III

A zona torrida perante as sciencias da antiguidade e da edade média


Accentuámos bem que tres elementos havia que se oppunham ás expedições que os Portuguezes audaciosamente emprehenderam: a sciencia, a fé e a lenda. Foi a primeira a que se oppoz sempre a que os ousados navegadores da antiguidade lustrassem o caminho que os Portuguezes depois percorreram. Não eram de certo mais terriveis os mares africanos do que os mares da Europa septentrional, e os marinheiros phenicios, que affrontaram a bahia de Biscaya e o canal da Mancha e o mar do Norte até á Islandia, não podiam facilmente assustar-se com os mares muito mais manejaveis da costa africana. Mas a idéa da navegação para o sul fazia recuar os mais audaciosos. Era ahi que o sol estendia o seu terrivel dominio, era ahi que os seus raios queimavam a terra e o mar, e tornavam impossivel a passagem do homem. Á medida que esses calores excepcionaes iam sendo mais proximos, o seu effeito fazia-se sentir na vegetação e na fauna, e na propria humanidade. Então a natureza, violentada por assim dizer, produzia os mais extraordinarios monstros. Por mais de uma vez tentaram os Phenicios e os Carthaginezes demandar essas regiões do sul, mas a mais insignificante estranheza os fazia recuar. De Hannon se conta que percorreu quasi a Africa toda, e no seu periplo se relata essa viagem maravilhosa. Logo mostraremos como elle de certo não passou para além da costa de Marrocos. Gabava-se a sua intrepidez, porque voltára narrando que vira horrorosos monstros, cynocephalos, quer dizer, homens com cabeça de cão, e gorgonas ou mulheres com o corpo absolutamente coberto de pellos. Os escriptores modernos, que teem procurado benevolamente interpretar estas descripções phantasticas, dizem que os cynocephalos eram simplesmente macacos e as gorgonas simplesmente gorillas. Na hypothese mais favoravel para elle, o que isso prova é que, apenas viu na costa de Africa duas especies de macacos, julgou-se chegado ao paiz dos monstros e confirmou todas as mentiras que ácerca das vizinhanças da zona torrida estavam estabelecidas, e não chegou portanto á zona torrida. Mas não é bem mais natural ainda que Hannon, um carthaginez, um africano, não ignorasse a existencia do macaco, e portanto não podesse confundir facilmente o genero simiesco com uma variedade monstruosa do homem?

Essas noções rudimentares de cosmographia, que existiam no espirito dos antigos, chegaram ao seu apogeu com a escola de Alexandria. Sabios notabilissimos imprimiram grandes progressos á sciencia, e principalmente á astronomia. O nome de Ptolomeu e o nome de Hipparcho bastam para fazer a gloria de uma escola, de um paiz e de um seculo. A conclusão a que chegaram era falsa, mas quantas descobertas importantes lhes serviram para assentar os primeiros alicerces de uma sciencia a que pozeram então uma cupula errada, por lhes terem faltado informações e elementos que só a audacia dos navegadores lhes podia levar! Que maravilhosos instrumentos de estudo não encontraram elles! Que calculos levaram a cabo que os sabios do seculo XVI, ao poderem juntar-lhes novos elementos, aproveitaram para a transformação da sciencia! Sem Ptolomeu como se comprehenderia Copernico? Sem Hipparcho o que poderia fazer Tycho-Brahé? N’esta conquista da verdade, os antigos tomaram as obras avançadas e julgaram estar senhores da cidadella; mas, só depois de occupadas essas obras, só depois dos maravilhosos esforços dos navegadores peninsulares, é que se podia descortinar e assaltar a cidadella... E quem sabe se será esta definitivamente a verdadeira!

Mas o que é absolutamente indispensavel saber, para que se possa avaliar a transformação produzida no seculo XV pelos descobrimentos portuguezes, é quaes eram os principios estabelecidos como certos e indubitaveis com relação á terra por esses sabios cuja auctoridade era incontestavel, cujas doutrinas se ensinavam ás creanças, como hoje se ensinam as novas theorias, e que representavam portanto a verdade absoluta d’esse tempo. Alguns pontos havia que encontravam contradicção, como era o da redondeza da terra. N’outros, porém, não havia a mais leve divergencia, como em todos os que se ligavam com o movimento dos corpos celestes, com a marcha do sol em volta da terra para produzir o dia e a noite, com a marcha do sol pelo zodiaco produzindo a differença das estações. Tantas maravilhas conseguira já a astronomia que as doutrinas que ella promulgava não podiam soffrer contestação. Se ella já conseguira adivinhar os eclipses, que maior prova podia dar de que encontrára a chave do mechanismo celeste?

Essas doutrinas de Ptolomeu passaram para a edade média, que teve sempre pela sciencia antiga um louco fanatismo. Encontramol-as ás vezes adulteradas, misturadas com manifestações de ignorancia, com superstições e crendices, mas naturalmente arraigadas nos espiritos, e exaltadas com enthusiasmo pelos sabios da primeira Renascença, pelos que arrancaram das trevas a Europa barbara, e que levantaram como um facho luminoso a doutrina já completa e bem comprehendida do grande geographo antigo.

Vamos encontrar n’um dos livros d’esses sabios medievaes, n’uma d’essas Imago mundi ou Thesaurus, que eram as encyclopedias do tempo, a condensação de toda a sciencia, a doutrina antiga resumida, explicada, mas tambem modificada. Queremos falar nos Dialogos de Pedro Affonso. Os dois que dialogam são Pedro e Moysés. Aquelle é o mestre, este o discipulo.

«Diz Moysés:

— Não ha pois da terra senão uma só parte habitavel. Que parte?

Pedro — Desde o meio da terra até á parte septentrional.

Moysés — Demonstra-me isso n’uma figura geometrica, porque n’essa materia cada nação tem tido, segundo os auctores, idéas differentes. Divide-se effectivamente a terra em cinco zonas: uma no meio, queimada pelo ardor do sol, e por conseguinte inhabitavel; duas nas extremidades, muito afastadas do sol, e egualmente inhabitaveis, por causa do rigor do frio; e duas médias, temperadas pelo calor da primeira e pelo frio das outras duas, e unicas habitaveis[1].

Pedro — Esse systema está em contradicção com o testemunho dos nossos olhos. Vemos effectivamente Aren situado no centro da terra; no seu zenith principiam o Aries e a Balança; o ar é alli tão suave que a temperatura das quatro estações é quasi sempre a mesma. Nascem alli plantas aromaticas de côr brilhante e de sabor delicioso; os homens não são nem descarnados, nem obesos, mas de uma compleição bem proporcionada. O clima que exerce esta salutar influencia no corpo não actúa menos efficazmente sobre o espirito que brilha pela sensatez e por uma moderação cheia de acerto. Como se pode pois dizer que um logar que o sol percorre em linha recta em toda a sua extensão é inhabitavel? Não: todo o espaço de terra comprehendido entre esse logar e o segmento septentrional é habitavel sem interrupção, e os antigos dividiram-n’o em sete partes chamadas climas, em conformidade com o numero dos sete planetas. O primeiro clima está na linha do meio; ahi é que Aren foi fundado. O setimo occupa a extremidade do mundo septentrional. Nenhuma d’essas partes é inhabitavel, se exceptuarmos os sitios em que grandes massas de areia quasi sem agua ou então montanhas pedregosas se recusam ao trabalho da charrua.

Moysés — Resta-me pedir-te que me demonstres como succede que esta parte da terra que fica para além de Aren para o sul não é habitada como a que está para áquem para o norte, de modo que Aren se ache no centro da região habitavel, ou então tambem porque não é a parte meridional que é habitavel, emquanto a parte septentrional seria inhabitavel, ao inverso do que succede.

Pedro — Porque o circulo do sol é excentrico relativamente ao circulo da terra, e porque essa excentricidade atira a maior parte da circumferencia para uma distancia maior do septentrião. Segue-se d’ahi que, logo que o sol passa para os signos do hemispherio meridional, quer dizer para a parte da circumferencia comprehendida entre a Balança e Aries, approxima-se da terra, e, queimando os seus raios o solo a esta curta distancia, tornam-n’a esteril e por conseguinte inhabitavel. Só a partir do primeiro clima para o norte é que o espaço que comprehende os sete climas é habitavel. Mas tudo o que vem depois a partir do setimo clima é privado de todo o calor, por causa do afastamento do sol, que vae percorrer os seis signos meridionaes; d’ahi o excesso das nuvens, dos nevoeiros e das geadas; e emfim a ausencia de toda a creatura animada n’essa parte da superficie terrestre[2]».

Não era esta, porém, a doutrina de Ptolomeu. Esta era a doutrina que procurava conciliar a theoria scientifica com as palavras da Egreja. A doutrina de Ptolomeu, a doutrina em geral de todos os sabios da antiguidade e da edade média, era que a zona torrida estava collocada debaixo do zodiaco, que, proxima do sol por conseguinte, era por elle abrazada, mas que para além d’essa região havia outra temperada como a nossa, assim como outra tambem glacial como a zona arctica. Essa foi sempre a doutrina predominante, embora contra ella protestasse a orthodoxia; mas qualquer das duas sustentava como facto incontroverso que a zona torrida era absolutamente inhabitavel, quer fosse, como queria Ptolomeu, que o sol, descrevendo um circulo perfeito em torno da terra durante as vinte e quatro horas, e descrevendo-o ao longo do zodiaco perfeitamente parallelo á zona torrida, sobre ella fizesse caïr perpendicularmente os seus raios e a queimasse e destruisse, ou, como pretendia Pedro Affonso, não descrevendo o sol esse circulo perfeito que Ptolomeu imaginára, mas descrevendo um circulo excentrico ao da terra, d’ahi resultasse que, ao passar pelos signos meridionaes do zodiaco, estivesse mais proximo da terra, e fosse o hemispherio meridional o que os seus raios incendiavam.

Devemos notar que esta ultima hypothese era a que se approximava mais da ellipticidade da orbita da terra hoje demonstrada. Se não se suppunha ainda que o sol descrevesse uma ellipse em torno da terra como hoje se sabe que a terra descreve uma ellipse em torno do sol, já se principiava a querer applicar ao sol a theoria dos epicyclos e dos excentricos, com que a astronomia antiga procurava conciliar com a theoria geral do Universo as contradicções que resultavam do movimento apparente de muitos planetas. A theoria de Pedro Affonso conduzia-o á doutrina moderna da periphelia e da aphelia. Adivinhava que ha um periodo em que o sol está mais afastado da terra do que n’outros, e dava-se a coincidencia de que, dando-se a periphelia, quer dizer o periodo de maior approximação do sol, em janeiro, quando é verão no hemispherio austral, d’ahi resulta que effectivamente os verões austraes são mais quentes do que os nossos, e Pedro Affonso adivinhou assim uma verdade hoje perfeitamente demonstrada. Acontece porém que, sendo a terra que se move e não o sol, quando chega a aphelia, quer dizer o periodo de maior afastamento do sol, em julho, sendo então verão entre nós e inverno no hemispherio austral, tambem succede que são os seus invernos mais regelados. Mas, se a terra se conservasse immovel, como até Copernico se suppoz, passando o sol sempre á mesma distancia do mesmo ponto da terra, seria sempre effectivamente o hemispherio austral o que mais lhe sentiria os implacaveis ardores.

Comtudo era incontestavelmente o systema de Ptolomeu que triumphava nas escolas, era esse o que tinha a sua consagração scientifica. Segundo a theoria do grande geographo, a terra espherica estava dividida em cinco zonas, as zonas glaciaes tão longe do sol que a vida era alli impossivel por causa da falta absoluta de calor, a zona torrida tão proxima do sol, que em torno d’ella descrevia a sua enorme e rapidissima viagem, que a vida era impossivel pelo excesso do calor, emfim as zonas temperadas onde nem o calor era extraordinario nem extraordinario o frio, e que a vontade suprema destinara evidentemente para habitação do homem.

Era conforme esta theoria com o espirito, com o pensamento grego que em tudo se manifestava, na arte, na poesia, na philosophia, no viver social e politico. O ideal grego é a moderação e a harmonia. O universo devia regular-se tambem por essas leis harmonicas, que marcam tanto o rhythmo da architectura do Parthenon como o da poesia de Sophocles, tanto o da philosophia de Platão e de Aristoteles e o da eloquencia de Demosthenes e de Lysias como o das concepções mythicas d’aquelle harmonioso anthropomorphismo hellenico, que produziu aquelles typos idealmente bellos nas suas proporções sublimes, Apollo e a Aphrodite. Assim o homem tambem não poderia viver senão nas regiões em que o clima tivesse a harmonia e a moderação compativeis com o desenvolvimento normal da vida humana. Logo que o calor principiasse a exaggerar-se, desmanchando o equilibrio da temperatura, desmanchava-se tambem o equilibrio das proporções e da fórma humana. Por isso nas proximidades d’essa pavorosa zona torrida começava a terrivel degeneração da raça, surgiam creaturas cada vez mais monstruosas, e era assim effectivamente que Plinio explicava essa efflorescencia de monstros que, no seu entender e no entender dos outros geographos antigos, se manifestava nas regiões mais proximas da zona torrida[3], onde desapparecia emfim no immenso incendio com que o sol abrazava o mundo.

Mas, como diziamos, Ptolomeu entendia e bem que eram duas as zonas temperadas, uma ao norte, e outra ao sul do Equador, mas entre as duas, pela sua theoria, não podia haver communicação. Essa terra é a famosa terra antichtona, a terra austral, o alter orbis que figura conjecturalmente nos antigos mappas, e em que, por mais de uma vez, uns teem querido ver a America, outros as regiões descobertas pelos Portuguezes! A America nunca pela terra antichtona podia ser designada, porque a terra antichtona ficava para o sul, mas tão levianamente homens de merito notavel teem estudado estes assumptos, que se deixaram muitas vezes illudir pela orientação de antigos mappas que é quasi sempre diversa da nossa. O oriente era muitas vezes collocado nos mappas no sitio onde hoje collocamos o norte, o occidente onde fica o sul, o norte para o lado do occidente e o sul para o lado do oriente. Os Arabes então invertiam completamente o systema. O sul fica para o norte e o norte para o sul. Com estas alterações que immenso cuidado é necessario quando se pretendem tirar quaesquer illações dos mappas antigos!

É essa a doutrina que prevalece durante toda a edade média. É Macrobio que suppõe a zona torrida inhabitada e queimada pelos fogos do sol, e a zona temperada austral povoada por homens de uma especie desconhecida[4], Orosio que declara que do interior da Africa nada se pode conhecer porque o calor da zona torrida o reduz a uma brazeira.[5] S.ᵗᵒ Izidoro de Sevilha sustenta egualmente a existencia da terra antichthona onde habitam os antipodas, se não são fabulosos.[6] Bedo o Veneravel, que tem a sua theoria cosmographica exposta pittorescamente pela comparação do ovo, que vê a terra collocada no meio do mundo como a gemma, a agua em torno como a clara, o ar como a membrana e o fogo como a casca, tambem apresenta a doutrina da terra antichthona separada da nossa pela zona inhabitavel.[7] S. Virgilio imagina que o alter orbis tem outra lua, outro sol e outras estações.[8] Raban Mauro, que falla nos basiliscos fabulosos, e nas Gorgonas cabelludas e phantasticas, tambem indica a terra antichthona separada pelo ardor do sol[9]; Alfrico, Moysés de Choréne, Pedro des Vignes, o famoso Pedro d’Ailly, Marino Sanuto, Nicolau d’Oresme e quantos outros estabelecem e proclamam esta doutrina que é a que tem um caracter scientifico. Quando o mundo christão entra em relações com o mundo arabe então illuminado por uma forte civilisação, quando trava conhecimento com os seus grandes geographos, Edrisi, Abulféda, Masoudi, o que encontra? Encontra a influencia de Ptolomeu alli tambem predominante como em geral a influencia grega, o Almagesto considerado como uma obra divina, e portanto egualmente triumphante a doutrina da antichtona e da zona torrida inhabitavel.

Ha alguns espiritos que se revoltam contra essa idéa? Ha de certo, mas esses são só os espiritos independentes como Alberto Magno, como Rogerio Bacon, como Pedro d’Abano, esses simplesmente não acceitam o que não está demonstrado, mas não vão contra factos incontestados. Assim Alberto Magno não acceita sem demonstração a idéa de que o sol percorra especialmente a zona torrida e a prive de toda a vegetação e de toda a manifestação de vida, mas, não contestando que não ha relações entre a terra que habitamos e a terra desconhecida, attribue esse facto em primeiro logar á immensidade dos mares, em segundo logar á existencia na antichthona de montanhas magneticas que prendem os habitantes e que os não deixam transpôr os incommensuraveis espaços que os separam da terra que habitamos[10].

Rogerio Bacon sustenta opinião approximadamente identica[11]. Pedro d’Abano refugia-se na vaga observação de que o meio deve ser mais perfeito do que as extremidades[12], e uns e outros sustentam que a zona torrida é toda occupada pelo mar, que o Occeano não rodeia simplesmente a terra, que se interna no seio d’ella formando os quatro grandes golphos do Mediterraneo, do Mar das Indias, do Mar Roxo e do Caspio, porque este mar interior foi por muito tempo e por muitos geographos considerado como um mar que communicava ou com o Baltico, ou com o Occeano.

Para todos então a approximação da zona torrida era assignalada pela existencia de monstros, em que se desentranha com uma espantosa exuberancia a fertil imaginação dos povos infantis. A teratologia das antigas religiões transportava-se e desenvolvia-se de um modo prodigioso nas descripções dos mais serios geographos. Nas regiões que confinavam com as que eram defezas aos homens brotavam as plantas maravilhosas, a especie humana torcida e desfigurada desatava-se em fórmas phenomenaes, e ao lado d’ellas percorriam animaes monstruosos, como os que reconstitue para as epochas primitivas a paleontologia moderna, essas regiões devastadas. Para o norte no Caucaso e na Scythia collocava Raban Mauro os gigantes, os gryphos e os dragões que zelosamente guardavam o oiro e as pedras preciosas[13]. Para o sul, segundo o pensar de Vicente de Beauvais, um dos grandes geographos da edade média, havia dragões logo para deante de Marrocos[14]. João de Hase collocou na India os pygmeus que apenas viviam 12 annos, e rochedos magneticos que attrahiam os navios para o fundo do mar[15]. As obras de Plinio eram fonte inexgotavel de extraordinarias divagações. Cynocephalos e acephalos, cyclopes e arimaspes, antipodas que não tinham dedos, hippopodas que tinham pés de cavallo, e juntamente com elles os gryphos pullulavam n’essas regiões mysteriosas, como aviso supremo que a Providencia dava aos que pretendiam penetrar nas regiões em que o sol impera e que o sol devasta.

No famoso mappa da cathedral de Hereford encontra-se uma das collecções mais completas d’essa estranha producção zoologica e anthropologica da sciencia d’esse tempo. E note-se que essa sciencia não a produzia a edade média, colhera-a nos livros da erudita antiguidade. Era lá que ella encontrava os troglodytas que comiam serpentes, eram Mela e Plinio e Vopisco que apresentavam os Blemmyos que tinham os olhos no peito e os Presumbanos sem orelhas. Se seguimos as indicações d’esse famoso mappa-mundi lá encontramos ao norte os gryphos que teem azas de aguia e corpo de leão e que defendem contra os Arimaspes as minas das verdes esmeraldas, os Hyperboreos, povo que conhece a eterna felicidade e que só morre quando, cançando-se de viver, se lança ao mar do alto de um rochedo, e os Scythas de olhos verdes que vêem melhor de noite que de dia, e os minotauros que teem corpo de homem, cabeça, cauda e pés de toiro, e os tigres da Hyrcania a que os homens escapam se, quando fogem deante d’elles, se lembram de lhes atirar um espelho, e na India então a monstruosa mantichora que tem corpo de leão, rosto de homem, cauda de escorpião, tres ordens de dentes, olhos glaucos, côr de um vermelho sanguineo, os pelicanos que abrem o seio para sustentar os filhos, e povos sem nariz, e outros sem lingua, e os Monoculos que teem um olho só, uma perna só e um pé tamanho que, depois de terem andado largo caminho, apesar dos seus poucos meios de locomoção, com uma rapidez prodigiosa, ao descançarem levantam o pé e adormecem á sua sombra.

Na Phrygia apparece o bomaco, um estranho animal, que tem crinas de cavallo e cabeça de toiro, e que se defende, quando foge, com os proprios excrementos que queimam tudo em que tocam, na Arabia a phenix animal unico que vive quinhentos annos, na Bythinia o lynce que vê atravez dos muros e urina uma pedra negra, e até na Palestina tem o rio Jordão, junto do Asphaltite, a designação de que nas suas aguas sobre-nada o ferro e mergulham as pennas.

Na Africa então ha uma verdadeira orgia zoologica, botanica e anthropologica. Alli vive a salamandra, um dragão venenoso que se deleita nas chammas, alli floresce a mandragora, essa planta de face humana que tem miraculosas virtudes, alli corre o éalo, que tem corpo de cavallo, cauda de elephante e queixos de cabra, cujo pello é negro e cujos chavelhos moveis teem uma braça de comprimento. Alli se succedem emfim os Ambaros que não teem orelhas e cuja planta dos pés é queimada, os Scinopodas que teem as mesmas particularidades que os Monoculos, os Androgynos que reunem n’um só individuo os dois sexos, os Himantopodas que arrastam as pernas de fórma que mais rastejam do que andam, os Blemmyos de que já fallámos, os Psyllos que experimentam o pudor das suas mulheres expondo os filhos ás serpentes, os Parvini que teem quatro olhos, os Agriophagos que se sustentam da carne das pantheras e dos leões e cujo rei tem só um olho, e os Virgogicos que habitam em cavernas e comem insectos, e os satyros, e os faunos que são meio homens e meio cavallos, e outros povos que teem o rosto comprimido e se sustentam por meio de um canudo, outros que teem nos hombros os olhos e a bocca e outros que dão sombra ao rosto estendendo um dos labios, tão proeminente elle é, e entre animaes além dos dragões e dos gryphos o famoso basilisco, animal monstruoso que tem na fronte uma faxa branca que imita um diadema, e que empesta o ar que respira, mata as plantas de que se approxima, devasta o paiz que percorre, e a esphinge que tem azas de passaro, cauda de serpente e cabeça de mulher, e o monocerio, que, apesar de ser perigosissimo, quando d’elle se approxima uma donzella que lhe mostra o seio, toda a sua furia se aplaca, e sobre esse seio adormece, e as formigas enormes que guardam as areias de oiro. Alli tambem se encontram montes em fogo cheios de serpentes, montes silenciosos de dia, mas onde, á noite, accorda, á luz de estranhas claridades, o som dos pandeiros dos Egipans, e fontes que punem com a cegueira os ladrões, e o poço maravilhoso, que se conserva todo o anno immerso na sombra, mas que em certo dia, quando o sol chega ao zenith, e os seus raios se projectam verticalmente sobre a sua superficie, se enche de subito de immensa claridade, e cidades como a de Adaber onde os dragões pullulam.

Mas tudo isto são contos de velhas, patranhas de viajantes? Não! isto tem, pelo menos em grande parte, um caracter scientifico. A antiguidade o transmittira e o que se não encontrava em Strabão, ou Ptolomeu ou em Aristoteles encontrava-se em Plinio, ou em Solino, ou em Pomponio Mela. Durante os descobrimentos estas noções acompanhavam os nossos viajantes, que, ao passo que destruiam umas, ainda iam acalentando as outras. O mytho das amazonas, que, durante a antiguidade, fluctuára entre a Scythia e os arredores do Egypto, chegou a transplantar-se para a America, e estava na mente do explorador que deu o nome de Amazonas ao gigante fluvial da America do Sul. As singularidades da phenix e do lynce eram perfeitamente admittidas como authenticas, e a dedicação materna attribuida ao pelicano, e que é tão contraria á verdade, que esse passaro, longe de se dedicar pelos filhos, nem sequer os defende como fazem os outros animaes, até ha bem pouco tempo passou por certa. As monstruosidades humanas não espantavam pessoa alguma, e bem o podemos perceber se nos lembrarmos que não estranhariamos monstruosidades semelhantes se nol-as contassem, com certa auctoridade scientifica, dos habitantes da lua. Sabendo como os organismos animaes se adaptam aos meios em que teem de viver, não nos custa a admittir que os habitantes da lua, se não teem ar respiravel, não tenham tambem os orgãos respiratorios, que lhes faltem a bocca e o nariz, e que engulam o alimento, se de alimento precisam, por outra fórma qualquer. Desde o momento que se admittia o rigor inflexivel do sol nas regiões tropicaes, como se não admittiria a existencia dos Himantopodas e dos outros povos em cujo organismo a providente natureza desenvolvera sobretudo os orgãos que tivessem por fim preserval-os do sol?

Assim as affirmações positivas e serias da sciencia eram todas contrarias á navegação para a zona torrida. Tão estranho pareceria a todos tentar-se uma viagem n’essa direcção, como hoje nos pareceria a nós tentar uma viagem em direcção á lua. Azurara, se escrevesse a sua Chronica da Guiné antes dos descobrimentos portuguezes serem conhecidos lá fóra, passaria por auctor de um outro Amadis de Gaula, e ninguem estranharia que a patria de Lobeira produzisse outro escriptor não menos phantasioso, ainda que d’esta vez o conto excedia demasiadamente todos os limites da verosimilhança. Mesmo n’essa epocha de credulidade o livro de Azurara faria sorrir os leitores, se a realidade dos factos não fosse já conhecida de todos, como hoje nos fazem sorrir os romances de Julio Verne.

Mas não apparece agora a todos evidente e claro o absurdo de se suppor que por alguem fomos precedidos nos descobrimentos africanos? Seria necessario suppor, para que os normandos tivessem ido á zona torrida, e creado estabelecimentos na costa e desamparado depois essa navegação sem que ninguem tivesse ligado a essas expedições a minima importancia, seria necessario suppor que as questões geographicas encontravam no mundo medieval a mais completa indifferença, que ninguem sabia se havia zona torrida ou não, e que viagens d’essas não levantavam a minima curiosidade. Não; a edade média preoccupava-se avidamente com as questões de geographia, principalmente depois das cruzadas, e sobretudo depois d’essa grande Renascença do seculo XIII, que foi a aurora do grande esplendor do seculo XVI.

Cosmas Indicopleustas, Jornandés, Gregorio de Tours, Marciano Capella, Vibio Sequester, St.° Avito, e Prisciano e Cassiodoro e Proclo e Macrobio e Paulo Orosio nos seculos V e VI; St.° Isidoro de Sevilha, Philopomus, Bedo o Veneravel, S. Virgilio no seculo VIII, Anonymo de Ravenna, Dicuil, Raban Mauro, Alfredo o Grande no seculo IX, Alfrico, Adelbod, o monge Richer, Moysés de Chorène no seculo X, Herman Contractus, e Azaph o Hebreu no seculo XI, Honoré d’Autun, Othão de Frisa, Hugo de Saint-Victor, Jacques de Vitry, Hugo Metello, Guilherme de Jumiège, Herrade de Landsberg, e Bernardo Sylvestris no seculo XII, Sacro Bosco, Vicente de Beauvais, Alberto o Magno, Rogerio Bacon, Roberto de Lincoln, Pedro d’Abano, e Dante, Cecco d’Ascoli, Roberto de S. Marianno d’Auxerre, Gervais de Tilbury, Pedro des Vignes, Brunetto Latini, Joinville, Omons, Alain de Lille, Guy de Basoches, Engelberto e Nicephoro Blemmyde no seculo XIII, Marino Sanuto, Nicolau d’Oresme, Ranulfo Hydgen, Faccio degli Uberti, João de Mandeville, Boccacio, Petrarcha, Bartholomeus Anglicus, Gervais, Ricobaldi de Ferrara no seculo XIV, Pierre d’Ailly, Guilhermo Fillastre, Leonardo Dati, João de Hése no seculo XV, e quantos outros mais ainda sustentaram e ensinaram as doutrinas cosmographicas que temos exposto! Uns mantinham a doutrina de Ptolomeu de que só a zona torrida era inhabitavel, outros a de que era inhabitavel toda a parte meridional da terra, outros e esses ainda assim rarissimos como Alberto Magno e Roger Bacon, se não acceitavam sem contestação nem como verdade absoluta a affirmação de que era inhabitavel a zona torrida, sustentavam que nem por isso deixava de ser impossivel a transposição dos seus limites, porque o mar immenso a cobria toda, e porque nas terras antichtonas havia as terriveis montanhas magneticas cujo pensamento paralysava os viajantes. Os mappas, que acompanhavam as copias dos manuscriptos antigos, como de Sallustio, do Apocalypse, de Pomponio Méla, de Ptolomeu, e os poemas geographicos, e as Imago mundi e as Thesaurus, e os que se elaboravam nos conventos mais eruditos, todos reproduziam estas affirmações, esta fórma estranha da terra, e inflammavam com a tinta vermelha os mares da zona torrida e inscreviam nas regiões mais proximas, que na Africa principiavam logo ao sul de Marrocos, as indicações dos estranhos povos que as habitavam. E, quando tão arraigada se achava esta convicção no animo de todos, quando no seculo XIV se discutiam com ardor as doutrinas capitaes que expozemos ácerca da zona torrida, a ponto de Pedro d’Abano escrever, com o titulo de Conciliator, um livro destinado, como indica o seu titulo, a conciliar essas doutrinas, quando as viagens de Marco Polo excitavam immensa curiosidade e muita incredulidade tambem, tão estranhas coisas contava — apesar de nenhuma d’ellas destruir afinal de contas os pontos capitaes da sciencia do seu tempo — era possivel imaginar-se que navegadores quaesquer fizessem viagens, que destruissem completamente as noções essenciaes da geographia essencialmente admittida, viagens em que penetrassem na zona torrida não só sem perigo, mas tambem sem encontrar nas regiões circumjacentes nem povos monstruosos, nem animaes estranhos, nem maravilhosas plantas, e que nem esse facto surprehendesse capitães e marinheiros, nem excitasse a curiosidade dos reis, nem dos sabios monges, nem dos que escreviam os poemas geographicos, nem dos que compunham as encyclopedias, nem dos que desenhavam os mappas, nem dos aventureiros dos outros paizes, como succedeu com as viagens dos Portuguezes, que deram logo brado em toda a Europa, como não podia deixar de succeder quando se désse um passo tão gigante no conhecimento do mundo, quando a prôa dos nossos navios, como o teria feito a prôa dos navios normandos, se as suas viagens fossem verdadeiras, fazia cair por terra todo um systema geographico, sustentado desde a mais remota antiguidade pelos respeitados eruditos?

Diz Laplace que o merito de uma descoberta pertence não a quem a faz, mas a quem a demonstra. Aqui dava-se o caso mais notavel ainda, de bastar para a demonstrar fazel-a. Como o philosopho antigo que respondia aos que negavam o movimento andando, os Portuguezes responderam aos que sustentavam a impossibilidade de transpor a zona torrida transpondo-a. Essa demonstração tel-a-hiam feito os Normandos, se antes de nós lá tivessem ido, ou os Genovezes ou os Catalães. A gloria tel-a-hiam elles, mas gloria immediata, porque o facto era de tal ordem que não era necessario que decorressem seculos para se lhe reconhecer a importancia.

No capitulo immediato veremos como a fé e a lenda, ainda mais do que a sciencia, fechavam a zona torrida e os mares, que, no dizer de alguns, a enchiam, á investigação do homem. Essas lendas, como as da sciencia, iam sendo rasgadas a pouco e pouco, mas pendiam, assim esfarrapadas, dos hombros dos navegadores. Lembram aquelles nevoeiros de Cintra, que envolvem o valle e a montanha, tendo por cima o céo azul. Á medida que os transpomos, vão-se rasgando por baixo de nós, surge uma aldeia, irrompe um arvoredo, um grupo de rochas, mas em muitos pende ainda dilacerado o manto do nevoeiro. Assim veremos os navios portuguezes e hespanhoes caminhar envoltos em nevoas, até que a sua audacia tudo rompeu, e o mundo appareceu emfim na sua completa e radiosa realidade.


Notas editar

  1. Note-se bem que este é que é o systema de Ptolomeu, o que predominava, apesar de tudo, nos espiritos mais esclarecidos. Pedro agora vae refutal-o, substituindo-lhe uma outra theoria scientifica, menos em desaccordo com as affirmações orthodoxas.
  2. Petri Alphonsi Judeo Christiani Dialogi, p. 15, apud. Visconde de Santarem, Essai sur l’histoire de la cosmographie, etc., tom. III, pag. 320 a 324.
  3. «Se as extremidades da Ethiopia nos offerecem figuras extranhas de homens e de animaes, pouco nos devemos espantar: é o effeito do excessivo calor que alli reina, porque a acção do fogo é maravilhosamente propria para fazer tomar ás partes exteriores de todos os corpos uma infinidade de configurações diversas.» (Plinio, Historia Natural, tom. V, cap. XXX.)
  4. Macrobio, In somnium Scipionis, tom. II, cap. IX.
  5. Orosio, Ormesta mundi.
  6. Santo Isidoro de Sevilha, De Lybia.
  7. Bedo, De Elementis Philosophiæ, tom. IV, pag. 225. — «... Pars enim illius torridæ parti aeris subjecta, ex fervore solis torrida est et inhabitabilis, etc.»
  8. S. Virgilio, bispo de Saltzburgo. Veja-se a este respeito a Historia litteraria de França, tom. IX, p. 156.
  9. Raban Mauro de Moguncia, De Universo.
  10. Alberti Magni Germani, Philosoph. principii, Liber cosmographicus de natura locorum, fl. 14b e 23a.
  11. Roger Bacon, Opus majus, pag. 183.
  12. Conciliator differentiarum philosophorum, Diff. LXVII.
  13. De Universo, liv. XII, cap. IV, pag. 172.
  14. Speculum naturale, part. 1.ª, liv. IV, cap. XVII.
  15. De mirabilibus Indiæ.