devo prestar-lhe o auxilio que estiver nas minhas mãos.
— Espere quando ela sair amanhã; nós não podemos consentir que ninguém vá ter consigo.
— Há outro meio, uma vez que já se conhecem - ponderou Candinha -, nada mais simples: se ela ainda estiver acordada, pode-se pedir-lhe que venha até cá.
O alvitre de Nenê foi rejeitado pelo desconhecido mesmo antes de ter sido de todo formulado, e Nenê acrescentou:
— Se o senhor é conhecido dela, por que não quer que ela venha aqui? Pode guardar o seu dinheiro; somos pobres, mas não precisamos dele por semelhante preço.
A altiva recusa de Nenê, que foi secundada pela irmã, chegou até ao arremesso do dinheiro; mas, longe de irritar como que lisonjeou o desconhecido.
— Eulália há de agradecer-lhes muito esta nobre ação -murmurou ele; - eu hei de referir-lhe tudo. Não tenham medo de deixar-me chegar até junto dela; não lhe desejo mal.
— Não o podemos saber - murmurou Nenê -, não o conhecemos de todo.
— Eu sou o vigário da freguesia em que Eulália nasceu, um seu amigo, um velho amigo de seu pai.
As duas mulheres, interditas pela revelação, não sabiam o que decidir. A profissão do desconhecido era a maior garantia que lhes podia ser dada do caráter, das intenções e da natureza da missão que ele queria desempenhar junto de Eulália.
Para assegurar a boa predisposição em que as via, Paula chamou a atenção das duas perdidas para a sua barba curta, e fê-las reparar no alto da sua cabeça, em que o disco da coroa não havia desaparecido de todo.
Uma única dúvida foi sugerida por Nenê, que buscava descarregar inteiramente a sua consciência - o motivo da fuga de Eulália, o qual foi explicado facilmente por uma fraqueza com um rapaz, que havia fugido depois de a ter seduzido.
— Não notam - acentuou ele -, que, em tamanha penúria da província, quando as estradas se alastram de cadáveres de pessoas que morrem à fome, quando nas próprias vilas e cidades a alimentação escasseia, Eulália pôde atravessar incólume tão difíceis caminhos, tão ingratas paragens?
O argumento produziu o efeito esperado pelo espírito fino
do vigário, que mal podia conter o coração, que pulsava com a violência da saudade e do desejo de reconciliação com a sua vitima. Não obstante, uma vaga hesitação, uns visos de temor transpareciam no ar das duas moças, que o encaravam com a agudeza da dúvida.
— O meu encontro com Eulália - continuou Paula – é um descanso grande para si. Notícias falsas fazem-na crer que a miséria bateu também às portas de sua família e que, deixando a paróquia, erra por essas estradas mendigando como retirante. Quero dissipar-lhe este pesar, livrá-la do remorso que lhe causa a idéia de que ao seu erro prende-se tão desastrada conseqüência. Negar-me-ão ainda o aproximar-me de Eulália?
As duas moças não responderam mais. A nobreza dos intentos que Paula se atribuía desarmou-lhes a resistência, e Nenê pediu apenas licença para ir ver se Eulália ainda estava acordada.
— Não lhe declare o meu nome - pediu Paula com empenho; - a vergonha de encarar comigo talvez me proibisse de prestar-lhe um grande serviço.
Nenê, que se afastara e voltara em bicos de pés, conduziu Paula até o corredor que ia terminar justamente na porta do quarto de Eulália, que, deitada na rede, olhava fixamente para o teto, absorta em seguir, talvez, uma esperança risonha.
— Ela está ali - murmurou; - pode entrar.
Paula caminhou cautelosamente, contendo até a própria respiração. Sua alma, repassada pelo ante-sabor da alegria com que contava, fazia-o preparar cuidadosamente a encenação teatral da sua aparição, para que não falhasse o efeito.
Nenê e Candinha, de pé no corredor, acompanhavam-no com os olhos, e a primeira resmungou
— Eu não tenho muita fé neste homem; se ele quiser violentar a moça, não sai daqui senão para a cadeia.
Caminhou direito à porta da rua, trancou-a e, guardando a chave, veio deitar-se na rede da sala, ao passo que a irmã recolhia-se ao quarto.
Paula começava a empurrar brandamente a porta do aposento de Eulália, e logo, entrando sem ruído, cruzados os braços sobre o peito, os olhos descaídos num desmaio piedoso, os lábios trêmulos, a fisionomia velada por uma tristeza sincera, foi parar junto à rede em que Eulália repousava.
A pobreza do aposento revestia o quadro de uma solenidade tristíssima. O chão do quarto, ondulando com as depressões das pisadas, estava levemente escavado em um dos contos, e fazia vir à imaginação a lembrança de uma nesga de cemitério em que houvesse uma cova recentemente fechada. Também a imobilidade de Paula, diante da quietude de Eulália, lembrava um coveiro que, apaixonado por um cadáver e horrorizando-se com a idéia de entregá-lo aos vermes, o contemplasse, como se quisesse enterrá-lo na irradiação do olhar.
O vigário parecia de todo absorto da sua contemplação; do semblante de Eulália como que partia uma corrente imânica a atraí-lo. De feito, os sofrimentos que a haviam emagrecido e descorado filtravam-lhe no semblante um quê indefinido de santidade; o próprio desleixo do vestuário, deixando-lhe transparecer as formas ainda belas, dava-lhe um recato e a respiração cadenciadamente exalada, com as longas pausas dos sonos sem remorsos, dizia que, apesar de todas amarguras, aquele espírito respirava uma tranqüila honestidade.
O encantamento de Paula, embora profundo, só durou alguns minutos: Eulália, que apenas madornava, descerrou as pálpebras morosamente, e encarou-o com um olhar que era um misto de sobressalto e dúvida.
Mas, já acostumada a conviver com esse olhar e atitude, que eram a atalaia dos seus delírios, que reproduziam a imagem de Paula nos primeiros tempos dos seus amores, a vítima não proferiu uma única palavra. Julgando ter diante de si a visão permanente dos seus sonhos, limitou-se a esconder os olhos na mão espalmada e a fronte nos punhos da rede. A mão correu dos olhos até os cabelos, com um movimento pesado, como se Eulália quisesse apagar da cabeça as pegadas de um horrendo pesadelo. O esforço foi, porém, baldado; desta vez não se tratava de uma larva da imaginação, mas da realidade.
O enleio da vítima encorajou propiciamente o vigário, que foi cair de joelhos diante dela.
— O que me quer mais o senhor? - tartamudeou ela.
— Por que vem perseguir-me até na miséria?
— Quero que o seu amor por mim, Eulália, não seja mais um tormento; que se regozije com a certeza de que é ardentemente correspondido.
Eulália percorreu com uma vista de olhos suspeitosa todo o aposento. Á dúvida a esmagava, porque não podia crer que tivesse junto a si o seu algoz. Mas de pronto acudiu-lhe à memória a conversa que ouvira na igreja do último pouso, o que lhe deu a certeza de que já não dormia. Uma reminiscência da fascinação de outrora assomou-lhe no espírito através das mágoas pungentíssimas, e um esquecimento momentâneo de todo o passado amolentou-a inspirando-lhe desejos de condescender.
— Deixe-me em paz - soluçou ela; - é tarde agora: eu já não o amo.
— Não creio - murmurou Paula tomando-lhe as mãos nas suas; - diga antes que já não devia amar-me. Teria razão, Eulália; pareci esquecê-la, ser indiferente às dores que a acabrunhavam, mas, sabe-o Deus, compartia longe de si o quinhão de angústia que me tocava na sua má sorte. Dia por dia, hora por hora, passei eu isolado a agravar com o pensamento o horror do nosso fadário, e, sem esperança de encontrá-la, rasgava pelo remorso a ferida que a saudade abrira dentro em mim. Perdoe-me, Eulália, o meu arrependimento é sincero; gerou-o no silêncio e no desespero a dor de consciência de haver condenado à morte o meu próprio filho. Peço-lhe por ele: para uma mãe não há crime que não possa ser resgatado pela invocação do filho. Perdoe-me por ele, Eulália.
À medida que estas palavras, bulhando e encontroando-se, nos lábios de Paula, eram ouvidas por Eulália, uma reação indomável se operava no ânimo da moça. Quando o vigário calou-se, ela já não respirava: a indignação a sufocava e entontecia. As lágrimas que lhe haviam brotado com as primeiras palavras, extinguiram-se, e os olhos adquiriram um brilho tigrino.
Como fera enfurecida, ao ver o filho pequeno preso em uma gaiola de domador raiva em silêncio a sua cólera que nada pede apaziguar, assim Eulália, recalcando no íntimo a ira que lhe causara a súplica, ficou a encarar com o vigário. Depois tirando-se com um movimento brusco de entre as mãos do amante, murmurou com uma acentuação cruciante:
— Deixe-me em paz: eu tenho vivido bem na miséria, não me queira perverter de novo. As minhas afeições são outras.
— Não se procure iludir, nem iludir-me - suspirou Paula; o coração desmente-lhe as palavras.
— Não - respondeu com firmeza; - eu já não o amo, não quero amar; as minhas afeições são outras.
— Veja bem o que diz, Eulália; eu vim com o coração transbordando de esperanças pedir ao amor a minha redenção. Vim para lavar do meu passado a mancha ignominiosa que o denegriu; queria reconciliar-me com o bem e divorciar-me para sempre dos meus erros de outrora. A sua recusa, porém, fecha-me a porta a esta esperança, abre-me de novo o caminho para a indiferença e o mal. Qual será a sorte do nosso filho, Eulália, se você afasta-me de si?
— A sua sorte já não me incomoda mais - soluçou Eulália.
Paula, que não tinha desviado os olhos do rosto de Eulália, fitou-a sobressaltado, e, levantando-se de um salto, travou violentamente dos punhos da sua vítima.
— Diga-me o que é feito dele - exclamou com uma entoação desesperada; - a vingança aconselhou-a a matá-lo?
— É exato - respondeu afetando calma e perversidade; - fiz o que o senhor aconselhou-me que fizesse. Não disse que eu ainda o amava? Pois bem, obedeci-o.
— Miserável! A desgraça fê-la vil como as outras.
Um arremessão brutal, dado pelos pulsos vigorosos de Paula, impeliu Eulália, que cambaleou até que se pôde apoiar na parede. Mas a coragem com que resolvera arrostar as explosões do gênio irascível do seu ex-senhor não sofreu o menor abalo.
— Continue a sua obra e complete-a. O seu amor teve por começo um crime, cevou-se de crime e deve acabar por um crime. Eu estou na casa de umas mulheres perdidas, compradas talvez pelo seu dinheiro; não tenho defesa, nem a quero; não pode haver melhor lugar para que o senhor se veja livre para sempre de mim.
— Pode insultar à vontade. A sociedade em que ultimamente tem vivido dá-lhe direito a que assim proceda. Quantas vezes já tem entrado na prisão?
O insulto fez com que Eulália ficasse por largo tempo silenciosa, arquejando de cólera e de vergonha, mas afinal tornou ela energicamente:
— Nenhuma. Hoje, porém, uma mulher que o senhor conhece queria acabar a obra pelo senhor começada. Nenhuma, porém, nunca fiz por isso. Há assassinos que andam sãos e salvos, sem que ninguém sequer suspeite de que, sob a requintada hipocrisia dos modos delicados, esconde-se um miserável que faz emboscadas a pessoas desarmadas. Não é muito que eu ainda não tenha entrado na prisão pelo crime de ser infeliz.
A repulsa calma e enérgica, vibrada com a superioridade de quem está convencida da justiça da sua indignação, caiu como uma chuva de metal incandescido sobre o coração de Paula, que doía ao mesmo tempo de humilhação e de ira.
Por duas ou três vezes resfolegou extensamente e ensaiou passos para precipitar-se sobre a vítima, e, não obstante a alucinação que o desvairava, conteve-se.
Um fenômeno principalmente o surpreendia. Eulália aparecia sempre nas suas cismas como a fascinada amante de outrora, a qual, ainda mesmo ameaçada de perder o filho, defendia-se com rogativas e lágrimas. A imaginação, desdobrando-se sobre tais recordações, dava uma encenação sedutora ao seu encontro com Eulália. Algumas lágrimas - e eram sinceras - bastariam para lavar todas as ingratidões e delir todos tormentos. A eloqüência de suas palavras, acreditava ele, a própria confiança de Eulália, a sua ingênua sinceridade. Mas de repente o castelo dourado se esboroa, em vez da amante apaixonada de outrora encontra com a mulher ultrajada, com a mãe ameaçada, que resoluta e calma não recua diante da sua cólera explosiva e nem ao menos hesita em provocá-la.
— Quem tem razão é a senhora - bradou Paula; - eu sou é o culpado. Adeus!
Eulália não respondeu, mas não deu nenhum sinal de alegria pela despedida de Paula: conservou-se como estava, fria e altiva.
O vigário caminhou até a porta, e, antes de transpô-la, relanceou um olhar a Eulália, que nem o percebeu. Impelido pelo despeito, atravessou rapidamente o corredor e a sala, diante de cuja porta esbarrou, que tinha sido trancada, e chave Nenê guardara para que, no caso de urgência pudesse prestar auxílio a Eulália.
Paula, sofrendo mais esta contrariedade, tentou obrigar a porta ceder, mas não levou a cabo o propósito, visto que Nenê que dormia numa rede a alguns passos apenas, acordada pelo barulho, veio ao seu encontro.
— Com os diabos ! - disse Paula. - Estão ambas a dormir, e quase me obrigam a passar mal a noite.
— Era só chamar, sem fazer cerimônia. Já se vai?
— Não queria, mas se continuam a dormir...
— Não se tinha o que fazer.
— Pois eu fico por aqui esta noite; lá agora não saio senão com a madrugada.
— E então? - perguntou Nenê admirada. - O que arranjou lá por dentro: conseguiu o que queria?
— Mudemos de assunto; tratemos de outras coisas mais divertidas. Candinha! - chamou Paula em voz bem distinta.
— Ó Candinha!
— Pode chamar à vontade; não dá uma nota; aquilo quando ferra, não se acorda assim, é preciso certo jeito.
— Pois eu vou chamá-la.
Nenê alumiou, mostrando o quarto, e Paula, que não passara o limiar, saiu logo que Nenê se retirou, e caminhou para o quarto de Eulália, que se trancara por dentro, desde que se viu livre da importuna solicitação e das injúrias cruéis.
A vela continuava acesa, e Paula, espreitando pela fechadura, pôde ver o que se passava lá dentro. Eulália, que não podia deixar de ter-lhe ouvido a voz, estava sentada na rede e, com os olhos alevantados para o teto, soluçava compungentemente.
— Abra por um instante - suplicou ele. - Abra.
Eulália voltou-se para a porta, mas, em vez de atender ao pedido, soprou a vela.
— Vingativa - murmurou Paula. - Mas eu hei de vencê-la, seja como for. O ciúme talvez ma entregue hoje mesmo. Vejamos.
Voltou à porta do quarto de Candinha, e, entrando por ele a tatear a escuridão, foi afinal esbarrar com a rede em que dormia a perdida.
— Afinal acertei - acentuou ele de modo a poder ser distintamente ouvido. - Acorde, senhora preguiçosa. Então pensava que eu havia de dormir ao tempo? Oh! Nenê, diga-me cá: não tem em casa nada que se possa beber?
Nenê, acudindo ao chamado, respondeu que não, mas que se podia obter, se ele quisesse.
— Pois arranje lá isto; quero uma noite de pândega. Vou pagar-lhes o enjôo de ainda agora.
— Ele ainda me amará? - perguntava-se Eulália, soluçando. - Ou será mais uma infâmia que planeja?
A noite escoou-se aturdida pelas estroinices de Paula, que ao romper do dia retirou-se pensando consigo:
— Se eu insistir, ela não me resistirá.
Mas enganou-se ainda uma vez.
O meio de que lançou mão para reduzir Eulália a ceder a sua nova sedução, só produziu efeito momentâneo; a reflexão impediu que a vítima se continuasse a imolar à sua paixão carnal.
Às primeiras palavras trocadas entre o vigário e Nenê, o natural orgulho da beleza sublevou-se, e, num assomo de indignação, Eulália, saltando da rede com uma elasticidade felina, veio até a porta, disposta a exigir de Paula o mesmo respeito que ela tributava ao mútuo passado. O egoísmo do amor ferido impelia-a a este passo, mas a altivez da honestidade deteve-a, e a infeliz limitou-se a defender-se do contato do seu repulsivo ex-amante.
Em vão, num exagero orgíaco, Paula atropelou o silêncio a noite; em vão soaram as gargalhadas báquicas das duas irmãs meio ébrias e a voz do vigário ecoou dizendo licenciosidades de sátiro. Eulália limitou-se a chorar, e a maldizer-se, agitada pela dúvida tremenda:
— Ele ainda me amará?
Cada palavra de Paula trazia-lhe à memória uma cena do passado, dissolvida em carícias e dedicações, esbatendo-se em um colorido vivaz sobre sonhos de uma felicidade inextinguível. Então as brutalidades, as crueldades de Paula apareciam aos olhos de Eulália como conseqüências perdoáveis da paixão, que ela avaliava pela sua, que tinha passado os limites excesso para acampar de todo na alucinação.
Arrastada por essas recordações, quase que se resignava dar ganho de causa ao vigário. O coração pedia-lhe o esquecimento de todas as mágoas e aconselhava-a a que fosse arrancar dos braços das duas perdidas o algoz da sua mocidade.
Pela madrugada, Eulália, extenuada pela luta, sentia-se aniquilar pela idéia da submissão, mas providencialmente o vigário começou a despedir-se.
— Se ele vier ter comigo - pensou Eulália -, eu o perdoarei.
Mas Paula, que não mediu perfeitamente a extensão que devia ter o recurso brutal de que lançara mão, não se lembrou de ir novamente ao quarto de Eulália. A vergonha do ato que acabava de praticar desviou-o dali, e, longe de ter uma frase carinhosa, proferiu uma indignidade ao retirar-se.
— Basta de fingimento! - exclamou ele afastando Candinha de si. - Vocês todas são as mesmas. Muita festa, muita promessa, mas a verdade é que só amam o dinheiro.
— Volte que verá claramente que não tem razão.
— Eu as conheço, mesmo as que não vivem como vocês. Tenho exemplo; quando encontram alguém que faça as despesas, esquecem os amores puros do passado.
— Que infâmia - soluçou Eulália, percebendo que o vigário se referia à carteira que servira de acusação contra si; - julga-me já perdida.
— Mas nem todas lêem pela mesma cartilha...
— Veremos; como é só de passagem, vá lá; até logo.
Retirou-se plenamente satisfeito consigo mesmo. Tinha infligido a Eulália um castigo tão cruel como a sua repulsa, e, ao passo que à infeliz restava apenas a incerteza, Paula voltava com a certeza de que no seu primeiro encontro com Eulália seria vencedor.
Não me resistirá; há afrontas que são testemunhos de amor. Não me resistirá.
Dentro em si, Eulália, lembrando-se do pensamento cobarde que tivera na hora da despedida de Paula, tremeu pela própria dignidade. À noite ele voltaria e de certo repetiria as mesmas cenas. O que faria ela? Ceder? Era desarmar-se inteiramente diante dele, e por sua vez tornar-se indigna diante da própria consciência.
— É preciso que eu saia, que eu fuja daqui.
A resolução, porém, teve de estender-se a todo o povoado. Não conseguiria hospedar-se em uma casa honesta; não era casada. Não podia também hospedar-se no abarracamento de retirantes, porque o existente era composto de pequenas casas e estas fechavam as portas a todos os estranhos.
Logo pela manhã, pois, saiu afetando a maior cordialidade para com as suas hospedeiras; foi até a feira para ver se descobria noticias da sua família, e, desenganando-se de poder consegui-las, decidiu recomeçar imediatamente a marcha para a capital.
"Como é grande o ladrão Virgulino comparado com um ministro de Deus", pensou Eulália, abrindo a carteira, não só para deixar na casa em que dormira a quantia com que devia pagar a hospedagem, mas também para munir-se de provisões.
Todavia, no seu espírito pairava triunfantemente a imagem do segundo, a ponto de ser-lhe impossível resistir a informar-se dele.
Na feira, ao ver o pajem, dirigiu-lhe a palavra, a pretexto de saber notícias do camarada que a acompanhara.
— Já viu hoje o seu amigo? - perguntou ela. - Seguiu sempre para o pouso?
— Não o vi, e é sinal de que já bateu as alpargatas.
— O senhor e o seu amo é que não vão tão cedo, não é verdade?
— Eu devo voltar amanhã; o homem a quem me viu acompanhar é que não sei quando seguirá. Veio recomendado ao subdelegado, que é quem o está hospedando, e quem, com o vigário, há de arranjar-lhe condução para seguir viagem.
Eulália desejava saber dos pormenores da viagem de Paula, mas notando que por sua vez o pajem tentava obter dela o destino que ia tomar, apressou-se em retirar-se, tomando como causa a obrigação em que estava de visitar a mulher que assassinara o próprio filho.
Consolada com a certeza de que teria ocasião de ver antes de partir aquele mesmo que era a causa de seus medonhos sofrimentos, tomou a rua que marginava a prisão e em que residia também o subdelegado, e, como visse que o pajem a seguia de longe, alegrou-se ainda mais, porque Paula seria avisado da sua passagem e assim ela realizaria o seu intento - poder vê-lo.
De feito, da porta da prisão distinguiu o vulto de Paula, que veio colocar-se à janela para que a visse na volta, e Eulália apressou-se em fazer-lhe a vontade.
"Agora posso partir - pensou ela -, não me perseguirá e nem eu deixarei de levar viva dentro de mim a sua imagem, que é o meu castigo e a minha ventura."
À noite Eulália estava muito distante da vila e abrigava-se numa casa abandonada, lastimando e aplaudindo ao mesmo tempo a coragem com que fugira de Paula, que, iludido pelo bondoso olhar que a moça lhe deitara ao passar, contava com a vitória. À mesma hora em que Eulália pensava nele, Paula entrava alegre pela casa das duas perdidas.
— Boa noite! - exclamou ele. - Como vai o pássaro? Ainda muito espantado?
— Saiu desde manhã e ainda não voltou à gaiola. Creio que fugiu - respondeu Nenê - mas não se perde nada.
— Doida - resmungou Paula, levando a mão aos cabelos. - Para vingar-se, condena-se ao martírio.
Em vão Nenê e Candinha buscaram acordar no vigário a mesma febre da véspera; conservou-se por largo tempo sentado e silencioso, até que se retirou cabisbaixo e acabrunhado por uma pergunta que de continuo lhe dominava a reflexão.
— O que devo eu fazer para salvar Eulália?
Durante a noite não achou solução e, no dia seguinte, deixando a vila, ainda não atinara com a resposta.