- Satanás! Satanás!

- Che vuoi?

- Não o sabes tu? Quero o amor, a riqueza, a ciência, o poder.

- Como as crianças, as bruxas e os doidos - sem fazer nada para os conquistar.

O filosófico Tinhoso tem nesta grande cidade um ululante punhado de sacerdotes, e, como sempre que o seu nome aparece, arrasta consigo o galope da luxúria, a ânsia da volúpia e do crime, eu, que já o vira Exu, pavor dos negros feiticeiros, fui encontrá-lo poluindo os retábulos com o seu deboche, enquanto a teoria báquica dos depravados e das demoníacas estorcia-se no paroxismo da orgia... Satanás é como a flecha de Zenon, parece que partiu, mas está parado - e firme nos corações. Surgem os cultos, desaparecem as crenças, esmaga-se a sua recordação, mas, impalpável, o Espírito do Mal espalha pelo mundo a mordacidade de seu riso cínico e ressurge quando menos se espera no infinito poder da tentação.

Conheci alguns dos satanistas atuais na casa de Saião, o exótico herbanário da rua Larga de São Joaquim, o tal que tem à porta as armas da República. Saião é um doente. Atordoa-o a loucura sensual. Faceirando entre os molhos de ervas, cuja propriedade quase sempre desconhece, o ambíguo homem discorre, com gestos megalômanos, das mortes e das curas que tem feito, dos seus amores e do assédio das mulheres em torno da sua graça. A conversa de Saião é um coleio de lesmas com urtigas. Quando fala cuspinhando, os olhitos atacados de satiríasis, tem a gente vontade de espancá-lo. A casa de Saião é, porém, um centro de observação. Lá vão ter as cartomantes, os magos, os negros dos ebôs, as mulheres que partejam, todas as gamas do crime religioso, do sacerdócio lúgubre.

Como, uma certa vez, uma negra estivesse a contar-me as propriedades misteriosas da cabeça do pavão, eu recordei que o pavão no Curdistão é venerado, é o pássaro maravilhoso, cuja cauda em leque reproduz o esquema secreto do deus único dos iniciados pagãos.

- O senhor conhece a magia? - fez a meu lado um homem esquálido, com as abas da sobrecasaca a adejar.

Imediatamente Saião apresentou-nos.

- O Dr. Justino de Moura.

O homem abancou, olhando com desprezo para o erbanário, limpou a testa inundada de suor e murmurou liricamente.

- Oh! a Ásia! a Ásia...

Eu não conhecia a magia, a não ser algumas formas de satanismo. O Dr. Justino puxou mais o seu banco e conversamos. Dias depois estava relacionado com quatro ou cinco frustes, mais ou menos instruídos, que confessavam com descaro vícios horrendos. Justino, o mais esquisito e o mais sincero, guarda avaramente o dinheiro para comprar carneiros e chupar-lhes o sangue; outro rapaz magríssimo, que foi empregado dos Correios, satisfaz apetites mais inconfessáveis ainda, quase sempre cheirando a álcool; um outro moreno, de grandes bigodes, é uma figura das praças, que se pode encontrar às horas mortas... Se de Satanás eles falavam muito, quando lhes pedia para assistir à missa-negra, os homens tomavam atitudes de romance e exigiam o pacto e a cumplicidade.

A religião do Diabo sempre existiu entre nós, mais ou menos. Nas crônicas documentativas dos satanistas atuais encontrei de envoutement e de malefícios, anteriores aos feitiços dos negros e a Pedro I. A Europa do século XVII praticava a missa-negra e a missa-branca. É natural que algum feiticeiro fugido plantasse aqui a semente da adoração do mal. Os documentos - documentos esparsos sem concatenação que o Dr. Justino me mostrava de vez em quando - contam as evocações do Papa Aviano em 1745. Os avianistas deviam ser nesse tempo apenas clientes, como é hoje a maioria dos freqüentadores dos espíritas, dos magos e das cartomantes. No século passado o número dos fanáticos cresceu, o avianismo transformou-se, adaptando correntes estrangeiras. A princípio surgiram os paladistas, os luciferistas que admiravam Lúcifer, igual de Adonai, inicial do Bem e deus da Luz.

Esses faziam uma franco-maçonaria, com um culto particular, que explicava a vida de Jesus dolorosamente. Guardam ainda os satanistas contemporâneos alguns nomes da confraria que insultava a Virgem com palavras estercorárias: - Eduardo de Campos, Hamilcar Figueiredo, Téopompo de Sonsa, Teixeira Werneck e outros, usando pseudônimos e compondo um rosário de nomes com significações ocultistas e simbólicas. Os paladistas não morreram de todo, antes se transfusaram em formas poéticas. No Paraná, onde há um movimento ocultista acentuado - como há todas as formas da crença, sendo o povo de poetas impressionáveis -, existem atualmente escritores luciferistas que estão dans le train dos processos da crença na Europa. A franco-maçonaria, morto o seu antigo chefe, um padre italiano Vitório Sengambo, fugido da Itália por crimes contra a moral, desapareceu. No Brasil não andam assim os apóstatas e, apesar do desejo de fortuna e de satisfações mundanas, é difícil se encontrar um caso de apostasia no clero brasileiro. Os luciferistas ficaram apenas curiosos relacionados com o supremo diretório de Charleston, donde partirá o novo domínio do mundo e a sua descristialição.

Os satanistas ao contrário imperam, sendo como são mais modestos.

Sabem que Satã é o proscrito, o infame, o mal, o conspurcador, fazem apenas o catolicismo inverso, e são supersticiosos, depravados mentais, ou ignorantes apavorados das forças ocultas. O número de crentes convictos é curto; o número de crentes inconscientes é infinito.

Seria curioso, neste acordar do espiritualismo em que os filósofos materialistas são abandonados pelos místicos, ver como vive Satã, como goza saúde o Tentador.

Nunca esse espírito interessante deixou de ser adorado. No início dos séculos, na idade-média, nos tempos modernos contemporaneamente, os cultos e os incultos veneram-no como a encarnação dos deuses pagãos, como o poder contrário à cata de almas, como o Renegado. As almas das mulheres tremem ao ouvir-lhe o nome, as criações literárias fazem-no de idéias frias e brilhantes como floretes de aço, no tempo do roman

tismo o Sr. Diabo foi saliente. Hoje Satanás dirige as literaturas perversas, as pornografias, as filosofias avariadas, os misticismos perigosos, assusta a Igreja Católica, e cada homem, cada mulher, por momentos ao menos, tem o desejo de o chamar para ter amor, riqueza, ciência e poder. Bem dizem os padres: Satanás é o Tentador; bem o pintou Tintoreto na Tentação, bonito e loiro como um anjo...

A nossa terra sofre cruelmente da crendice dos negros, agarra-se aos feiticeiros e faz a prosperidade das seitas desde que estabeleçam o milagre. Satanás faz milagres a troco de almas. Quem entre nós ainda não teve a esperança ingênua de falar ao Diabo, à meia-noite, mesmo acreditando em Deus e crendo na trapaça de Fausto? Quantos, por conselhos de magos falsos, em noites de trovoada, não se agitaram em lugares desertos à espera de ver surgir o Grande Rebelde? Há no ambiente uma predisposição para o satanismo, e como, segundo o Apocalipse, é talvez neste século que Satanás vai aparecer, o número dos satanistas autênticos, conhecedores da Cabala, dos fios imantados, prostituidores da missa, aumentou. Há hoje para mais de cinqüenta.

Quarta-leira santa encontrei o Dr. Justino no Saião. O pobre estava mais pálido, mais magro e mais sujo, levando sempre o lenço à boca, como se sentisse gosto de sangue.

Continua nas suas cenas de vampirismo? - sussurrei eu. Nos olhos do Dr. Justino uma luz de ódio brilhou.

- Infelizmente o senhor não sabe o que diz! Deu dois passos agitados, voltou-se, repetiu: infelizmente não sabe o que diz! O vampirismo! alguém sabe o que isto é? Não se faça de cético. Enquanto ri, a morte o envolve. Agora mesmo está sentado num molho de solanéas.

Eu o deixara dizer, subitamente penalizado. Nunca o vira tão nervoso e com um cheiro tão pronunciado de álcool.

- Não ria muito. O vampirismo como a sua filosofia cooperam para a vitória definitiva de Satanás... Conhece o Diabo?

A pergunta feita num restaurant bem iluminado seria engraçada. Naquele ambiente de herbanário, e na noite em que Jesus sofria, fez-me mal.

- Não. Também como o conhecer, sem o pacto?

- O pacto é conhecimento de causa.

Passeou febrilmente, olhando-me como a relutar com um desejo sinistro. Por fim agarrou-me o pulso.

- E se lhe mostrasse o Diabo, guardaria segredo?

- Guardaria! - murmurei.

- Então venha.

E bruscamente saímos para o luar fantástico da rua. Esta cena abriu-me de repente um mundo de horrores. O Dr. Justino, médico instruído, era simplesmente um louco. No bonde, aconchegando-se a mim, a estranha criatura disse o que estivera a fazer antes do nosso encontro. Fora beber o seu sanguezinho, ao escurecer, num açougue conhecido. Como todos os degenerados, abundou nos detalhes. Mandava sempre o carneiro antes; depois, quando as estrelas luziam, entrava no pátio, fazia uma incisão no pescoço do bicho e chupava, sorvia gulosamente todo o sangue, olhando os olhos vítreos do animal agonizante.

Não teria eu lido nunca o livro sobre o vampirismo, a possessão dos corpos? Pois o vampirismo era uma conseqüência fatal dessa legião de antigos deuses pagãos, os sátiros e os faunos, que Satanás atirava ao mundo com a forma de súcubos e incubos. O Dr. Justino era perseguido pelos incubos, não podia resistir, entregava-se...

Já não tinha espinha, já não podia respirar, já não podia mais e sentia-se varado pelos símbolos fecundos dos incubos como as feiticeiras em êxtase, nos grandes dias de sabbat.

Sacudi a cabeça como quem faz um supremo esforço para não soçobrar também.

O cidadão com quem falava era um doido atacado do solitário vício astral! Ele, entretanto, febril, continuava a descrever o poder de Satã sobre os cadáveres, a legião que acompanhou o Supremo e o inebriamento sabático.

- Mas, doutor, compreendamos. O sabbat em plena cidade? As feiticeiras de Shakespeare no Engenho Novo?

- Satã continua cultuado, por mais que o mundo se transforme. O sabbat já se fez até nos telhados. Os gatos e os morcegos, animais de Satã, vivem entre as telhas.

Lembrei-me de um caso de loucura, um estudante que recebia o diabo pelos telhados, e morrera furioso. Não me pareceu de todo falso. O sabbat, porém, o sabbat clássico, a festa horrenda da noite, o delírio nos bosques em que as árvores parecem demônios, a ronda detestável das mulheres nuas, subindo aos montes, descendo as montanhas, a fúria necrófila que desenterrava cadáveres e bebia álcool com sangue extinguiu-se. A antiga orgia, a comunicação imunda com o Diabo não passa de contos de demonógrafos, de fantasias de curiosos. Satã vive hoje em casa como qualquer burguês. Esse cavalheiro poderoso, o Tinhoso, não vai mais para trás das ermidas oficiar, as fúrias desnudas não espremem mais o suco da vida, rolando nas pedras, sob a ventania do cio. Todo o mal que a Deus fazem é em casa, nos deboches e na prostituição da missa.

E que vida a deles! Agora que o bonde passava pelo canal do Mangue e a lua batia na coma das palmeiras, o pobre homem, tremendo, contava-me as suas noites de agonia. Sim, o Dr. Justino temia os lêmures e as larvas, dormia com uma navalha debaixo do travesseiro, a navalha do Cambucá, um assassino que morrera de um tiro. As larvas são fragmentos de idéias, embriões de cóleras e ódios, restos de raivas danadas que sobem do sangue dos criminosos e do sangue regular das esposas e virgens aos astros para envolver as criaturas, são os desesperos que se transformam em touros e elefantes, são os animais da luxúria. E esses animais esmagavam-no, preparando-o para o grande escândalo dos incubos.

- Mas certamente, fiz para acalmá-lo, Satã, desde que se faz com o inferno um pacto e uma aliança com a morte, dá o supremo poder de magia, o quebranto, a bruxaria, o malefício, o envolver das vontades...

Ele sorriu tristemente, tiritando de febre.

- A magia está muito decaída, eivada de costumes africanos e misturadas de pagés. Conhece o malefício do ódio, a boneca de cera virgem? Esmagava-se a cera, modelava-se um boneco parecido com o odiado, com um dente, unhas e cabelos seus. Depois vestiam-lhe as roupas da pessoa e no batismo dava-se-lhe o seu próprio nome. Por sobre a boneca o mago estendia uma corda com um nó, símbolo da sua resolução e exclamava: - Arator, Lepidator, Tentador, Soniator, Ductor, Comestos, Devorator, Seductor, companheiros da destruição e do ódio, semeadores da discórdia que agitam livremente os maléficos, peço-vos e conjuro-vos que admitais e consagreis esta imagem...

- E a cera morna...

- Animado do seu ódio, o mago dominava as partículas fluídicas do odiado, e praguejando acabava atirando a boneca ao fogo, depois de trespassá-la com uma faca. Nessa ocasião o odiado morria.

- E o choque de volta?

- Quando o enfeitiçado percebia, em lugar de consentir nas perturbações profundas do seu ser, aproveitava os fluídos contra o assassino e havia conflagração.

O mágico, porém, podia envenenar o dente da pessoa, distender-se no éter e ir tocá-la.

Havia ainda o envoutement retangular...

Hoje, os feiticeiros são negros, os fluídos de uma raça inferior destinados a um domínio rápido. Os malefícios satânicos estão inundados de azeite-de-dendê e de ervas de caboclos.

Então, encostado a mim, com mau hábito, enquanto o bonde corria, o Dr. Justino deu-me várias receitas. Como se estuda nesse receituário macabro o temor de várias raças, desde os ciganos boêmios até os brancos assustadiços! O sangue é o seu grande fator: cada feitiço é um misto de imundície e de infâmia. Para possuir, para amar, para vencer, os satanistas usam, além das receitas da clavícula, de morcegos, porcos-da-índia, pós, ervas, sangue mensal das mulheres, ratos brancos, produto de espasmos, camundongos, rabos de gatos, moedas de ouro, fluidos, carnes, bolos de farinha com óleos, e para abrir uma chaga empregam, por exemplo, o ácido sulfúrico...

- Com o poder do Horrendo, fez subitamente o médico numa nova crise, é lá possível temer esse idiota que morreu na cruz? Sabe que os talmudistas negam a ressurreição?

Levantou-se titubeante, saltamos. O bonde desapareceu. Embaixo, no leito do caminho de ferro, os rails de aço branquejavam, e, no ar, morcegos faziam curvas sinistras. O Dr. Justino ardia em febre. De repente ergueu os pulsos.

- Impostor! Torpe! Salafrário! - ganiu aos céus estrelados.

- Onde vamos?

- À missa-negra...

- Onde?

- Ali.

- Estendeu a mão, veio-lhe um vômito, emborcou no meu braço que o amparava, golfando num estertor pedaços de sangue coagulado.

Ao longe ouviu-se o silvo da locomotiva.

Então, como possuído do Diabo nos braços eu bati à porta dos satanistas, ouvindo a sua desgraçada vida e a dor infindável da morte.