Os descobrimentos portuguezes e os de Colombo/V
V
O infante D. Henrique e o povo portuguez
Nenhum povo estava tão fadado como os Portuguezes para esse emprehendimento maravilhoso na epocha em que elle se encetou. As cruzadas tinham despertado nos povos europeus o espirito da aventura. Era para o Oriente que se voltava esse ardor de conquista, não só porque era a terra classica de todas as opulencias, mas porque a conquista do Oriente fôra o sonho da antiguidade grega e romana e o culto mal comprehendido, mas profundo, pela antiguidade foi um dos caracteres predominantes da edade média. Alexandre o Magno era para elles o ideal do cavalleiro andante, imaginavam-n’o como um soberano cavalheiresco, segundo a formula feudal, como Virgilio, o dôce poeta, era um feiticeiro de legenda; mas a adoração por esse grande vulto vivia em todos os espiritos. Foi para o Oriente pois que se dirigiram os primeiros viajantes, os Rubruquis, os Plan du Carpin, os Marco Polo, quando as expedições guerreiras tiveram de parar deante da resistencia victoriosa dos sarracenos. Mas esses viajantes já tinham feito penetrar um pouco de luz na geographia systematica do seu tempo, e a humanidade evidentemente, despertada para o estudo e para a sciencia pela primeira Renascença do seculo XIII, ia procurar sondar o desconhecido que por todos os lados a envolvia.
O segredo dos mares occidentaes devia preoccupar sobretudo os povos que no occidente da Europa viam desenrolar-se diante d’elles a incommensuravel extensão das vagas oceanicas. Os povos do Norte, que tinham chegado até á ultima Thule, a regelada Islandia, não deixaram de aventurar-se por esses mares ignotos, e é incontestavel que, assim como chegaram á Groenlandia, tocaram tambem no continente americano. Se perseverassem na descoberta, se fossem seguindo ao longo da costa da America, emquanto encontrassem terra nas suas aventurosas jornadas, teriam roubado incontestavelmente a Portugal e á Hespanha as suas mais viridentes glorias! Á Hespanha, porque antes de Colombo teriam dado á civilisação esse vastissimo continente, a Portugal, porque antes do infante D. Henrique teriam reconhecido a possibilidade de se transpôr a zona torrida; mas não perseveraram, e assim legitimamente perderam a gloria que teriam podido conquistar. Que, afastando-se da Islandia, encontrassem uma nova terra ainda mais regelada e triste, que, proseguindo na sua viagem, chegassem a territorio mais risonho, não é coisa que nos espante, posto que demonstre mais uma vez a coragem d’esses audaciosos reis do mar. A gloria de Colombo não está em ter encontrado novas terras, está em não ter recuado deante dos dogmas da extensão quasi infinita dos mares, assim como a gloria dos Portuguezes não está em terem juntado novas terras ao peculio da civilisação, está em não terem recuado diante do dogma scientifico e religioso da impossibilidade de se viver na zona torrida e da existencia dos mil perigos e dos mil horrores que defendiam a sua approximação.
Ninguem era, comtudo, mais proprio do que os Normandos para tentarem as aventuras maritimas; estavam porém demasiadamente ao norte, e, como ás suas aventuras presidia sempre, como ás dos Phenicios, não o amor da sciencia, mas o amor do lucro, ao chegarem ao cabo de S. Vicente, mais os tentava o caminho do Mediterraneo, onde havia tão seductoras prezas, do que o arriscado caminho do Mar Tenebroso. No seculo XIV os Normandos de França sentiram-se attraídos para os mares do Sul, até porque lhes chegára a noticia de que os marinheiros da peninsula hispanica para esse lado tinham encontrado as ilhas Afortunadas, mas a tentativa de Bethencourt não tivera nem poderia ter imitadores, porque não fôra extremamente prospero o seu resultado, porque as costas áridas do prolongamento de Marrocos, onde tinham encontrado a morte, essa Guiné, como lhe chamavam, Guiné que tinha por limite meridional o cabo Bojador, não promettia grandes proventos aos que lhe tentassem a exploração. A Inglaterra concentrava na conquista da França todas as suas attenções e todo o seu empenho e a França cuidava em defender-se e em completar a sua poderosa unidade. A Italia tinha duas potencias maritimas — Veneza e Genova — cujos navegantes davam lições aos outros povos, mas uns e outros tinham os olhos postos no Oriente, d’onde lhes vinha a riqueza, a gloria e o dominio. Genova é que lançava de quando em quando os olhos para o occidente, em Veneza appareciam ás vezes alguns espiritos que se deixavam tentar pelos mysterios do Oceano, mas as viagens audaciosas e pouco afortunadas dos irmãos Zeni venezianos e de Vivaldi e Doria genovezes, não podiam ser incitamento a que se proseguisse nas tentativas. Acontecia com as duas republicas maritimas o que depois aconteceu com Portugal quando regeitou a proposta de Colombo. Não se deixa o certo pelo duvidoso. Não se empenham vidas e thesouros em emprezas incertas, semi-phantasticas, quando se tem nas mãos, como Veneza e Genova tinham, o vasto commercio do Oriente, quando se tem quasi a certeza de que se está no caminho da India, quando se possuia já o resgate valioso da Mina como acontecia com D. João II. Para esses emprehendimentos que são o sonho da politica, são necessarios não os espiritos positivos, mas as imaginações exaltadas. É indispensavel que haja n’um cerebro esse grão de loucura que faz os grandes poetas e os grandes descobridores, que inspira os poemas que se escrevem — os poemas da phantasia, e os poemas que se executam — os poemas da acção, um homem como o infante D. Henrique, que herdára de sua mãe, como todos os seus irmãos, esse elemento romanesco que toda a mulher do Norte encerra no fundo da sua alma, por baixo da sua apparencia séria, austera e pratica de dona de casa e de mãe de familia, para conceber e levar por deante, n’um jorro de santa loucura, o poema das navegações, ou uma mulher cavalheiresca, romanesca tambem, sensivel e enthusiastica como a rainha Izabel, para comprehender a alma de Colombo, para se irmanar com ella, e para collaborar tão apaixonadamente n’esse ultimo poema de cavallaria, n’essa ultima producção da alma celtica, n’esse ultimo romance do Santo Graal que se chamou Descoberta da America.
Restavam os reinos da peninsula hispanica, mas todos esses, á excepção de Portugal, se achavam empenhados ainda nos ultimos arrancos da sua lucta contra os Mouros. No oriente da Hespanha, nas Baleares sobretudo, havia a tentação de sondar o mar desconhecido, mas diante do cabo Bojador ainda se recuava. Tel-o-hiam dobrado comtudo se tivessem perseverado no intento, mas era essa perseverança que não podia deixar de faltar a um povo que não tinha para isso outro estimulo que não fosse o da curiosidade, que mais se deixaria tentar pela Africa mediterranea do que pela Africa atlantica. O povo que estava deveras em circumstancias de tentar os grandes emprehendimentos era sobretudo Portugal.
Acabava de atravessar um periodo em que todas as suas faculdades tinham sido vivamente excitadas, e em que empregára todas as suas forças e toda a sua actividade. Havia dois seculos que unificára o seu territorio e que expulsára os Arabes. Desde que o fizera, voltára naturalmente as suas attenções para o Oceano, e o grande rei, que mais cuidára da organisação pacifica do seu povo, D. Diniz, empenhara-se essencialmente em nos dar marinha, animando a mercante, protegendo a pescadora, desenvolvendo a de guerra, já providenciando para que se podessem fazer navios, já indo buscar a Genova, a grande nação marinheira do Mediterraneo, os navegadores que podiam dar aos nossos mareantes os conhecimentos technicos que lhes faltavam. Como se tivesse a previsão de que ainda a Portugal caberia tentar a ultima empreza cavalheiresca da edade média, não se conformára com a suppressão dos Templarios, e fundára para os substituir a ordem de Christo, cujos cavalleiros tinham de vir a ser os Templarios do mar, cujo habito e cuja commenda foram a «estrella dos bravos», cujas phalanges intrepidas foram a Legião de Honra das nossas maritimas victorias.
Logo as primeiras expedições atlanticas mostraram que rumo Portugal queria seguir, mas as discordias intestinas e as ambições dos reis adiaram o proseguimento das tentativas. Não se resignavam os nossos soberanos a manter o seu reino em tão estreitos limites, mas Castella engrandecera-se tanto que não nos era facil a dilatação. Foi o contrario que esteve para succeder, foi Castella que esteve a ponto de absorver Portugal; na lucta desegual empenharam-se então todas as nossas forças vivas; toda a energia da nossa organisação, toda a furia do nosso patriotismo local despertaram para essas pelejas homericas. O perigo imminente fez com que a patria se retemperasse na grande corrente democratica. A nacionalidade portugueza luctou com a poderosa Castella como Anteu com Hercules, cobrando novas forças sempre que tocava no solo portuguez. Em 1385 como em 1640 foi o povo que salvou a bandeira. A gente dos concelhos, indo, ventres ao sol, na energica phrase de Fernão Lopes, combater contra os cavalleiros vestidos de ferro, manifestava na peninsula hispanica uma nova força social, a mesma que dera aos yeomen inglezes a victoria sobre a cavallaria feudal da França, e aos montanhezes suissos a victoria sobre a cavallaria aristocratica de Carlos o Temerario. Nunca houve uma efflorescencia tão notavel de bravura e de talento, de genio aventuroso e de dedicação patriotica, nunca estiveram em tão continua vibração todos os nervos e todos os musculos de um organismo nacional. Quando acabou a lucta, depois de ter insculpido nos annaes gloriosos da patria os nomes de Trancoso e de Atoleiros, de Aljubarrota e de Valverde, de D. João I e de Nuno Alvares Pereira, a geração que praticára esses feitos estava ainda vibrante de energia, o cerebro que concebera a reorganisação nacional estava scintillante de idéas. Foi então que Vasco de Lobeira devaneou o Amadis de Gaula, que Fernão Lopes fez trasbordar nas suas inimitaveis chronicas a exuberancia poetica da alma nacional, que os architectos e os canteiros fizeram desabrochar no campo da peleja a flor maravilhosa da Batalha, que o infante D. Henrique sonhou a epopéa dos descobrimentos.
Quando uma nação acaba de se empenhar n’uma lucta aventurosa de muitos annos custa-lhe a voltar de novo ás occupações serenas da paz. Ha em todos os espiritos uma sede de aventuras, uma necessidade absoluta de occupar a sua energia. É por isso que vemos, depois das grandes luctas do principio d’este seculo, os generaes francezes e os officiaes de marinha inglezes procurar em todo o mundo emprego para a sua actividade. Encontramos até no Oriente officiaes de Napoleão pondo a sua espada ao serviço de monarchas indianos, na Europa e na America officiaes de marinha inglezes a commandar as esquadras insurgentes nas luctas da independencia americana e da liberdade europêa. Assim no seculo XV vamos achar cavalleiros portuguezes á cata de aventuras na Inglaterra e na França e até na mais remota Allemanha. Sem fallarmos em D. Alvaro Vaz de Almada, cujos serviços mereceram na Inglaterra a altissima recompensa da ordem da Jarreteira e do condado de Avranches, nem no infante D. Pedro, e em Soeiro da Costa, achamos nas guerras de França, no cêrco de Arras, por exemplo, cavalleiros portuguezes, cujo nome ficou desconhecido, entrando em combates singulares deante dos muros da praça assediada.[1]É esta necessidade de dar vasão a esta superabundancia de energia que leva D. João I, incitado por seus filhos, á expedição de Ceuta, é um povo n’essas disposições que o infante D. Henrique vae encontrar apto para as audaciosas explorações do Atlantico.
Note-se: hoje ainda, depois de tantos seculos de decadencia, nós somos o povo da aventura. Indolentes na patria, amanhando sem enthusiasmo um solo uberrimo que se desentranharia em maravilhosos fructos se lhe dessemos francamente todo o trabalho dos nossos braços e todo o pensamento do nosso cerebro, discursadores declamatorios, sem iniciativa nem acção, mudamos completamente apenas transpomos as barras dos nossos rios. Apertados entre as montanhas e o mar, é nas montanhas que temos a nossa força de resistencia, é no mar que temos o nosso vigor de emprehendimento. Os nossos montanhezes intrepidos são ainda hoje os lidimos descendentes dos companheiros de Viriato, os nossos pescadores são deveras os filhos audaciosos dos marinheiros de Gil Eanes. Lá fóra a transformação é mais completa ainda: fizemos o Brazil, e estamos continuando a dar ao seu desenvolvimento os elementos da nossa actividade exotica; estamos fazendo a Africa portugueza, e os vestigios dos nossos aventureiros mercadores são encontrados com espanto no interior da Africa; nos Estados-Unidos temos uma colonia trabalhadora e autonoma que se não deixa absorver pelo povo americano; nas ilhas Sandwich a immigração portugueza rivalisa em importancia com a immigração ingleza; em Demerara constitue o fundo da população branca trabalhadora. A alma celtica palpita ainda hoje nos nossos peitos, como palpitaria então n’esse seculo XV, que foi o nosso seculo aureo, depois das luctas homericas de Aljubarrota, quando o povo trasbordava de vida e de enthusiasmo, prompto para todas as luctas, sazonado para todas as aventuras.
A dynastia reinante reflectia perfeitamente o estado da alma popular. O rei era um bastardo, um filho do amor, e de um amor de D. Pedro, o rei mais violento e mais apaixonado que nunca se sentou n’um throno! O sangue borgonhez de seu pae cruzara-se com o sangue normando de sua esposa, e d’ahi nascera aquelle grupo admiravel de principes robustos e intelligentes, educados por sua mãe n’aquelle retiro sagrado das principescas familias medievaes, n’esses quartos forrados de tapeçarias de haute-lice, em que pareciam á noite, á luz vacillante das tochas, tomar vida phantastica os heroes das scenas de cavallaria traçadas nos pannos de raz, ouvindo os graves conselhos da mãe, pura, séria e heroica, embalados com a poesia das canções de gesta e com as aventuras dos romances de cavallaria, e, quando saíam do regaço materno, não vendo em torno de si senão rostos energicos de homens como seu pae, como Nuno Alvares, cuja vida inteira era um poema de heroismo, e que, ao viajarem no seu reino, dirigiam quasi sempre os passos para a campina sagrada, onde se estava erguendo sobre as columnatas esguias essa maravilhosa abobada d’onde parecem chover os altos pensamentos, e o altar-mór onde se accendia nas vidraças coloridas o sonho vago e radiante de uma visão paradisiaca.
Tal era o meio onde tinham forçosamente de brotar os grandes emprehendimentos. Foi d’esse meio que saiu a expedição de Ceuta, que não bastava para satisfazer a insaciavel cubiça de aventuras d’esses principes, que não viam em torno de si senão homens em cuja alma as suas aspirações encontravam echo ou estimulo. Assim D. Pedro foi pela Europa fóra procurar emprego para a sua energia e para a sua cubiça de saber, D. Fernando devaneou desde logo o proseguimento da conquista africana, D. Henrique, estudioso e reflexivo, sonhou a conquista do mar.
É difficil o desenho d’esta notabilissima figura. Levanta-se contra ella agora uma campanha de improperios, em que os adversarios parecem querer applicar ao juizo severo e imparcial da historia os processos das campanhas jornalisticas das luctas contemporaneas. Tomou parte n’esta campanha o sr. Theophilo Braga, e é pena que o fizesse, porque o livro em que essas tendencias incidentemente apparecem é um dos mais notaveis que se lhe devem, a Historia da Universidade.[2] Fez-se echo simplesmente comtudo da maledicencia de um d’estes eruditos, que, descobrindo um facto minusculo que pode attenuar a gloria de uma descoberta, ou achar um ponto vulneravel no vulto de um heroe, vem triumphantemente para a rua soltar o Eureka de Archimedes, declarando urbi et orbi que vão demolir uma reputação firmada pelos seculos. Têem odios historicos tão violentos estes biliosos da erudição como os podem ter contra um poderoso adversario os mais fanaticos jacobinos da politica moderna. São perigosos homens assim, e o historiador imparcial tem de afastal-os serenamente como afasta os insultadores contemporaneos do insultado, que entornam com delicias o fel das suas calumnias nas paginas que enviam á posteridade. Seculos depois de desapparecer da face do mundo um homem eminente, apparecem deturpadores vehementissimos, em cujo espirito a vaidade de fazerem vingar um novo pensamento historico produz tão ruins consequencias como as pôde produzir seculos antes o odio de um invejoso, o despeito de um desprezado, ou a vingança de um vencido.
Era por acaso o infante D. Henrique um impeccavel? Mais ainda: era um vulto sympathico, affectuoso, altruista, um d’estes entes divinaes como o Christo, cuja doce bondade irradia na Historia, que nos captiva quando lêmos a sua Vida como devia captivar os que no seu tempo viveram, debaixo do influxo magnetico da sua meiguice, da sua amoravel candura? Não, de certo, e nem é esse infelizmente o caracteristico dos homens a quem se devem os grandes emprehendimentos. É terrivel o homem unius libri, diz o pensador antigo. Não o é menos o homem de um só pensamento e de uma só ambição. Bondoso, quando se trata de attrahir os outros, de os enfeitiçar e de os fazer escravos da sua idéa e instrumentos do seu plano; absolutamente despido de toda a caridade e de todo o affecto quando o instrumento deixa de servir, e quando o escravo pede em paga uma pouca de dedicação e um pouco de sacrificio. Um dos homens mais captivadores que tem havido foi Napoleão. Prendia, subjugava com o encanto da sua apparente bondade, inspirava dedicações fanaticas, mas nunca foi bom para os outros, nunca pensou na felicidade alheia. Entregue exclusivamente ao seu pensamento ambicioso, á grandeza da sua idéa gigante, absorvia-se todo n’ella, bastante habil para se não esquecer de captar aquelles de que precisava, o exercito, o povo, os principes, o Papa, as mulheres, os artistas, e incapaz de fazer um sacrificio a uma mulher, ou de ter dó de um velho! Impede isso por acaso que a historia não deixe de reconhecer a grandeza excepcional do seu genio e a obra maravilhosa que executou, e que ainda está de pé, porque a verdade é que o organismo da França é hoje ainda o que elle construiu, e portanto o organismo da Europa continental tambem que por elle se modelou?[3] Ninguem pintou melhor o infante do que o sr. Oliveira Martins no seu admiravel livro Os filhos de D. João I:[4] duro, sem bondade, asceta do pensamento. E, se outra coisa fosse, poderia por acaso levar por deante uma obra em que era indispensavel a energia, a perseverança e a implacavel obstinação? Sympathicos são seus tres irmãos, D. Duarte, D. Pedro e D. Fernando, que o coadjuvam, que o admiram, que a elle se sacrificam. Mas D. Henrique é um solitario, como todos os que têem a allucinação de uma missão divina. Todo se abraza na embriaguez do mar, no sonho das vagas regiões longiquas, na procura da India, d’essa India triplice e maravilhosa, que, depois do livro de Marco Polo, sobretudo, toma as proporções phantasticas de uma d’essas cavernas das Mil e Uma Noites, illuminadas pelas fulgurações das pedras preciosas, pelo fulvo scintillar do oiro, pela nitida brancura da prata. Essa conquista do mar quel-a toda para si e isso lhe lançam em rosto os seus modernos detractores, como os bourbonicos lançavam em rosto a Napoleão não querer ser logar-tenente de Luiz XVIII e os republicanos não se contentar com o consulado electivo — queria-o para si e para a ordem de Christo que era a sua guarda pretoriana. Auxilia-o D. Pedro nas suas investigações, traz-lhe o fructo das suas viagens, auxilia-o D. Fernando na empreza de Tanger, d’essa cidade maritima que elle cubiça como um ponto de partida mais seguro para as suas expedições navaes; mas D. Fernando encontra n’elle um debil auxiliar quando vem a grave questão do seu captiveiro, D. Pedro, um indifferente, quasi um inimigo, na terrivel contenda em que estão em jogo a sua vida e a sua honra; é que todas as faculdades da sua alma estão concentradas na sua grande empreza. Mais do que o doge de Veneza elle casou com a vaga atlantica. Deu-lhe todos os affectos e toda a pureza da sua alma, as faculdades do seu espirito. Por ella captivou com as suas promessas e com as suas seducções quantos estrangeiros o podiam ajudar na sua empreza, por ella abstrahia de todas as ambições que não fossem a de conquistar para si, para a historia, para a fé e para a sciencia um immenso imperio ultramarino. É um monge militar isolado no seu castello sobre o Oceano, como os primeiros mestres do Templo, seus antecessores, nos seus castellos da Palestina. A sua Jerusalem é a Aryn que elle procura ainda, talvez, no meio dos fogos da zona torrida, o seu Santo Sepulchro é esse mar immenso, onde se sepulta o sol, e de que elle affugenta, com a prôa das suas caravellas, como os Templarios os Sarracenos com a ponta das suas lanças, os pavores da superstição, os erros da sciencia e as illusões da fé.
Que outros condemnem esse implacavel sonhador que fechou a sua alma aos affectos humanos para todo se concentrar na paixão por um ideal que a um tempo o illumina e o allucina! Que outros lamentem esse egoismo de namorado, que o torna surdo para todas as supplicas e inaccessivel a todas as dedicações, mas que nós Portuguezes lhe regateemos a gloria, e lhe amesquinhemos o caracter, e lhe neguemos a indulgencia que a fraca humanidade deve ter com os defeitos que acompanham fatalmente as grandes qualidades, quando a esse egoismo sagrado, a essa perseverança intransigente devemos o termos dado ao mundo a mais assombrosa conquista, e termos conquistado para nós uma gloria que ainda hoje illumina as nossas ruinas, e dá á nossa decadencia a purpura e o oiro de um pôr de sol explendido, isso é o que se não comprehende, e o que se pode considerar como uma das mais flagrantes injustiças e das mais negras ingratidões que podem macular um povo.
Notas
editar- ↑ Os cavalleiros portuguezes estavam no exercito do duque de Borgonha, que defendia Arras, e foram ao combate commandados pelo sire de Cottebrune; os seus adversarios, pertencentes ao exercito de Carlos VI, eram commandados pelo bastardo de Bourbon. Veja-se a nossa Historia de Portugal, tom. III, pag. 267, nota (2.ª edição).
- ↑ Historia da Universidade, tom. I, cap. III, pag. 137. (Lisboa, 1892.) A discordancia em que estamos n’este ponto com o illustre professor não nos impede de reconhecermos que o seu livro é monumental. O erudito, a cuja opinião elle se encosta, é João Teixeira Soares, aliás um açoriano benemerito, mas um dos taes que se deixam arrastar pelo prazer de demolir uma gloria consagrada.
- ↑ Veja-se o retrato de Napoleão traçado primorosamente por Taine nas suas admiraveis Origines de la France contemporaine.
- ↑ Os filhos de D. João I, cap. III, A villa do infante, pag. 59 e segg.