Os Sertões/Quarta Expedição/II

Mobilização de tropas

Descoloraram-se batalhões de todos os Estados: 12°, 25°, 30º, 31°, 32°, do Rio Grande do Sul; o 27°, da Paraíba; o 34°, do Rio Grande do Norte; o 33° e o 35°, do Piauí; o 5°, do Maranhão; o 4°, do Pará; o 26º, de Sergipe; o 14° e o 5°, de Pernambuco; o 2°, do Ceará; o 5° e parte do 9° de Cavalaria, Regimento da Artilharia da Capital Federal: o 7°, o 9° e o 16º, da Bahia.

O comandante do 2° Distrito Militar, general Artur Oscar de Andrade Guimarães, convidado para assumir a direção da luta, aceitou-a, tendo antes, numa proclamação pelo telégrafo, definido o seu pensar sobre as coisas: "Todas as grandes idéias tem os seus mártires; nós estamos votados ao sacrifício de que não fugimos para legar à geração futura uma República honrada, firme e respeitada."

A mesma nota em tudo: era preciso salvar a República...

Concentração em Queimadas

As tropas convergiam na Bahia. Chegavam àquela capital em batalhões destacados e seguiam imediatamente para Queimadas. Esta medida, além de corresponder à urgência de uma organização pronta naquela vila — feita base de operações provisórias —, impunha-se por outro motivo igualmente sério.

É que, generalizando-se de um conceito falso, havia no ânimo dos novos expedicionários uma suspeita extravagante a respeito das crenças monárquicas da Bahia. Ali saltavam com altaneria provocante de triunfadores em praça conquistada. Aquilo, preestabelecera-se, era um Canudos grande. A velha capital com o seu aspecto antigo, alteada sobre a montanha, em que embateram por tanto tempo as chusmas dos "varredores do mar", batavos e normandos; conservando, a despeito do tempo, as linhas tradicionais da antiga metrópole do oceano; ereta para a defesa, com os seus velhos fortes disjungidos, esparsos pelas eminências, acrópoles desmanteladas, canhoneiras abertas para o mar; com as suas ladeiras a prumo, envesgando pela montanha segundo o mesmo traçado das trincheiras de taipa de Tomé de Sousa; e com as suas ruas estreitas e embaralhadas pelas quais passaria hoje Fernão Cardim ou Gabriel Soares sem notar diferenças sensíveis — aparecia-lhes como uma ampliação da tapera sertaneja. Não os comovia; irritava-os. Eram cossacos em ruas de Varsóvia. Nos lugares públicos a população surpreendida ouvia-lhes comentários acerbos, enunciados num fanfarrear contínuo, sublinhado pelo agudo retinir das esporas e das espadas. E a animadversão gratuita, dia a dia avolumando-se, traduzia-se ao cabo em desacatos e desmandos.

Citemos um caso único: os oficiais de um batalhão, o 30°, levaram a dedicação pela República a um assomo iconoclasta. Em pleno dia tentaram despedaçar, a marretadas, um escudo em que se viam as armas imperiais, erguido no portão da alfândega velha. A soldadesca por seu lado, assim edificada, exercitava-se em correrias e conflitos.

A paixão patriótica roçava, derrancada, pela insânia. A imprensa e a mocidade do Norte, afinal, protestaram e, mais eloqüente que as mensagens então feitas, falava em toda a parte o descontentamento popular, prestes a explodir.

Assim, como medida preventiva, os batalhões chegavam, desembarcavam, atulhavam os carros da Estrada de Ferro Central e seguiam logo para Queimadas. De sorte que em pouco tempo ali estavam todos os corpos destinados à marcha por Monte Santo; e o comandante geral das forças, em ordem do dia de 5 de abril, pôde organizar a expedição:

Organiza-se a 4ª expedição

"Nesta data ficam assim definitivamente organizadas as forças sob meu comando:

Os 7°, 14° e 30° Batalhões de Infantaria constituem a 1ª Brigada sob o comando do coronel Joaquim Manuel de Medeiros; 16°, 25° e 27° Batalhões da mesma arma, a 2ª Brigada ao mando do coronel Inácio Henrique Gouveia; 5° Regimento da Artilharia de Campanha, 5° e 9º Batalhões de Infantaria, a 3ª Brigada sob o comando do coronel Olímpio da Silveira; 12°, 31° e 33° da mesma arma e uma divisão de artilharia, a 4ª Brigada sob o comando do coronel Carlos Maria da Silva Teles; 34°, 35° e 40º, a 5ª Brigada sob o comando do coronel Julião Augusto de Serra Martins; 26°, 32° da Infantaria e uma divisão de artilharia, a 6ª Brigada sob o comando do coronel Donaciano de Araújo Pantoja.

A 1ª, 2ª e 3ª Brigadas formaram uma coluna, sob o comando do general João da Silva Barbosa, ficando responsável pela mesma, até a respectiva apresentação daquele general, o coronel comandante da 1.ª Brigada; a 4ª, 5ª e 6ª Brigadas outra coluna, sob o comando do general Cláudio do Amaral Savaget."

Crítica

Estava constituída a expedição.

A ordem do dia nada dizia quanto ao desdobramento das operações, talvez porque este, desde muito conhecido, pouco se desviara do traçado anterior. Resumia-se naquela divisão de colunas. Ao invés de um cerco à distância, para o que eram suficientes aqueles dezesseis corpos articulando-se em pontos estratégicos e a pouco constringindo-se em roda do arraial, planeara-se investir com os fanáticos por dois pontos, seguindo uma das colunas, a primeira, por Monte Santo, enquanto a segunda, depois de reunida em Aracaju, atravessaria Sergipe até Jeremoabo.

Destas vilas convergiriam sobre Canudos.

Linhas já escritas dispensam o insistir na importância de semelhante plano — cópia ampliada de erros anteriores, com uma variante única: em lugar de uma eram duas as massas compactas de soldados que iriam tombar, todos a um tempo, englobadamente, nas armadilhas da guerra sertaneja. E quando, agitando as mais favoráveis hipóteses, isto não acontecesse, era fácil verificar que a plena consecução dos itinerários preestabelecidos problematizava ainda um desenlace satisfatório da campanha. À simples observação de um mapa ressaltava que a convergência predeterminada, embora se realizasse, não determinaria o esmagamento da rebelião, mesmo à custa do alvitre extremo e doloroso da batalha.

As estradas escolhidas, do Rosário e de Jeremoabo, interferindo-se fora do povoado, num ponto de sua amplíssima periferia, eram inaptas para o assédio. Os jagunços batidos numa direção única, no quadrante de sudeste, tinham, caso fossem desbaratadas, francos para o ocidente e para o norte, os caminhos do Cambaio, do Uauá e da Várzea da Ema; todo o vasto sertão do São Francisco, asilo impenetrável a que se acolheriam a salvo e onde se aprestariam para a réplica. Ora, a consideração desse abandono em massa do arraial raiava pelo mais exagerado otimismo. Os sertanejos resistiriam, como resistiram, e, reagindo aos assaltos feitos apenas por um único flanco, teriam como tiveram, pelos outros, mil portas por onde comunicarem com as cercanias e abastecerem-se à vontade.

Eram circunstâncias fáceis de deduzirem-se. E, previstas, apontavam naturalmente um corretivo único: uma terceira coluna, que, partindo de Juazeiro ou Vila Nova, e vencendo uma distância equiparada às percorridas pelas outras, com elas convergisse, trancando a pouco e pouco aquelas estradas, originando por fim um bloqueio efetivo.

Não se cogitou, porém, desta divisão suplementar indispensável. Não havia tempo para tal. O país inteiro ansiava pela desafronta do Exército e da pátria...

Era preciso marchar e vencer. O general Savaget seguiu logo, nos primeiros dias de abril, para Aracaju; e o comandante-em-chefe, em Queimadas, dispôs-se para a investida.

Delongas

Mas esta só se realizaria dois meses depois, em fins de junho. Os lutadores, soldados e patriotas, chegavam à obscura estação da estrada de ferro do São Francisco e quedavam impotentes para a partida.

O grande movimento de armas de março fora uma ilusão. Não tínhamos exército, na significação real do termo, em que se inclui, mais valiosa que a existência de alguns milhares de homens e espingardas, uma direção administrativa, técnica e tática, definida por um Estado-maior enfeixando todos os serviços, desde o transporte das viaturas aos lineamentos superiores da estratégia, órgão preparador por excelência das operações militares.

Faltava tudo. Não havia um serviço de fornecimento organizado, de sorte que numa base de operações provisória, presa ao litoral por uma estrada de ferro, foi impossível conseguir-se um depósito de víveres. Não havia um serviço de transporte suficiente para cerca de cem toneladas de munições de guerra.

Por fim não havia soldados: os carregadores de armas, que por ali desembarcaram, não vinham dos polígonos de tiro, ou campos de manobra. Os batalhões chegavam, alguns desfalcados, menores que companhias, com o armamento estragado e carecendo das noções táticas mais simples. Era preciso completá-los, armá-los, vesti-los, municiá-los, adestrá-los e instruí-los.

Queimadas fez-se um viveiro de recrutas e um campo de instrução. Os dias começaram a escoar-se monotonamente em evoluções e manobras, ou exercícios de fogo, numa linha de tiro improvisada num sulco aberto na caatinga próxima. E o entusiasmo marcial dos primeiros tempos afrouxava, molificando na insipidez daquela Cápua invertida, em que bocejavam, remansando, centenares de valentes, marcando passo diante do inimigo...

Dali seguiram, batalhão por batalhão, iludindo em transporte parcial a carência de viaturas, para Monte Santo, onde a situação não variou. Continuaram até meados de junho os mesmos exercícios e a mesma existência aleatória de mais de 3 mil homens em armas, dispostos aos combates mas impotentes para a partida e — registremos esta circunstância singularíssima — vivendo à custa dos recursos ocasionais de um município pobre e talado pelas expedições anteriores.

A custo terminara-se a linha telegráfica de Queimadas, pela comissão de engenheiros militares, dirigida pelo tenente-coronel Siqueira de Meneses. E foi a única coisa apreciável durante tanto tempo perdido. O comandante-em-chefe, sem carretas para o transporte de munições, desapercebido dos mais elementares recursos, quedava-se, sem deliberar, diante da tropa acampada, e mal avitualhada por alguns bois magros e famintos dispersos em torno sobre as macegas secas das várzeas. O deputado do quartel-mestre-general não conseguira sequer um serviço regular de comboios, que partindo de Queimadas abastecessem a base das operações, de modo a armazenar reservas capazes de sustentar por oito dias a tropa. De sorte que ao chegar o mês de julho, quando a 2ª coluna, atravessando Sergipe, se abeirava de Jeremoabo, não havia em Monte Santo um único saco de farinha em depósito. A penúria e uns como prenúncios de fome condenavam à imobilidade a divisão em que se achava o principal chefe da campanha.

Esta estagnação desalentava os soldados e alarmava o país. Como um diversivo, ou um pretexto de afastar por alguns dias de Monte Santo mil e tantos concorrentes aos escassos recursos da coluna, duas brigadas seguiram em reconhecimentos inúteis até ao Cumbe e Maçacará. Foi o único movimento militar realizado e não teve sequer o valor de aplacar a impaciência dos expedicionários.

Uma delas, a 3ª de Infantaria — recém-formada com o 5º e 9° Batalhões de Artilharia, porque esta se reconstituíra com a anexação de uma bateria de tiro rápido e com o 7º destacado da 1ª — estava sob o comando de um oficial incomparável no combate, mas de temperamento irrequieto demais para aquela apatia. E ao chegar a Maçacará, depois de prear em caminho alguns cargueiros que demandavam o arraial sedicioso, em vez de volver à base de operações esteve na iminência de seguir, isolada, pela estrada do Rosário, para o centro da luta. O coronel Thompson Flores, planeando este movimento indisciplinado e temerário, mal contido pela sua oficialidade, delatava, bem que exagerada pelo seu forte temperamento nervoso, a situação moral dos combatentes. Revoltava-os a todos a imobilidade em que se amortecera o arranco o marcial dos primeiros dias.

Estremeciam muitos imaginando o desapontamento de receberem, de improviso, a nova da de Canudos pelo general Savaget. Calculavam os efeitos daquela dilação ante a opinião pública ansiosa por um desenlace; e consideravam quão útil se tornaria ao adversário alentado por três vitórias aquele armistício de três meses.

Esta última consideração era capital.

Não há um plano de campanha

O general Artur Oscar determinou de agir traçando, a 19 de junho, a ordem do dia da partida na qual "deixa à imparcialidade da História a justificativa de tal demora". Sem o laconismo próprio de tais documentos, o general, após augurar inevitável vitória sobre a gente de Antônio Conselheiro, "o inimigo da República", aponta às tropas os perigos que as saltearão à entrada do sertão, onde "o inimigo as atacará pela retaguarda e flancos" no meio daquelas "matas infelizes" eivadas "de caminhos obstruídos, trincheiras, surpresas de toda a sorte, e tudo quanto a guerra tem de mais odioso". Em que pese à sua literatura alarmante, eram dados verdadeiros estes. A comissão de engenharia realizara reconhecimentos acordes no afirmarem, mais viva, a aspereza do solo, cujos traços topográficos impunham três condições ao favorável sucesso da campanha: forças bem abastecidas, que dispensassem os recursos das paragens pobres; mobilidade máxima; e plasticidade, que as adaptasse bem às flexuras do terreno revolto e agro.

Crítica

Eram três requisitos essenciais, completando-se. Mas nem um só foi satisfeito. As tropas partiriam da base de operações — à meia ração. Seguiriam chumbadas às toneladas de um canhão de sítio. E avançariam em brigadas cujos batalhões, a quatro de fundo, guardavam esses intervalos de poucos metros.

Persistia a obsessão de uma campanha clássica. Mostram-na as instruções entregues, dias antes, aos comandantes de corpos. Resumo de uns velhos; preceitos que cada um de nós, leigos no ofício, pode encontrar nas páginas do Vial, o que em tal documento se depara — é a teimosia no imaginar, impactas, dentro de traçados gráficos, as guerrilhas solertes dos jagunços.

O chefe expedicionário alongou-se exclusivamente numa distribuição de formaturas. Não se preocupou com o aspecto essencial de uma campanha que, reduzida ao domínio estrito da tática — se resumia no aproveitamento do terreno e numa mobilidade vertiginosa. Porque a sua tropa mal distribuída ia seguir para o desconhecido, sem linhas de operações — adstrita aos reconhecimentos ligeiros feitos anteriormente, ou dados colhidos, de relance, por oficiais das outras expedições — e nada existe de prático naquelas instruções sobre serviço de segurança na vanguarda e nos flancos. Em compensação ostenta a preocupação da ordem mista, em que os corpos, na emergência da batalha , se deveriam desenvolver, com as distâncias regulamentares , de modo que cada brigada, desarticulando-se em campo raso, pudesse, geometricamente — cordões de atiradores, linhas de apoio e reforço, e reservas — agir com a segurança mecânica estatuída pelos luminares da guerra. E o chefe expedicionário citou, a propósito, Ther Brun. Não quis inovar. Não imaginou que o frio estrategista invocado, um gênio que não valia na ocasião as ardilezas de um capitão do mato, capitularia os dispositivos preceituados de idealização sem nome, nas guerras sertanejas — guerras à gandaia, sem programas rígidos, sem regras regulares, rodeadas de mil casos fortuitos, e aos recontros súbitos em todas as voltas dos caminhos ou tocaias em toda a parte.

Copiou instruções que nada valiam, porque estavam certas demais. Quis desenhar o imprevisto. A luta, que só pedia um chefe esforçado e meia dúzia de sargentos atrevidos e espertos, ia iniciar-se enleada em complexa rede hierárquica — uns tantos batalhões maciços entalando-se em veredas flexuosas e emperrados diante de adversários fugitivos e bravos. Prendeu-se-lhe, além disto, às ilhargas, a mola de aço de um With-worth de 32, pesando 1.700 quilos! A tremenda máquina, feita para a quietude das fortalezas costeiras — era o entupimento dos caminhos, a redução da marcha, a perturbação das viaturas, um trambolho a qualquer deslocação vertiginosa de manobras. Era, porém, preciso assustar os sertões com o monstruoso espantalho de aço, ainda que se pusessem de parte medidas imprescindíveis.

Exemplifiquemos: as colunas partiram da própria base das operações em situação absolutamente inverossímil — à meia ração. Marcharam em desdobramentos que, como veremos em breve, não as forravam dos assaltos. Por fim, não tiveram a garantia de uma vanguarda eficaz, de flanqueadores capazes de as subtraírem a surpresas.

Os que as acompanhavam nada valiam. Tinham que marchar, ladeando o grosso da tropa por dentro das caatingas, e estas tolhiam-lhes o passo. Soldados vestidos de pano, rompendo aqueles acervos de espinheirais e bromélias, mal arriscariam alguns passos, deixando por ali, esgarçados, os fardamentos, em tiras.

Entretanto, poderiam avançar adrede predispostos à remoção de tais inconvenientes. Bastava que fossem apropriadamente fardados. O hábito dos vaqueiros era um ensinamento. O flanqueador devia meter-se pela caatinga, envolto na armadura de couro do sertanejo — garantido pelas alpercatas fortes, pelos guarda-pés e perneiras, em que roçariam inofensivos os estiletes dos xique-xiques pelos gibões e guarda-peitos, protegendo-lhe o tórax, e pelos chapéus de couro, firmemente apresilhados ao queixo, habilitando-o a arremessar-se, imune, por ali adentro. Um ou dois corpos assim dispostos e convenientemente adestrados acabariam por copiar as evoluções estonteadoras dos jagunços, sobretudo considerando que ali estavam, em todos os batalhões, filhos do Norte, nos quais o uniforme bárbaro não se ajustaria pela primeira vez.

Não seria, isto, excessiva originalidade. Mais extravagantes são os dólmãs europeus de listas vivas e botões fulgentes, entre os gravetos da caatinga decídua. Além disto, atestam-no os nossos admiráveis patrícios dos sertões, aquela vestidura bizarra, capaz, em que pese ao seu rude material, de se afeiçoar aos talhos de uma plástica elegante, parece que robustece e enrija. É um mediador de primeira ordem ante as intempéries. Atenua o calor no estio, atenua o frio no inverno; amortece as mais repentinas variações de temperatura; normaliza a economia fisiológica e produz atletas. Harmoniza-se com as maiores vicissitudes da guerra. Não se gasta; não se rompe. Depois de um combate longo, o lutador exausto tem o fardamento intacto e pode repousar sobre uma moita de espinhos. Ao ressoar de um alarma súbito, apruma-se, de golpe, na formatura, sem uma prega na sua couraça flexível. Marcha sob uma chuva violenta e não tirita encharcado; depara, adiante, um hervaçal em chamas e rompe-o aforradamente; entolha-se-lhe um ribeirão correntoso e vadeia-o, leve, da véstia impermeável.

Mas isto seria uma inovação extravagante. Temeu-se colar à epiderme do soldado a pele coriácea do jagunço. A expedição devia marchar corretíssima. Corretíssima e fragílima.

Partira em primeiro lugar, no dia 14, a comissão de engenharia, protegida por uma brigada. Levava uma tarefa árdua. afeiçoar à marcha as trilhas sertanejas; e retificá-las, ou alargá-las, ou nivelá-las, ou ligá-las por estivas e pontilhões ligeiros, de modo que em tais veredas, cindidas de boqueirões e envesgando pelos morros, passasse aquela artilharia imprópria — as baterias de Krupp, alguns canhões de tiro rápido, e o aterrador 32, que por si só requeria estrada de rodagem, consolidada e firme.

Esta estrada foi feita. Abriu-a num belo esforço, e com tenacidade rara, a comissão de engenharia, desenvolvendo-a ao alto da Favela, num percurso de quinze léguas.

A comissão de engenharia

Para este trabalho notável houve um chefe — o tenente-coronel Siqueira de Meneses.

Siqueira de Meneses

Ninguém até então compreendera com igual lucidez a natureza da campanha, ou era mais bem aparelhado para ela. Firme educação teórica e espírito observador tornavam-no guia exclusivo daqueles milhares de homens, tateantes em região desconhecida e bárbara. Percorrera-a quase só, acompanhado de um ou dois ajudantes, em todos os sentidos. Conhecia-a toda; e infatigável, alheio a temores, aquele campeador, que se formara fora da vida dos quartéis, surpreendia os combatentes mais rudes. Largava pelas chapadas amplas, perdia-se no deserto referto de emboscadas, observando, estudando e muitas vezes lutando. Cavalgando animais estropiados, inaptos a um meio galope frouxo, afundava nos grotões; varava-os; galgava os cerros abruptos, em reconhecimentos perigosos; e surgia no Caipã, em Calumbi e no Cambaio, em toda a parte, mais preocupado com a carteira de notas e os croquis ligeiros do que com a vida.

Atraía-o aquela natureza original. A sua flora estranha, o seu facies topográfico atormentado, a sua estrutura geognóstica ainda não estudada — antolhavam-se-lhe, largamente expandidas, em torno, escritas numa página revolta da terra que ainda ninguém lera. E o expedicionário destemeroso fazia-se, não raro, o pensador contemplativo. Um pedaço de rocha, o cálice de uma flor ou um acidente do solo, despeavam-no das preocupações da guerra, levando-o à região remansada da ciência.

Conheciam-no os vaqueiros amigos das cercanias e por fim os próprios jagunços. Assombrava-os aquele homem frágil, de fisionomia nazarena, que, apontando em toda a parte com uma carabina à bandoleira e um podômetro preso à bota, lhes desafiava a astúcia e não tremia ante as emboscadas e não errava a leitura da bússola portátil entre os estampidos dos bacamartes.

Por sua vez o comandante-em-chefe avaliara o seu valor. O tenente-coronel Meneses era o olhar da expedição. Oriundo de família sertaneja do Norte e tendo até próximos colaterais entre os fanáticos, em Canudos, aquele jagunço alourado, de aspecto frágil, física e moralmente brunido pela cultura moderna, a um tempo impávido e atilado — era a melhor garantia de uma marcha segura. E deu-lhe um traçado que surpreendeu os próprios sertanejos.

Estrada de Calumbi

Entre os caminhos que demandavam Canudos, dois, o do Cambaio e o de Maçacará, haviam sido trilhados pelas expedições anteriores. Restava o de Calumbi, mais curto e em muitos pontos menos impraticável, sem as trincheiras alterosas do primeiro ou vastos plainos estéreis do último. Tais requisitos faziam crer que fosse inevitavelmente escolhido. Neste pressuposto os sertanejos fortificaram-no de tal maneira que a marcha da expedição por ali acarretaria desastre completo, muito antes do arraial.

O plano esboçado pela comissão de engenharia evitou-o, norteando a estrada mais para o levante, beirando os contrafortes de Aracati.

A marcha para Canudos

Por ali avançaram, parceladamente, as brigadas.

A de artilharia, decampando de Monte Santo, a 17, deparou, logo aos primeiros passos, dificuldades sérias. Enquanto os canhões mais ligeiros chegavam, transcorridos dez quilômetros, ao Rio Pequeno, o obstruente 32 ficara distanciado de uma légua. Pela estrada, escorregadia e cheia de tremedais, ronceavam penosamente as vinte juntas de bois que o arrastavam, guiadas por inexpertos carreiros, uns e outros pouco afeitos àquele gênero de transportes, inteiramente novo e em que toda a sorte de empecilhos surgiam a todo o instante e a cada passo, nas flexuras fortes do caminho, na travessia das estivas mal feitas, ou em repentinos desnivelamentos, fazendo adornar a máquina pesadíssima.

Somente no dia 19, à tarde, gastando três dias para percorrer três léguas, chegou o canhão retardatário ao Caldeirão Grande, permitindo que se reorganizasse a brigada de artilharia que, juntamente com a 2ª, de Infantaria, tendo à vanguarda o 25° Batalhão do tenente-coronel Dantas Barreto, prosseguiria na manhã subsequente para a Gitirana, distante oito quilômetros da estação anterior, com a mesma marcha fatigante e remorada.

Naquele mesmo dia saíra de Monte Santo o comandante geral e o grosso da coluna constituído pelas 1ª e 3ª Brigadas, com o efetivo de 1.933 soldados.

Toda a expedição em caminho, forte de uns 3 mil combatentes, avançou até ao Aracati, 46 quilômetros além de Monte-Santo, de idêntico modo: as grandes divisões progredindo isoladas, ou concentrando-se e dispersando-se logo, distanciando-se às vezes demais, contrastando sempre a investida ligeira da vanguarda com o tardo caminhar da artilharia.

O 5° Corpo da Polícia Baiana

Mais afastado ainda, no coice de toda a tropa, ia o grande comboio geral de munições, sob o mando direto do deputado do quartel-mestre-general, coronel Campelo França, e guarnecido com 432 praças, o 5° Corpo da Polícia Baiana — o único entre todos que se talhara pelas condições da campanha. Recém-formara-se com sertanejos engajados nas regiões ribeirinhas do São Francisco. Mas não era um batalhão de linha, como não era um batalhão de polícia. Aqueles caboclos rijos e bravos, joviais e bravateadores, que mais tarde, nos dias angustiosos do assédio de Canudos, descantariam, ao som dos machetes, modinhas folgazãs, debaixo de fuzilarias rolantes eram um batalhão de jagunços. Entre as forças regulares de um e outro matiz, imprimiam o traço original da velha bravura a um tempo romanesca e bruta, selvagem e heróica, cavaleira e despiedada, dos primeiros mestiços, batedores de bandeiras. Eram o temperamento primitivo de uma raça, guardado, intacto, no insulamento das chapadas, fora da intrusão de outros elementos e aparecendo, de chofre, com a sua feição original; misto interessante de atributos antilógicos, em que uma ingenuidade adorável e a lealdade levada até ao sacrifício, e o heroísmo distendido até à barbaridade, se confundem e se revezam, indistintos. Vê-lo-emos ao diante.

Alteração da formatura

O 5° Corpo e o comboio, partindo por último, de Monte Santo, à reçaga da expedição, quando deviam centralizá-la, seguiam, ao cabo, completamente isolados. E isto acontecia aos demais batalhões. A despeito da formatura estatuída, verificara-se logo a impossibilidade de uma concentração imediata, na emergência da batalha. Adstrito ao trabalho dos sapadores, todo o trem da artilharia ficava, por vezes, longamente separado do resto da coluna, como um trambolho obstruente entre a vanguarda e comboio geral. De sorte que se, por um golpe de ousadia, os jagunços, em trechos adrede escolhidos, houvessem salteado o último, o refluxo da primeira, correndo em auxílio, estacaria de encontro às baterias engasgadas nas veredas estreitas.

Revela-o o roteiro pormenorizado da marcha. Enquanto o grosso da coluna decampava, no alvorecer de 21, do Rio Pequeno, pouco mais de uma légua de Monte Santo, e chegava, seriam nove horas da manhã, ao Caldeirão Grande, depois de caminhar duas léguas, já desta escala largara à retaguarda da artilharia o canhão 32, protegido pela Brigada Medeiros. Na mesma ocasião, mais avantajada, a Brigada Gouveia atingia a Gitirana, à noite, onde já se achavam a comissão de engenheiros e o general Artur Oscar, que até lá fora, escoteiro, seguido de um piquete de vinte praças de cavalaria e do 9° de Infantaria. Considerando-se que o comboio dirigido pelo coronel Campelo França e protegido pelo 5º de Polícia ficara à retaguarda , vê-se que a tropa se espalhara em longura de quase quatro léguas, violando-se inteiramente as instruções preestabelecidas.

No amanhecer do dia 22, enquanto o general Barbosa, que permanecera o resto do dia anterior em Caldeirão, levantava acampamento seguindo para Gitirana, daí partia o comandante geral com a Primeira Brigada, o 9º Batalhão da 3ª e 25° da 2ª, a ala de cavalaria do major Carlos de Alencar e a artilharia, levando o dispositivo prefixado: na frente o 14° e 30° Batalhões, no centro a cavalaria e a artilharia; depois dois outros corpos, o 9° e o 2.°. Ora, enquanto o comandante geral seguia rapidamente naquele dia, chegando em pouco tempo com a vanguarda a Juá, 7.600 metros além de Gitirana, imobilizava-se a artilharia nesta última escala aguardando que a comissão de engenheiros ultimasse a abertura de picadas e trabalhos de sapa; e, como o grosso das forças vinha ainda pela estrada do Caldeirão, estas mais uma vez se subdividiam forçadamente, ficando em condições desvantajosas na emergência de um assalto, porque não vinham adrede dispostas a afastamentos tão largos, que deviam ter sido de antemão estabelecidos, realizando-se não como um vício de mobilidade mas como requisito tático indispensável.

As brigadas reuniram-se, por fim, na noite daquele dia, em Juá. Ali chegou, às 6 horas, logo após a artilharia, o resto da coluna composta dos 5°, 7°, 15°, 16° e 27° corpos de infantaria. Executava-se o comboio, retardado num trecho qualquer dos caminhos.

Daquele ponto seguiram os dois generais, na manhã de 23, para Aracati, 12.800 metros na frente, fazendo a vanguarda os batalhões do coronel Gouveia. Mas a artilharia, protegida pelos do coronel Medeiros, só se moveu ao meio-dia, depois que os engenheiros, apoiados pela Brigada Flores, executaram penosíssimos trabalhos de reparos.

Pormenorizamos, miudeando-a aos menores incidentes, esta marcha, para que se revelem as condições excepcionais que a rodearam.

Depois da partida de Juá e atingida a velha fazenda do Poço, totalmente em ruínas, sobreveio incidente indicador do quanto era conhecido o terreno em que se avançava.

Incidentes

Ao invés de prosseguirem em rumo para a direita — buscando a fazenda do Sítio, de um sertanejo aliado, Tomás Vila-Nova inteiramente dedicado à nossa gente — entraram os sapadores por um desvio, a esquerda. Quando já iam longe, depois de algumas horas de trabalho, reconheceu o tenente-coronel Siqueira de Meneses a impossibilidade de afeiçoar os caminhos com a presteza necessária. "Tais eram o grande movimento de terras a fazer-se, o cerrado da caatinga, os pesados lajedos a remover-se, além dos acidentes do terreno para a descida e subida dos veículos". Abandonando então todo o trabalho feito, procurou o sítio de Vila-Nova. Esclarecido por este, atacou à tarde a nova vereda que, embora alongando a distância, tinha melhores condições de viabilidade. A artilharia por ali só avançou ao cair da tarde, passando pelo sítio dos Pereiras. Foi acampar a meia-noite na lagoa da Laje, dois quilômetros aquém de Aracati, onde já estava havia muito toda a coluna. Ficara ainda mais à retaguarda, com a 3ª Brigada, o moroso 32, à borda a pique de um ribeirão, o dos Pereiras, que o adiantado da noite obstara se pudesse atravessar.

Entrava-se, no entanto, na zona perigosa. Nesse dia, na lagoa da Laje, o piquete do comando geral, guiado por um alferes, surpresara alguns rebeldes que destelhavam a casa ali existente. O recontro foi rápido. Os sertanejos, de surpresa acometidos por uma carga, fugiram sem replicar. Um único ficou. Estava sobre o telhado levadio e ao descer viu-se circulado. Reagiu apesar de ferido. Afrontou-se com o adversário mais próximo, um anspeçada; desmontou-o; e arrancou-lhe das mãos a clavina, derreando-o com ela a coronhadas. Encostou-se depois à parede do casebre e fez frente aos soldados, girando-lhes à cabeça a arma, em molinete. Batido, porém, de toda a banda, baqueou, exausto e retalhado. Mataram-no. Era a primeira façanha, exígua demais para tanta gente.

Suceder-se-lhe-iam outras.

No dia 24 agravou-se a marcha. A coluna, que decapara de Aracati ao meio-dia, porque teve de aguardar a vinda dos retardatários da véspera, endireitou, unida, para Juetê, distante 13.200 metros — para mais uma vez se subdividir.

Os caminhos pioravam.

Tornou-se necessário, além dos trabalhos de sapa, abrir mais de uma légua de picada contínua através de uma caatinga feroz que naquele trecho justifica bem o significado da denominação indígena do lugar .

Relata o chefe desse trabalho memorável:

"Ao xiquexique, palmatória, rabo-de-raposa, mandacarus, croás, cabeça-de-frade, culumbi, cansação, favela, quixaba e a respeitabilíssima macambira, reuniu-se a muito falada e temida cumanã, espécie de cipó com aspecto arborescente, imitando no todo a uma planta cultivada nos jardins, cujas folhas são cilíndricas. A poucos centímetros do chão o tronco divide-se em muitos galhos, que se multiplicam numa profusão admirável, formando uma grande copa, que se mantém no espaço por seus próprios esforços ou favorecido por algumas plantas que vegetam de permeio. Estende suas franças de folhas cilíndricas com oito caneluras e igual número de filetes em gume e pouco salientes, semelhando-se a um enorme polvo de milhões de antenas, como elas flexíveis e elásticas, cobrindo, não raras vezes, considerável superfície do solo, emaranhando-se, por entre a esquisita e raquítica vegetação destas paragens, em uma trama impenetrável. A foice mais afiada dos nossos soldados do contingente de engenharia ("chineses", na frase gaiata dos companheiros dos corpos combatentes) e polícia dificilmente as decepava nos primeiros golpes, oferecendo, portanto, resistência inesperada ao empenho que todos traziam em ir por diante. Nesse labirinto de nova espécie, teve a comissão de engenharia em poucas horas de abrir mais de seis quilômetros de estrada, tendo ao encalço a artilharia, que a atropelava impaciente. O ingente esforço desenvolvido pelos distintos e patriotas republicanos, empenhados neste pesadíssimo labor, não impediu que a noite os viesse surpreender, antes de chegar à espécie de clareira denominada pelo povo do lugar de Queimadas, onde esta vegetação traiçoeira desaparecia de sua frente, como que tomada de medo. Antes que o desânimo, o cansaço e o sono se apoderassem dos nossos soldados resignados e trabalhadores, a citada comissão representada nesta ocasião pelo chefe, tenentes Nascimento e Crisanto, alferes Ponciano, Virgílio e Melquíades, os dois últimos da polícia, o terceiro auxiliar e o quarto comandante do contingente de engenharia, pois o capitão Coriolano e tenente Domingos Ribeiro achavam-se mais atrás em outros trabalhos, tomou o alvitre de mandar acender, já escura a noite, de distancia em distancia, grandes fogueiras para à sua luz prosseguirem os obreiros da boa causa da pátria.

"Assim concluiu-se com alegria geral e contentamento, das oito para nove horas da noite, este último trecho, em que a cumanã se dissolveu em mais benigna vegetação ao sair das Queimadas de que já falamos. O canhão 32, não podendo vencer os obstáculos avolumados pela noite, ficou dentro da picada até o dia seguinte e com ele o dr. Domingos Leite, que trabalhava desde o Rio Pequeno com uma turma de "chineses" no empenho de levá-lo a Canudos.

Pouco depois de nove horas estava a comissão reunida e acampada na clareira debaixo de chuvas torrenciais, que se prolongaram até ao dia seguinte, a todos contrariando, a todos causando mal-estar e aborrecimentos. Aí também acampou a brigada de artilharia, o 16° e o 25° Batalhões de Infantaria, tendo-se conservado em proteção ao 32 o 27° que dormiu na picada. Foi magnífico, esplêndido mesmo, o espetáculo que a todos vivamente impressionou, vendo a artilharia com seus metais faiscantes e polidos, altiva de sua força soberana, atravessar garbosa e imponente, como rainha do mundo, por entre os fantásticos clarões de grandes fogos, acesos no deserto, como que pelo gênio da liberdade, para mostrar-lhe o caminho do dever, da honra e da glória."

Durante este tempo chegava a Juetê, onde pernoitou, o general Oscar, com o Estado-maior e o piquete de cavalaria. Ao passo que o general Barbosa, com a lª e 3ª Brigadas, endireitava para a fazenda do Rosário, 4.700 metros na frente.

Ali chegou na antemanhã seguinte o comandante geral; e mais tarde o resto da divisão, tendo-se tornado. ainda, necessário taludar as ribanceiras do rio Rosário para que o atravessasse a artilharia.

Um guia temeroso: Pajeú

O inimigo apareceu outra vez. Mas célere, fugitivo. Algum piquete que bombeava a tropa. Dirigia-o Pajeú. O quadrilheiro famoso visara, à primeira vista, um reconhecimento. Mas, de fato, como o denunciaram ulteriores sucessos, trazia objetivo mais inteligente: renovar o delírio das cargas e um marche-marche doido, que tanto haviam prejudicado a expedição anterior. Aferrou a tropa num tiroteio rápido, de flanco, fugitivo, acompanhando-a velozmente por dentro das caatingas. Desapareceu. Surgiu, logo depois, adiante. Caiu num arremesso vivo e fugaz sobre a vanguarda, feita neste dia pelo 9° de Infantaria. Passou, num relance, acompanhado de poucos atiradores, por diante, na estrada. Não foi possível distingui-los bem. Trocadas algumas balas, desapareceram. Ficou aprisionado e ferido um curiboca de doze ou quatorze anos, que nada revelou no interrogatório a que o sujeitaram.

No Rosário

A tropa acampou, sem outros sucessos, naquele sítio.

Reuniram-se os combatentes, exceto a 3ª Brigada que se avantajara até às Baixas, seis quilômetros na frente.

O comandante-em-chefe enviou, ao general Savaget, um emissário reiterando o compromisso anterior de se encontrarem, a 27, nas cercanias de Canudos.

Decamparam a 26, seguindo para o rancho do Vigário dezoito quilômetros mais longe, após pequena alta nas Baixas.

Estavam a cerca de oitenta quilômetros de Monte Santo. Em plena zona perigosa. A breve troca de balas da véspera pressupunha eventualidades de combates. Talvez, esclarecidos pelo reconhecimento feito, os jagunços se dispusessem a refregas mais sérias. Denunciava-os, como sempre, de algum modo, a fisionomia da terra, a conformação do terreno que dali por diante se acidenta erriçado de cômoros escalvados, até às Baixas, onde se alcantila a serra do Rosário, de flancos duros e vegetação rara.

As tropas iam escalar pelo sul a antemural que circunscreve Canudos. Progrediam cautelosas na rota. Não ressoaram mais as cornetas. Formados cedo, os batalhões marcharam até ao sopé da serrania. Galgaram-na. Derivaram, depois, na descida pelo boqueirão que a separa do rancho do Vigário.

Toda a coluna se subdividiu ainda, largamente fracionada: enquanto a vanguarda atingia, ao entardecer, o pouso, a artilharia ligeira, que abandonara com os engenheiros o ronceiro 32, vinha pelos primeiros recostos da vertente e aquele ascendia vagarosamente, do outro lado, à feição dos trabalhos de sapa que lhe estradavam as ladeiras. A noite, e com a noite uma chuva torrencial batida de ventanias violentas, desceu sobre os expedicionários que, em tais condições, seriam facilmente desbaratados pelas guerrilhas dos adversários, velhos conhecedores do terreno. Não o fizeram. Tinham mais bem disposta outra posição, como veremos. Deixaram também em paz o comboio que seguia, perdido à retaguarda, pela estrada de Juetê. Haviam afrouxado os animais de tiro; e toda a carga de 53 carroças e sete grandes carros de bois passara, subdividida, para as costas dos rijos sertanejos do 5° Batalhão da Polícia.

Passou, entretanto, em paz, a noite. No dia subseqüente, 27, emprazado para o encontro temeroso das duas colunas — apisoando ovantes os escombros do arraial investido — pôs-se tudo em movimento para a última jornada. E na alacridade singular sulcada de impaciências, de apreensões, e de entusiasmo vibrante, que antecede a vinda da batalha, ninguém cogitou nos companheiros remorados.

As brigadas abalaram, deixando de todo esquecido, ao longe, o comboio desguarnecido por completo, porque os seus soldados, já arcando sob grandes fardos, já auxiliando os raros muares que ainda suportavam as cargas, estavam nas mais impróprias condições para o mais ligeiro recontro.

Seguiram as brigadas: na frente a do coronel Gouveia com duas bocas de fogo; no centro a do coronel Olímpio da Silveira e a cavalaria; e depois, sucessivamente, as dos coronéis Thompson Flores e Medeiros. Atravessaram sobre dois pontilhões ligeiros o riacho do Angico. Estiraram-se vagarosamente, estrada em fora, numa linha de dez quilômetros.

Rompia a marcha o 25° Batalhão, ladeado de dois pelotões de flanqueadores, inúteis, mal rompendo a golpes de facão as galhadas.

Passagem nas Pitombas

De sorte que os jagunços os assaltaram, de surpresa, antes da chegada, ao meio-dia, no Angico. Foi mais sério o ataque, ainda que não valesse o nome de combate, que mais tarde lhe deram. Pajeú congregara os piquetes, que se sucediam daquele ponto até Canudos, e viera, de soslaio, sobre a força. Esta, sobre uma rampa escampada, ficou em alvo ante os tiros por elevação dos sertanejos imperfeitamente distinguidos na orla do matagal, embaixo; mas replicou com firmeza, perdendo apenas dois soldados, um morto e outro ferido. E continuou avançando em ordem, a passo ordinário, até ao sítio memorável de Pitombas, onde houvera o primeiro encontro de Moreira César com os fanáticos.

O lugar era lúgubre.

Recordações cruéis

Despontavam em toda a banda recordações cruéis; molambos já incolores, de fardas, oscilando à ponta dos esgalhos secos; velhos selins, pedaços de mantas e trapos de capotes esparsos pelo chão, de envolta com fragmentos de ossadas. À margem esquerda do caminho, erguido num tronco — feito um cabide em que estivesse dependurado um fardamento velho — o arcabouço do coronel Tamarindo, decapitado, braços pendidos, mãos esqueléticas calçando luvas pretas...

Jaziam-lhe aos pés o crânio e as botas.

E do correr da borda do caminho ao mais profundo das macegas, outros companheiros de infortúnio: esqueletos vestidos de fardas poentas e rotas, estirados no chão, de supino, num alinhamento de formatura trágica; ou desequilibradamente arrimados aos arbustos flexíveis, que, oscilando à feição do vento, lhes davam singulares movimentos de espectros — delatavam demoníaca encenação adrede engenhada pelos jagunços. Nada Ihes haviam tirado, excluídas as munições e as armas. Uma praça do 25° encontrou, no lenço envolto na tíbia descarnada de um deles, um maço de notas somando quatro contos de réis — que o adversário desdenhara, como a outras coisas de valor para ele despiciendas.

Os combatentes, assombrados, mal atentaram naquele cenário; porque o inimigo continuava aferroando-os, de esguelha. Repelido no recontro anterior, depois que o contornara pela direita uma companhia do 25° dirigida pelo capitão Trogílio de Oliveira, recuava, atacando.

O 25° e logo após o 27°, do major Henrique Severino da Silva, prosseguiram repelindo-o, até ao Angico.

Era meio-dia. A batalha parecia iminente. Em vários pontos, partindo dos flancos e da frente, estalavam tiros destacados. O comandante geral tomou as disposições mais convenientes para repelir o adversário que tudo denotava ir aparecer, rodeando-o. Um piquete de cavalaria dirigido pelo alferes Marques da Rocha, de seu Estado-maior, enviado a bater o matagal, à esquerda, revolveu-o, entretanto, inutilmente. A avançada prosseguiu.

Duas horas depois, ao transpor o general o teso de uma colina o ataque recrudesceu, de súbito. Fizeram-se alguns disparos de Krupp. Um sargento de cavalaria e algumas praças arrojaram-se temerariamente na caatinga. Varrem-na. A marcha continuou. Na frente o 25° vanguardeado por uma companhia de exploradores, e sucessivamente seguidos do 27° e o 16°, replicava aos tiroteios escassos e acelerava a investida.

Aproximava-se a noite. A vanguarda arremeteu com as últimas ladeiras vivas do caminho, nas Umburanas. Subiu-as ofegante, sem vacilar na marcha. Repeliu mais uma vez o ataque sério, pelo flanco.

E vingou a montanha.

No último passo da ascensão se lhe antolhou um plano levemente inclinado, entre duas largas ondulações, fechado adiante por alguns cerros desnudos.

Era o alto da Favela.

O alto da Favela

Naquele ponto este morro lendário é um vale. Subindo-se tem-se a impressão imprevista de se chegar numa baixada.

Parece que se desceu. Toda a fadiga da ascensão difícil se volve em penoso desapontamento ao viajor exausto. Constringe-se o olhar repelido por toda a sorte de acidentes. Ao contrário de uma linha de cumeadas, depara-se, no prolongamento do caminho do Rosário, um talvegue, um sulco extenso, espécie de calha desmedida trancada, transcorridos trezentos metros, pela barragem de um cerro.

Atingindo este, vêem-se-lhe aos lados, esbotenando-lhes os flancos e corroendo-os, fundos rasgões de enxurros que drainam a montanha. Por um deles, o da direita, se enfia, entalando-se em passagem estreita de rampas vivas e altas, quase verticais, lembrando restos de antigos túneis, aquele caminho, descendo, em desnivelamentos fortes. À esquerda outra depressão, terminando na encosta suave de um morro, o do Mário, se dilata na extensão maior de norte a sul, fechando-se, naquele primeiro rumo, ante outro cerro, que oculta o povoado e tomba, de chofre, pelo outro, em boqueirão profundo até ao leito do Umburanas. À frente, em nível inferior, a fazenda Velha. O pequeno Serrote dos Pelados cai logo, em seguida, em declive, até o Vaza-Barris, embaixo. E para todos os quadrantes — para leste, buscando o vale do Macambira, aquém das cumeadas do Cocorobó e a estrada de Jeremoabo que o atravessa; para o norte, derivando para a vasta planície ondeada; para o ocidente, procurando os leitos dos pequenos rios, o Umburanas e o Mucuim perto do extremo da estrada do Cambaio; para todos os lados, o terreno descamba com o mesmo facies que lhe imprimem sucessivos cômoros empolando-se numa confusão de topos e talhados. Tem-se a imagem real de uma montanha que desmorona, avergoada pelas tormentas, escancelando-se em gargantas, que as chuvas torrenciais de ano a ano reprofundam, sem o abrigo de vegetação que lhe amorteça a crestadura dos estios e as erosões das torrentes.

Porque o morro da Favela, como os demais daquele trato dos sertões, não tem nem mesmo o revestimento bárbaro da caatinga. E desnudo e áspero. Raros arbúsculos, esmirrados e sem folhas, raríssimos cereus ou bromélias esparsas, despontam-lhe no cimo sobre o chão duro, entre as junturas das placas xistosas justapostas em planos estratigráficos, nitidamente visíveis, expondo, sem o disfarce da mais tênue camada superficial, a estrutura interior do solo. Entretanto, embora desabrigado, quem o alcança pelo sul não vê logo o arraial, ao norte. Tem que descer, como vimos, em suave declive, a larga plicatura em que se arqueia, em diedro, a montanha, numa selada entre lombas paralelas.

Fuzilaria

Por ali enveredou, ao anoitecer, a testa da coluna e uma bateria de Krupp, seguidas do resto da 2ª Brigada e da 3ª, ficando a 1ª e o grosso da tropa retardados à retaguarda. Mas deram poucos passos mais. O tiroteio frouxo, que até então acompanhara os expedicionários, progredira num crescendo contínuo, à medida que se realizava a ascensão, transmudando-se ao cabo, no alto, em fuzilaria furiosa.

E desencadeou-se uma refrega original e cruenta.

Não se via o inimigo — encafurnado em todas as socavas, metido dentro das trincheiras-abrigos, que minavam as encostas laterais, e encoberto nas primeiras sombras da noite que descia.

As duas companhias do 25° Batalhão suportaram valentemente o choque. Desenvolvendo-se em atiradores avançaram, disparando, ao acaso, as armas — enquanto as duas brigadas, que as precediam, se abriram para que passasse a bateria. Esta, jogada violentamente para a frente, arrastada, mais a pulso que pelos muares exaustos e espantados, passou entre elas, em acelerado, ruidosamente. Subiu o cômoro fronteiro. Alinhou-se em batalha, no alto. Desenrolou-se no ar a bandeira nacional. Uma salva de 21 tiros de granadas atroou sobre Canudos...

O general Artur Oscar, a cavalo junto aos canhões, observou pela primeira vez, esbatido no clarão do luar deslumbrante, a misteriosa cidade sertaneja; e teve o mais fugaz dos triunfos na eminência varejada em que se expusera temerariamente.

Porque a situação era desesperadora. A sua tropa, batida por todos os flancos, envolta pelo inimigo a cavaleiro, comprimia-se numa flexura estreita que lhe impedia as manobras.

Se estivesse toda reunida era possível uma solução: prosseguir logo, vencendo a perigosa travessia, e juntar-se ao general Savaget que, depois de uma marcha entrecortada de combates, fizera alto três quilômetros adiante. Não havia, porém, chegado a 1ª Brigada, que ficara protegendo a bateria de tiro rápido e o 32; e mais moroso ainda, o comboio ficara no Angico, distanciado de duas léguas.

Crítica

Aquele plano de campanha dera o único resultado que podia dar. A expedição homogênea que, pelo seu dispositivo inicial, não podia fracionar-se, porque vinha adstrita a uma direção única e abastecida por um comboio único, dividira-se precisamente ao chegar ao objetivo da luta. De sorte que a arremetida doida rematada por uma salva real, de balas, sobre Canudos, era a mais contraproducente das vitórias. O chefe expedicionário definiu-a depois como um combate de êxito brilhante, mercê do qual o inimigo fugira, abandonando-lhe a posição expugnada. Entretanto todos os sucessos ulteriores revelaram a ânsia irreprimível da tropa por abandoná-la e o empenho persistente, dos jagunços, em impedir que ela dali saísse.

Trincheiras dos jagunços

Aquilo era uma armadilha singularmente caprichosa. Quem percorresse mais tarde as encostas da Favela avaliava-a. Estavam minadas. A cada passo uma cava circular e rasa, protegida de tosco espaldão de pedras, demarcava uma trincheira. Eram inúmeras; e volvendo todas para a estrada os planos de fogo quase à flor da terra, indicavam-se adrede dispostas para um cruzamento sobre aquela.

Explicavam-se, assim, os ataques ligeiros, feitos em caminho e a insistência, a partir do Angico, do inofensivo tiroteio em que os sertanejos, salteando e correndo, tinham evidente intuito de atrair a expedição segundo um rumo certo, impedindo-lhe a escolta de qualquer atalho entre tantos que dali por diante levam ao arraial.

Triunfara-lhes o ardil. Os expedicionários, sob o estímulo da ânsia perseguidora contra o antagonista disperso na frente, em fuga, haviam imprudentemente enveredado, sem uma exploração preparatória, pela paragem desconhecida, acompanhando, sem o saberem, um guia ardiloso e terrível, com que contavam — Pajeú.

E tombaram na tocaia com aquele aprumo de triunfadores. Mas a breve trecho o perderam, num tumultuar de fileiras retorcidas, quando, em réplica ao bombardeio que tempesteava a um lado, correu vertiginoso, de extremo e de alto a baixo, nas encostas, incendiando-as, um relampaguear de descargas terríveis e fulminantes, rompendo de centenares de trincheiras, explodindo debaixo do chão como fogaças.

Continua a fuzilaria

Era um fuzilamento em massa...

Os batalhões surpreendidos fizeram-se multidão atônita, assombrada e inquieta: centenares de homens esbarrando-se desorientadamente, tropeçando nos companheiros que baqueavam, atordoados pelos estampidos, deslumbrados pelos clarões dos tiros, e tolhidos, sem poderem arriscar um passo na região ignota sobre que descera a noite.

A réplica, alvejando as encostas, era inútil. Os jagunços atiravam sem riscos, de cócaras ou deitados no fundos dos fossos, em cuja borda estendiam os canos das espingardas; excluindo o alvitre de os desalojar a cargas de baionetas, lançando-as desesperadamente contra os morros, ou de prosseguirem, aventurando-se a piores assaltos e abandonando a retaguarda, restava aos combatentes o de permanecerem a pé firme na posição perigosa aguardando o amanhecer.

Acampamento na Favela

Esta solução única foi favorecida pelo adversário. O ataque ao fim de uma hora amorteceu-se e afinal cessou inesperadamente. As brigadas acamparam na formatura da batalha. A 2ª desenvolveu-se em linhas avançadas, do centro para a direita, tendo à retaguarda a 1ª; a artilharia alinhou-se próxima, sobre o cerro fronteiro, extremada à direita pela bateria de tiro rápido tendo no centro o Withworth 32, que se confiara à guarda do 30°, do tenente-coronel Tupi Caldas. O general, que comandara este batalhão quando coronel, pô-lo em pessoa naquele posto perigoso:

"À honra do 30° entrego a artilharia e fico tranqüilo."

O resto do 5° Regimento, do major Barbedo, emparcou, desenvolvendo-se para a esquerda, tendo próxima a ala de cavalaria do major Carlos Alencar. Perto da depressão, junto ao Alto do Mário, ponto fraco da posição, a que ulteriores sucessos dariam o nome de vale da Morte, se adensaram os batalhões do coronel Flores. Numa sanga menos enfiada pelos fogos se improvisou um hospital de sangue. Para lá se arrastaram 55 feridos, que com vinte mortos por ali esparsos, porque não havia como os remover, alteavam a 75 o número de baixas do dia, em pouco mais de uma hora de combate.

Estendeu-se em torno um cordão de sentinelas; e a tropa, comandantes e praças deitados pelo chão na mais niveladora promiscuidade — repousou em paz.

A inopinada quietude do inimigo dera-lhes a ilusão da vitória. Saudaram-na antecipadamente as bandas de música da 3ª Brigada, esgotando até desoras um grande repertório de dobrados; e um luar admirável alteou-se sobre os batalhões adormecidos...

Mas era uma placidez enganadora. Os sertanejos haviam conseguido o intento que Ihes ditara a astúcia. Tendo arrastado até lá a expedição, restava-lhes, de todo desprotegido, à retaguarda, o comboio de munições de guerra e de boca. No dia imediato assaltariam simultaneamente por dois pontos, na Favela e no Angico — e, ainda quando vitoriosas no primeiro as forças arremetessem com o arraial, alcançá-lo-iam desmuniciadas, inermes.

Canudos

Esta circunstância não pesou, porém, no ânimo dos que se haviam abeirado tão precipitadamente do centro das operações.

Ao clarear da manhã de 28, reunidos na posição dominante da artilharia, oficiais e praças, contemplavam, afinal a "caverna dos bandidos", segundo o dizer pinturesco das ordens do dia do comandante-em-chefe.

Canudos crescera ainda, porém tendo apenas mais amplo o aspecto primitivo: a mesma casaria vermelha, de tetos de argila, alargando-se cada vez mais esparsa pelo alto das colinas em torno do núcleo compacto abraçado pela volta viva do rio. Circunvalada nos quadrantes de sudoeste e noroeste por aquele, abrangida ao norte e a leste pelas linhas ondeantes dos cerros, emergia, a pouco e pouco, na claridade daquela hora matinal com a feição perfeita de uma cidadela de expugnação dificílima. Percebia-se que um corpo de exército ao cair no dédalo de sangas, que lhe enrugam em roda o terreno, marcharia como entre galerias estreitas de uma praça de armas colossal. Não havia lobrigar-se um ponto francamente acessível.

A estrada de Jeremoabo entrando, duzentos metros antes, pelo leito seco do Vaza-Barris, metia-se entre duas trincheiras, que lhe orlavam uma e outra margem, mascaradas de sebes contínuas de gravatás bravios. A vereda "sagrada" de Maçacará — por onde seguia o Conselheiro nas suas peregrinações para o sul — tombando pelos morros, entre os quais se encaixa o Umburanas, era igualmente impraticável. As do Uauá e Várzea da Ema, ao norte, estavam livres, mas exigiam para atingirem-se longa e perigosa marcha contornante.

A igreja nova, quase pronta, alevantava as duas altas torres, assoberbando a casaria humilde e completava a defesa. Enfiava pela frente todos os caminhos, batia o alto de todos os morros, batia o fundo de todos os vales. Não tinha ângulo morto a espingarda do atirador alcandorado em suas cimalhas espessas, em que só faltavam planos de fogo de canhoneiras, ou recortes de ameias.

O terreno que na frente da Favela, ao norte, deriva até ao rio, empolado e revolto, abre-se, como vimos, para a esquerda na larga depressão, dando acesso ao morro do Mário e à linha de cumeadas em declive que se dirige para fazenda Velha.

Ali estava a 3ª Brigada, desde cedo, formada em colunas.

Mais para a direita, dominante, a artilharia. Sucessivamente a 2ª e a 1ª Brigadas. A tropa amanhecera na formatura da batalha. Atendendo, porém, às vantagens táticas da posição, esta devia principiar e em grande parte sustentar-se com a artilharia, cujo efeito, no bater a tiros mergulhantes o arraial distante 1.200 metros, se acreditou capaz de acarretar em pouco tempo a mais completa vitória.

As esperanças concentraram-se, por isto, no primeiro momento, nas baterias do coronel Olímpio da Silveira.

Eram tão grandes que pouco antes de ser feito o primeiro disparo, às seis horas da manhã, numerosos combatentes de outras armas, aglomerados em volta dos canhões, tinham o papel neutral de espectadores, ansiando por um quadro terrivelmente dramático: Canudos ardendo sob a túnica molesta do canhoneio! Uma população fulminada dentro de 5 mil casebres em ruínas!

Era mais uma ilusão a ser duramente desfeita...

O primeiro tiro partiu, disparando o Krupp da extrema direita. E determinou, de fato, um empolgante lance teatral.

Os jagunços haviam dormido ao lado da tropa, por todas aquelas encostas riçadas de algares e, sem aparecerem, circularam-na para logo de descargas.

Chuva de balas

Mais tarde, relatando o feito, o chefe expedicionário se confessou impotente para descrever a imensa "chuva de balas que desciam dos morros e subiam das planícies num sibilo horrível de notas", que atordoavam. Por sua vez o comandante da 1ª coluna afirmou em ordem do dia, que durante cinco anos, na guerra do Paraguai, jamais presenciara coisa semelhante.

Realmente, os sertanejos revelaram uma firmeza de tiro surpreendedora. As descargas, nutridas, rolantes e violentíssimas, deflagrando pelos cerros como se as ateasse um rastilho único, depois de abrangerem a tropa desabrigada, bateram, convergentes, sobre a artilharia. Dizimaram-na. Tombaram dezenas de soldados e a metade dos oficiais. Sobre o cerro, varrido em minutos, permaneceu, entretanto, firme, a guarnição rarefeita e no meio dela, atravessando entre as baterias, impassível como se desse instrução num polígono de tiro, um velho de bravura serena e inamolgável — um valente tranqüilo, o coronel Olímpio da Silveira. Foi a salvação. Em tal emergência o abandono dos canhões seria o desbarato...

Confusão e desordem

Vibrara o alarma em todos os corpos. Instintivamente, sem direção fixa e sem ordem de comando, 3 mil espingardas dispararam a um tempo dirigidas contra os morros. Estes fatos passaram em minutos, e em minutos, na área comprimida em que se agitava, inútil, a expedição, viu-se a mais lastimável desordem.

Ninguém deliberava. Todos agiam. Ao acaso, estonteadamente, sem campo para o arremesso das cargas ou para a manobra mais simples, os pelotões englobados atiravam a esmo em pontarias altas, para não se trucidarem mutuamente, contra o inimigo sinistro que os rodeava, intangível, surgindo por toda a parte e por toda a parte invisível. Neste tumulto, a 3ª Brigada, no flanco esquerdo, disposta em colunas de batalhões e tendo na vanguarda o 7º, começou a avançar, descendo, na direção da fazenda Velha, de onde rompiam mais fortes as descargas. Aquele batalhão, que quatro meses antes subira por aquele mesmo caminho em debandada, fugindo e atirando-lhe à margem o cadáver do coronel Moreira César, ia penitenciar-se do desaire. Completando esta circunstância especialíssima, acompanhava-o, logo depois, um sócio de reveses, o 9°. O major Cunha Matos dirigia a vanguarda. Os vencidos da expedição anterior deparavam ensejo raro para a desafronta e tinham um chefe que, sob muitos aspectos, se equiparava ao comandante infeliz que ali tombara — o coronel Thompson Flores. Era um lutador de primeira ordem. Embora lhe faltassem atributos essenciais de comando e, principalmente, esta serenidade de ânimo, que permite a concepção fria das manobras dentro do afogueamento de um combate — sobravam-lhe coragem a toda a prova e um quase desprezo pelo antagonista por mais temeroso e forte, que o tornavam incomparável na ação. Demonstrou-o o ataque temerário que realizou. Fê-lo indisciplinadamente autônomo, sem determinação superior e com o intento firme de arrebatar, numa carga única, até à praça das igrejas, vitoriosos, os mesmos soldados que lá se tinham debandado, vencidos, quatro meses antes. A sua brigada investiu, batida em cheio pelos fogos diretos do inimigo entrincheirado; e, quase cem metros da posição primitiva, a vanguarda desenvolveu-se em atiradores. O coronel Flores que, a cavalo, lhe tomara a frente, descavalgou, então, a fim de pessoalmente ordenar a linha de fogo. Por um requinte dispensável, de bravura, não arrancara dos punhos os galões que o tornavam alvo predileto dos jagunços. Ao reatar-se, logo depois, a avançada, baqueou, ferido em pleno peito, morto.

Baixas

Substituiu-o o major Cunha Matos, que dignamente prosseguiu no movimento imprudentemente planeado, porque o 7° Batalhão, entre os demais corpos, era o único que não podia recuar naquele terreno. O seu comando foi, porém, brevíssimo. Desmontado logo por um projetil certeiro, passou-o ao major Carlos Frederico de Mesquita. Este por sua vez foi, adiante, atingido por uma bala, assumindo a direção da brigada um capitão, Pereira Pinto. Era assombroso: o 7° Batalhão teve em meia hora 114 praças fora de combate, e nove oficiais.

Reduzira-se de um terço. Dissolvia-se à bala. Idêntico destroço lavrava noutros pontos. Rapidamente, com um ritmo inflexível, de minuto em minuto, as graduações dos chefes caíam em escalas assustadoras. O 14° de Infantaria, ao abalar em reforço às linhas do flanco direito, perdera, transcorridos alguns metros, o comandante, major Pereira de Melo.

Substituiu-o o capitão Martiniano de Oliveira e, a breve trecho, foi retirado da linha, baleado. O capitão Sousa Campos, que lhe sucedeu, apenas dados alguns passos, caiu morto. O 14º prosseguiu comandado por um tenente.

A mortandade alastrava-se deste modo por todas as linhas e, como uma agravante, ao fim de duas horas de um combate feito sem a mínima combinação tática, viu-se que as munições se esgotavam. A artilharia , dizimada na eminência em que permanecera valentemente, dera o último tiro, calando o canhoneio. Perdera a metade dos oficiais , e entre estes o capitão fiscal do 5º Regimento, Nestor Vilar Barreto Coutinho.

Começaram a chegar ao quartel-general reclamos insistintes para que fossem municiados os batalhões.

Fez-se, então, seguir à retaguarda o capitão Costa e Silva, assistente do deputado do quartel-mestre-general , a fim de apressar a vinda do comboio. Resolução tardia. Dois ajudantes de ordens imediatamente enviados depois dele volveram de rédeas, as, percorrido um quilômetro. Não podiam romper as fuzilarias que trancavam a passagem. Cortara-se a retaguarda. E se parassem o tumulto, o estrépito de armas, o alarido confuso e estampidos insistentes, que estrugiam os ares em torno dos lutadores, no alto da Favela, eles perceberiam o tiroteio longínquo do 5° de Polícia a braços com os jagunços, a duas léguas de distância.

Uma divisão aprisionada

"Toda a primeira coluna estava aprisionada. Por mais estranho que se afigure o caso não havia aos triunfadores um meio de sair da posição que tinham conquistado", confessa-o o general-em-chefe, "Atacado o comboio e interdita a passagem de qualquer soldado, como demonstraram os casos precedentes, tive de mandar uma força de cavalaria ao general Cláudio do Amaral Savaget, na intenção de receber socorro de munições, o que ainda uma vez contrariou o meu pensamento porque o piquete não pôde atravessar a linha de fogo do inimigo que tiroteava no flanco direito." Deste modo, batida no flanco direito, de onde tornara repelido o piquete de cavalaria; batida à retaguarda, que dois auxiliares não conseguiram romper; batida no flanco esquerdo, onde se sacrificara gloriosamente e estacara a 3ª Brigada; e batida pela frente onde a artilharia, dizimada, perdera quase toda a oficialidade e emudecera, a expedição estava completamente suplantada pelo inimigo.

Restava-lhe um recurso sobremaneira problemático e arriscadíssimo: saltar fora daquele vale sinistro da Favela, que era como uma vala comum imensa, a ponta de baionetas e a golpes de espadas.

Fez-se, porém, uma última tentativa. Um emissário seguiu furtivamente, insinuando-se pelas caatingas, em busca da 2ª coluna, que estacionara menos de meia légua, ao norte...