Os Brazões d'Armas do Brasil Hollandez

OS

BRAZÕES D’ARMAS

DO

Brasil Hollandez


1638


O uso de sellos e brazões d’armas—cuja origem se perde no alvorecer da Idade Media — apezar de bastante generalisado em Portugal, só muito raramente passou aos seus vastos dominios americanos, ao contrario do que succedeu nas possessões hespanholas do Novo Mundo, onde, já nos primeiros tempos da conquista, as varias circumscripções territoriaes e os diversos nucleos de população receberam officialmente distinctivos heraldicos.

No Brasil, se exceptuarmos os conferidos as cidades da Bahia (1549) e do Rio de Janeiro (1565), vamos encontral-os pela primeira vez, numerosos e expressivos, durante a breve occupação da sua zona norte-oriental pelos Hollandezes.

Refere Barlaes — e, traduzindo-o mais ou menos fielmente, todos os historiadores subsequentes — terem sido instituidos em 1539 e os descreve nos seguintes periodos:

«Para cada capitania engenhou (em 1639) o conde Mauricio de Nassau o seu brazão), e comprehendendo-os todos em um só escudos, fez um que indicava os limites do Brasil Hollandez, para uso do Concelho Supremo (Fig. 1). Por cima deste brazão levantava-se o das Provincias Unidas da Hollanda, e na parte inferior occorria o symbolo da Companhia das Indias Occidentaes.

«Os mesmos brazões das quatro capitanias, contidos em um escudo semelhante, formaram o brazão do Concelho Politico (Fig. 11), tendo por cima a figura da virgem Astréa, segurando em uma das mãos a espada vingadora dos crimes e na outra a balança reguladora das transações commerciaes.

Fig. 1

A Camara de Pernambuco deu por brazão uma donzella mirando-se em um espelho, tomada de admiração pela propria belleza, e segurando em uma das mãos uma canna de assucar, para exprimir por este meio a bondade e uberdade do sólo, com o nome da cidade de Olinda escripto por baixo. (Fig. 2).

As outras Camaras de Pernambuco tiveram tambem os sous brazões proprios: Iguarassú (Fig. 6), Serinhãem (Fig. 7) Porto Calvo (Fig. 8) e Alagoas (Fig. 9).

Fig. 2

«A capitania de Itamaracá ostentava no seu brazão cachos de uvas, em allusão a não haver em parte alguma do Brasil lugar que, como a ilha de Itamarucá, as désse tão bellas quão succulentas (Fig. 3): a da Parahyba tinha pães de assucar, ou por que produzisse assucar muito bom e afamado, ou por que nesta capitania, depois que nos foi sugeita, a fabricação do assucar começasse a fazer-se em maior escala e o valor dos engenhos augmentasse (Fig. 4). A capitania chamada do Rio Grande tinha por brazão um rio, cuja margem via-se uma avestruz, are que se encontra em abundancia naquellas paragens.» (Fig. 5).[1]

Fig 3

Os brazões d’armas das Camaras de Pernambuco, não descriptos por Barlaeus, eram assim concebidos: Iguarassú, tres carangueijos, ou mais propriamente arratús, em roquete (Fig. 6); Serinhãem, um cavallo a passo, com certeza alludindo aos excellentes animaes de sella então criados naquella comarca (Fig. 7); Alagoas, tres tainhas em faixa (Fig. 9), e Porto Calvo tres outeiros representando a sua caracteristica orographica. (Fig. 8).[2]

Fig 4

Mas, naquellas descripções, como em tantos outros assumptos, o famoso panegyrista de Mauricio de Nassau foi pouco Verdadeiro.

Não só os alludidos emblemas são de data anterior á que lhes assigna-la, como tem significação symbolica um tanto diversa da que lhes attribuio.

Fig 5

Isto resulta do testemunho de um documento inedito de caracter official, e por isso digno de inteiro credito.

Do relatorio ou carta collectiva do Supremo Concelho do Brasil, no Recife, á Assembléa dos XIV, em Amsterdam, á 6 de Outubro de 1638, traduzimos a seguinte passagem relativa ao assumpto.

Fig. 6
Fig. 7

«Havendo as Camaras de Justiça solicitado que lhes fossem concedidas armas, com as quaes sellassem as suas actas e mais papeis, S. Exc. (o conde de Nassau) se dispoz a organisar algumas armas que, de certo modo, tivessem analogia com a situação de cada capitania e expressasem algum dos seus caracteristicos.

Assim deu S. Exc. primeiramente a cada uma das quatro capitanias as suas armas, e reuniu-as depois em um só escudo para constituirem as armas do Supremo Governo do Brasil (Fig. 10), tendo acima da corôa as armas dos Estados Geraes da Hollanda, com o emblema da Companhia das Indias Occidentaes[3] pendente das mesmas, circumdadas de uma grinalda de flôres de larangeiras.[4]

Fig. 8

Da mesma forma as armas do Collegio do Concelho Politico ou Concelho de Justiça (Fig. 11) foram constituidas por um escudo contendo as armas das quatro capitanias, tendo por timbre uma donzella empunhando a espada e a balança symbolicas da Justiça.

A capitania de Pernambuco tem uma donzella que admira a propria belleza em um espelho, symbolisando a formosura da terra e a situação em nome da sua capital Olinda, e tendo na mão direita uma canna de assucar (Fig 12).

As outras jurisdicções de Pernambuco, como Iguarassú (Fig. 16), Serinhaem (Fig. 17), Porto Calvo (Fig. 18) e Alagoas (Fig. 19) têm tambem as suas armas.

A capitania de Itamará tem uns cachos de uvas, porque esta ilha produz as melhores uvas do Brasil (Fig. 13).

Parahybu tem seis pães de assucar, porque ali se fabrica excellente assuacar, ou bem porque depois da conquista dos seus engenhos pelo nosso governo é que começou a prosperar (Fig. 14).

Fig. 9

«Rio Grande é symbolisado pelo respectivo rio, tendo á margem um avestruz, de que ha muitos ali (Fig. 15).

Vs. Exc. queiram examinar estas armas e se dignarem de mandar abri-las em prata, um pouco menores do que os desenhos que a esta acompanham; não convem mandar abri-los em ferro, aço ou cobre, porquanto com a ferrugem aqui logo ficariam estragados[5].

Foram provavelniente os alludidos desenhos que serviram de modelo ás primitivas gravuras, reproduzidas no presente artigo sob ns. 10–19, e que trazem estes dizeres ou legendas:

N. 10. — Sel (segel) der Opper Regeeringe van Brasil

(Sel (sêllo) do Supremo Governo do Brasil).

N. 11 – Grt. (groot) Sel (segel) van den Raed der Ivsticie in Brasil.

(Gr. (grande) Sel (sello) do Concelho de Justiça no Brasil.)

Fig. 10
 
N. 12. — Capitania van Pernambvco.
13. — I Tamaraca.
14. — Paraiba.
15. — Rio Grande.
16. — Camera Igarasv.
17. — Serinhaem.
18. — Porto do Calvo.
19. — Alagoas.

Estas antigas e rarissimas xylographias hollandezas, aqui reproduzidas em fac-simile, foram encontradas em meio de uma preciosa collecção de gravuras de medalhas pertencente aos manuscriptos do historiador Gerard Schaep, que tinha a intenção de dar á luz uma obra copiosa sobre sellos e medalhas, para a qual fizera gravar estas estampas.

Fig. 11

Sem duvida poucos exemplares d’ellas foram impressos e as chapas, de certo, inutilisadas, porquanto a obra jamais foi publicada; além da serie que, por nossa iniciativa, adquirio este Instituto, só temos noticia da que existe em poder do illustrado e operoso numismographo suisso sr. Julius Meili, de Zurich.

Os livreiros Frederik Muller & C., de Amsterdam, offerecendo á venda a primeira destas series, acrescentaram, a algumas das informações precedentes, terem sido estas xylographias abertas por Dirk de Bray[6], pintor e gravador de Haarlem, que floresceu na segunda metade do seculo XVII.

Fig 12

Entretanto, razões ponderosas nos obrigam a não admittir exta asserção.

Fig 13

Na Description des estampes qui forment l'oeuvre gravé de Dirk de Bray, organisado por De Vis Blokhuysen e publicada por A. Y. Lamme, em Rotterdam, no anno de 1870, não vêm mencionadas as gravuras em questão, e a mesma obra nos informa que o artista nasceu em 1640, o que exclúe inteiramente a possibilidade de dez annos mais tarde, haver sido o autor de tão primorosos lavores, aos quaes se assignala a data de 1650.

Fig 14
Fig 15

Pensamos ser muito mais plausivel attribuil-as ao buril de certo H. Breckenveld, gravador contemporaneo, cujos trabalhos, geralmente assignados com um simples B, têm porisso sido confundidos com os de Dirk de Bray.

Fig 16
Fig 17

Não é mais possivel determinar com exactidão quaes fossem as primitivas cores ou metaes dos brazões d’armas do Brasil Hollandez, porquanto em nenhuma das gravuras vêm os es maltes indicados por meio dos ponctuados ou fundos convencionaes: em alguns exemplares da edição princeps da obra de Barleus os escudos se acham coloridos á aquarella, mas, de modo, arbitrario e, por vezes, em flagrante contravenção das regras da theoria do brazão.

Fig 18
 
Fig 19

Estas concessões, escreveu Varnhagen[7] referindo-se aos escudos d’armas que vimos historiando, cujo alcance dão póde ser porventura apreciado pelo vulgo, tinham origem em pensamentos elevados, de representar tambem o paiz na arte heraldica, a qual se reduz a uma linguagem hieroglyphica e symbolica que falla ao coração e que por todos os homens civilisades é entendida, qualquer que seja a sua lingua.

Comtudo, logo após á restauração de 1664, estas insignias cabiram em completo olvido, e só modernamente as de Pernambuco, Itamaracá, Iguarassú e Serinhaem reapparece ram, em 1858, adornando as sedulas do Novo Banco de Pernambuco; em 1892, figurando a primeira nas estampilhas fiscaes do Estado, da primeira emissão, e até bem pouco tempo nos diplomas deste Instituto.

 

Alfredo de Carvalho

Notas editar

  1. «Qui singulis Præfecturis suum commentus insigne, ex omnibus uno scuto comprehensis unum fecit, quod supremo senatus ad usus esset, & terminorum Reipub. Brasiliensis index. supra hoc Fœderati Belgii insigne attollebatur, characterque societatis Occidentalis ima parte defluebat. Politico senatui insigne fecere eadem quatuor provinciarum insignia, pari scuto contenta, supra quod spectare erat Virginem Astræam, manu una gladium, altera lancem gerentem, illam scelerum vindicem, hanc mercantium regulam.

    Pernambucensi Curiæ datum insigne, Virgo, defixis in speculum oculis & velut in formæ suæ admirationem rapta, manu arundinem sacchariferam gestans quo schemate soli pulchritudo proventusque exprimebatur, adscripto civitatis Olindæ nomine. Fuere & aliis Pernambuci Curiis, nempe in Igarazu, Serinhæmo, Portu Calvo, Alagois, sua quoque propria insignia. Præfectura Tamaricensis botrum pro insigni ostentabat, quia æquè pulchros & succulentos nulla Brasiliæ pars, ac Tamarica insula, ferebat. Parayba sacchareorum panum formas pyramidales præferebat, quod optimi & laudatissimi sacchari nutricula esset, aut quod dedita nostratibus provinciâ, major illic sacchari & molarum cœperit esse labor & precium.

    Provincia Fluminis Grandis cognomine fluvio gaudebat, cujus ripam in imagine premebat Struthius, quarum avium maxima hic frequentia.» — Gasparis Barlæi rerum per octennium in Brasilia nuper gestarum, sub præfectura illustrissimi comitis I. Mauritii, Nassoviæ... historia. — Amstelodami, ex Typographico Ivannis Bave, 1647, in-fol, pag. 100
  2. As estampas acima reproduzidas, sob os ns.1-9, são fac-similes das de ns. 8, 11, 12, 15, 18, 27, 30 e 35 e do frontispicio gravado da primeira edição da obra de Barlæus, com exclosão apenas de motivos ornamentaes exteriores sem significação heraldica.
  3. O emblema da Companhia das Indias Occidentaes era uma nau navegando de velas enfunadas.
  4. .Allusão á casa de Orange (Orangien).
  5. Brieven en Papieren uit Brazilie: — Anno 1638. N. 21.
  6. American History & Geography. — Books and Mapps. — Amsterdam (s. d.), pag. 80, n. 831.
  7. Historia das Lutas com os Hollandeses no Brasil — Lisbôa, 1872, pag. 178.
 

Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.


 
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.