Chiquinha, vendo a irmã no vagão, sentiu sublevar-se dentro em si a saudade, mas deliberara calar-se para não desgostar d. Ana, que se entristecia sempre que ouvia o simples nome de Eulália.
Muitas vezes a velha senhora tinha dito à caçula, de modo que impressionava às outras irmãs:
— Não fale nela, minha filhinha; não devemos estar a dizer sempre o nome dos mortos, porque fazemos com que eles penem mais.
A impressão de Chiquinha, porém, não podia no momento estreitar-se na deferência; precisava expandir-se, espanujar-se livremente, e a moça, chegando arquejante de uma longa corrida, exclamou a rir e a enxugar lágrimas:
— Sabem? Acabei de ver Eulália, de dizer-lhe adeus.
— Onde? - perguntaram todos, deixando-se arrastar pelo sentimento de Chiquinha.
— Na estrada de ferro; ia num carro para a cidade.
Houve um silêncio longo depois destas palavras, porque a fisionomia de d. Ana tinha feito uma rápida mudança.
Foi a velha senhora quem reatou a conversa.
— E por que não vem ela ter conosco?
Chiquinha expôs o incidente e demorou-se em justificar sua irmã aos olhos da tia. Não foi porque as desprezasse que não desceu; no momento em que se viram, o trem partia, e ainda assim Eulália quis descer.
— Então ela voltará a ter conosco - murmurou d. Ana; - antes da noite estaremos consigo, porque o trem volta de tarde.
— É exato; ela virá.
Absorta nesta esperança, a família como que olvidou o estado de penúria em que se achava. Só depois de algum tempo a caçula chamou-as à triste realidade, lembrando que tinha fome.
— Não pude conseguir coisa alguma; nem um vintém -ponderou Chiquinha. - Estava um mundo junto do trem; não pude chegar muito perto.
— Nós - acrescentou d. Ana - também nada conseguimos. Vamos correr as ruas; talvez tenham pena de nós.
A família, que estava reunida na estação, caminhou para o interior da linda povoação. Cada passo, porém, assinalava-lhes uma desilusão.
Havia dois dias que ali chegara, e no entanto não tinha encontrado um abrigo, a não ser um canto no abarracamento para suspenderem as redes. Foram debalde à comissão. Um dos empregados limitou-se a achar muito lindas as três mocinhas.
— Que flores ! São suas filhas? - disse ele. - Deixe estar que não lhes faltará nada. Venha amanhã; o comissário as atenderá.
O oferecimento, porém, longe de desvanecer a infeliz senhora, fizera-a estremecer e amedrontar-se, e no dia seguinte d. Ana, dirigindo-se à comissão, cometeu a imprudência de ir só.
O empregado reconheceu-a logo e, com um tom de familiaridade ofensiva, sorriu para a honrada senhora.
— Então vem só? Por que deixou as meninas? Fez mal; é preciso mostrá-las, senhora; tem nas mãos uma fortuna.
D. Ana respondeu a esta série de amabilidades grosseiras por uma pergunta seca:
— Poderei hoje falar ao comissário?
— Não esta aí agora, mas é o mesmo. Deixe-me ficar o seu nome e o das meninas.
D. Ana obedeceu quase a chorar de vergonha.
— Ora bem - ajuntou o empregado -, dentro de uma hora mande cá uma das meninas para que seja socorrida. Agora não posso dar-lhe nada; estou só, e, se vou dar-lhe alguma coisa, invadem-me isto. Dentro em uma hora mande hein? Será servida.
Indignada pela aviltante intenção que o empregado deixava transparecer nas suas palavras, d. Ana resolveu logo abrir mão dos socorros que pudesse obter.
O próprio empregado incumbiu-se de dar maior base à sua resolução. Quando d. Ana já ia saindo, ponderou-lhe ele:
— Escute; por que não deixa aqui o lugar onde está morando? Fica mais fácil, e demais a gente precisa de ir por lá ver as senhoras.
— Estou mesmo no abarracamento - respondeu d. Ana, e consigo acrescentou: - mas não estarei lá nem mais um quarto de hora.
De volta, ocupou-se logo em fazer a sua mudança de forasteira, para que não se visse nas condições em que já uma vez se achara. Mundica ensinara-lhe qual era o grau de prepotência dos comissários e a lição não tinha sido esquecida.
As circunstâncias da família eram portanto extremamente precárias, e a vinda de Eulália, que, pela aparência, podia modificá-las, devia alegrá-la.
Depois de correr a povoação, não tendo obtido mais do que o necessário para comprar uma bolacha para a mísera criança, a família Queiroz volveu de novo à estação, onde já começavam a reunir-se os esfaimados retirantes.
A honestidade, posta em feira, aleiloava-se ali como em todas as cidades do Ceará, e a depravação passeava sobranceira e ovante através da fome alucinada e cobarde.
A família inteira aconchegada, como que para defender-se do contágio da epidemia geral, esperava ansiosa, estranhando a lentidão do tempo.
De repente o silvo da locomotiva, quebrando o profundo silêncio em que se mergulhava a vasta extensão circunvizinha, lançou o alvoroço no meio da sussurrante massa que cercava a estação. De todos os lados do povoado correram mulheres e crianças precipitadamente, como se foram ao encontro de um remédio infalível para a sua desgraça.
A família Queiroz, colocada no meio dos trilhos, concertava o plano para que pudessem logo ser vistas por Eulália.
Quando o comboio parou e o alvoroço cresceu, as infelizes acercaram-se dos vagões a espioná-los atentamente.
— Não a vejo - ponderava d. Ana; - perdê-la-emos ainda de vista.
— Parece que não veio - advertiu Chiquinha; - se estivesse no trem, meu coração adivinhá-lo-ia.
O tempo de demora corria rápido, de um modo inqualificável. Já a sineta havia dado o sinal da partida e a locomotiva soltara um rouco bufo. Os chefes de trem trancavam as portinholas.
Chiquinha, perdendo a cabeça com a desilusão iminente, não hesitou mais, e, esquecendo-se da sua triste posição de retirante, ousou por o pé no estribo de um dos vagões.
— Para fora, estupor! - bradou o chefe do trem. - Vai-te para o diabo.
— É um instante só, meu senhor, para ver se a minha irmã veio.
— Safa-te; vamos.
— Não demoro, saio já, se ela não estiver; não custa nada...
A infeliz não teve tempo de completar a frase. O homem desnaturado, franzindo o sobrolho e levando aos lábios o apito, disse com uma acentuação de enfadado:
— Vejam o diabo como tenta; onde está o homem está o perigo: para fora, peste!...
As mãos do brutal empregado, acompanhando a rudeza das suas palavras, empurraram a pobre Chiquinha, que foi cair longe.
Um grito consternado rompeu do seio da infeliz, enquanto a maioria dos passageiros ria e a mó dos retirantes aplaudia com palmas a ação do miserável, que, de pé na plataforma do vagão, se movia rapidamente e agradecia tirando o boné.
Talvez instigada pelos cumprimentos, a mó impiedosa não se contentou com as chufas e com a assuada. Ao ver a pobre moça por terra, um rapazinho atirou-lhe um punhado de areia e os outros o imitaram. Para logo passarem deste desacato aos empurrões, e foi com grande dificuldade que a desditosa Chiquinha pôde caminhar, sempre perseguida pelos apupos.
D. Ana, que não tinha visto o incidente, esperava já a sobrinha no ponto combinado para o encontro: a face lateral da estação; e quando a viu assim perseguida, correu ao seu encontro enraivecida como leoa faminta. Mas a sua cólera impotente sopitou-se de pronto para dar lugar à humildade, e à defesa limitou-se a estreitar nos braços a moça desvairada pela afronta.
— Eulália? - perguntou d. Ana. Não a pôde ver, minha filha?
— Não veio - soluçou Chiquinha; - e é por ela que sofro.
A assuada, que se havia amortecido um pouco, recresceu diante do quadro das infelizes que choravam abraçadas.
Ninguém é mais intolerante para com a desgraça do que um desgraçado. Os mendigos disputam-se até o último desforço a migalha que lhes afiram; não respeitam as lágrimas, não lhes reconhecem a majestade, porque estas lá se tomam sedição nos seus olhos.
— Olhem, a pequenota estava industriada pela velha. Eh! Cabras de força ...
— Não pegaram as bichas; toca a choramingar agora.
— Queriam lapear alguma coisa, mas não puderam.
— Fora, fora!
À medida que aumentava a grita, formava-se um círculo em torno de d. Ana e suas sobrinhas, e a garotada colocava-se de modo a empurrar as retirantes com a sofreguidão do jogo da peteca.
— Que mal lhes fizemos? - soluçou d. Ana. - A menina ia ver se a irmã tinha vindo no trem.
— Cala, cabra velha; fora!
Um homem rompeu sem dificuldade a grande massa, no meio da qual sacudia com violência um pau e impunha silêncio aos rapazolas mais exaltados. Era o empregado com quem d. Ana havia falado no abarracamento, e que vinha providencialmente ao seu encontro.
— Arreda para longe, canalha! - bradou ele, logo que se achou no meio do círculo. - Caluda! ou não terão esmola por dois dias.
A intimação peremptória produziu o efeito desejado, apesar de alguns protestos covardes, que mal podiam ser ouvidos.
Desde que se viu só com d. Ana, o empregado, esforçando-se por fingir condolência pelo desacato sofrido pelas infelizes, ponderou:
— A senhora é a única culpada do que acontece; não lhe disse eu que mandasse uma de suas meninas ao abarracamento? Porque não o fez? Para que há de se expor à perversidade dos brutos?
Semelhante compaixão insultava a velha senhora ainda mais pungentemente do que a assuada; mas a melindrosa situação inspirou à infeliz a prudência necessária para disfarçar a repulsa numa desculpa.
— Esperávamos no trem de hoje uma pessoa, que devia chegar do Ceará. Hoje mesmo partimos para lá.
— E quem é essa pessoa? Pode dizer quem é?
— Uma parenta nossa.
— Rica?
— Nós somos todos muito pobres.
O empregado deixou cair a máscara ao ouvir estas palavras; a hediondez da sua intenção esbateu-se na torpeza das suas palavras, e d. Ana, para evitar novo desgosto, disfarçou a impressão dolorosa que lhe causara ouvi-las.
— Venha comigo; eu lhe afianço que nada lhes faltará -exclamou ele por fim.
D. Ana prometeu fazer a vontade ao miserável, meio único para conseguir que ele se afastasse. Quando se viu só, porém, e percebeu no olhar de Chiquinha uma condenação ao que lhe acabava de ouvir:
— Infame! - resmoncou d. Ana. - Eis o que é a piedade deles.
— Oh! minha boa tia - exclamou Chiquinha -, perdoe-me a injustiça que lhe fiz. Tenha sempre coragem que Deus nos há de defender. Eulália está no Ceará, e nós reunidas poderemos ali trabalhar para viver.
— É exato, minha filha, poderemos viver honestas, mas para isto é preciso que todos que conosco vivam sejam honestos.
— E seremos; Eulália tem um coração generoso.
— Teve um coração generoso - murmurou d. Ana; - mas que respeito merecemos nós àqueles que souberem do erro de Eulália? Eu não consentirei que ela venha morar conosco; quase o tolerei num momento de fraqueza, mas felizmente a sua ingratidão salvou-nos desta vergonha.
— Perdoe-lhe, minha tia; ela talvez pensasse que nós fôssemos ao seu encontro.
— Pensou, decerto; nós as mais infelizes, tanto maior razão para não a querer conosco.
— Mas é cruel demais; ela não merece este castigo.
— É verdade, eu sou quem o merece talvez, Chiquinha; ainda agora acabei de ouvir oferecimento e, tendo fome, não o quis aceitar. Eu sou quem merece castigo.
Chiquinha respondeu com os soluços e as lágrimas à injustiça que a exaltação de d. Ana acabava de fazer-lhe, e apenas murmurou:
— Eu estou pronta para fazer o que me disser.
Não é possível descrever a grandeza de sentimentos, que neste instante se puseram em jogo no coração das duas mulheres, que não trocaram entre si mais que uma única frase:
— É preciso sair daqui hoje mesmo.
A noite já as veio encontrar longe de Arronches e nas circunvizinhanças da capital. Fazia um luar tropical, sereno como o desdém da natureza pelo orgulho do homem. Na intensa claridade destacava a massa seminua de grandes cajueiros, próximo aos quais ardiam fogueiras, deixando ver sórdidas redes suspensas sob a copa das árvores.
A estrada silenciosa, coleando pelas ondulações suaves do terreno, parecia a traça de um labirinto, ou melhor, o vestígio das indecisões, das incertezas que tumultuavam na alma das caminhantes.
A pouco e pouco o deserto como que se foi animando; as árvores como que se transformaram em habitações, e a família Queiroz percebeu que começava a pisar o solo da cidade.
Os grupos de retirantes abrigados sob as árvores aumentaram; já não era de distância em distância, sob os cajueiros Só, que se viam: estavam debaixo de todas as árvores, numa promiscuidade brutal.
— Quem sabe se não seria melhor ficarmos por aqui mesmo? - ponderou Chiquinha.
— Não; devemos entrar na cidade desde já; amanhã sofreremos menor impressão.
Caminharam até próximo da estação, onde resolveram pernoitar, porque Chiquinha pensava que na manhã seguinte Eulália viria aí encontrá-las.
— Se amanhã Eulália nos vier encontrar aqui, o que lhe dirá vosmecê, minha tia?
— Nada - respondeu d. Ana; - eu não tenho coisa alguma a dizer-lhe.
— Não a consentirá conosco?
— Não tenho direito sobre vocês; não é a mim que deve pesar mais a ingratidão.