VII

Preludios açorianos e madeirenses do descobrimento da America


Emquanto os Portuguezes proseguiam intrepidamente para o sul no caminho da zona torrida o que se fazia para o Occidente? Era possivel, era natural, que a descoberta do Porto Santo, da Madeira e dos Açores satisfizesse completamente a curiosidade portugueza? Os que defendem as duas versões ácerca do descobrimento dos dois archipelagos commettem uns e outros um erro capital; uns suppondo que os Portuguezes não os encontraram senão porque antes d’elles lá tinham aportado outros navegadores, de cujas informações os nossos se aproveitaram, os outros imaginando que antes das descobertas portuguezas se considerava como completamente vasia de ilhas a vasta extensão do Atlantico. Descobertas positivas não as podia ter havido, porque ás terras que podessem ter-se descoberto aconteceria o que succedeu ás Canarias, que logo foram cubiçadas e disputadas. O que havia era o sonho celtico das ilhas mysteriosas no seio do Atlantico, e em busca d’esse sonho quantos navios teriam corrido, sem que das suas tripulações voltasse ás costas européas nem sequer o cadaver do cão da frota legendaria de Brékan. Mas essas ilhas phantásticas estavam profundamente radicadas no animo dos homens da edade média, e a ilha de S. Brandam tinha para elles existencia tão real como o reino mysterioso do Prestes João. Ah! quem a encontrasse, quem arribasse a uma ilha qualquer no meio da vastidão dos mares, como voltaria contente e triumphante do seu achado, doido de alegria por ter conseguido emfim fixar n’um ponto do Oceano alguma d’essas ilhas que fluctuavam no mar da lenda, filhas da miragem do mar como da miragem do sonho; ilhas phantasticas como o navio phantasma da lenda hollandeza, que todos suppunham avistar ao longe, recortando na tela de oiro e purpura do horizonte o fino perfil das suas arvores, ou a ondulosa curva das suas montanhas!

Deserto o Oceano? Não. Estava povoado, pelo contrario, de muito mais ilhas do que as que se encontraram! E quando o infante D. Henrique mandou os seus navegantes procural-as, é porque tinha a convicção profunda de que existiam, e os seus audazes marinheiros o que julgavam era seguir o sulco espumoso do barco do santo irlandez, como quando seguiam, segundo a phrase de Colombo, o vôo das aves que os conduziam a terra, cuidavam seguir talvez, alados mensageiros celestes que os conduziam ás ilhas de promissão, ou pelo contrario demonios encarnados em passaros, que os arrastavam ás ilhas infernaes.

Os que trazem com ufania, como uma conquista para a historia, a lenda da ilha da Madeira descoberta antes de Zarco, ou a dos Açores antes de Velho Cabral, partem da errada supposição de que esses ignotos descobridores deram grande novidade aos Portuguezes dizendo-lhes que havia ilhas no Oceano! Bem convencidos estavam d’isso, mas a questão era encontral-as. Feliz o paiz que as descobrisse! Não as largava facilmente! A posse tranquilla e indisputada da Madeira e dos Açores prova bem que ninguem punha em duvida o direito de prioridade que os Portuguezes se arrogavam.

O que faziam porém os colonos d’essas novas ilhas, tudo gente marinheira e aventurosa, que não ficava socegada no pequeno pedaço de terra em que se achava confinada? N’elles se condensava, pela sua posição especial, pelo espirito mais aventuroso que a essas ilhas os levou, a tendencia emigrante dos Portuguezes. Não é essa tendencia a que ainda hoje domina nos habitantes d’essas ilhas? Não foram sempre os Madeirenses e os Açorianos os que predominaram na colonisação portugueza? Não foram elles, sobretudo, que fizeram o Brazil colonial? Não são os Açorianos quasi exclusivamente os Portuguezes que vamos encontrar na America do Norte, em Boston, e até na California, e, o que é mais estranho ainda, á beira da rede dos lagos que separam os Estados Unidos do Canadá, sendo tão numerosa a colonia portugueza de Erié, que alli se publica um jornal portuguez, chamado o Erié tambem? Não são os Madeirenses que nós vamos encontrar em Demerara, nas ilhas Sandwich, e que estão formando, em Angola, o nucleo das colonias do plan’alto de Mossamedes? E se isto acontece hoje, no nosso periodo de decadencia, de repouso, quando esse instincto emigrante é perfeitamente atavico — não era bem natural que acontecesse de um modo muito mais independente n’esse periodo de vigor e de febre descobridora, e quando os que habitavam a Madeira e os Açores não eram os que lá tinham nascido, mas sim os proprios que as tinham descoberto, ou os que primeiro, idos de Portugal, as tinham colonisado?

Na descoberta africana logo encontramos os Madeirenses. Entre os mais audaciosos descobridores conta-se Alvaro Fernandes, sobrinho de João Gonçalves Zarco, e com elle o seu companheiro de seu tio no descobrimento do archipelago, Tristão Vaz Teixeira.[1] E acabemos por uma vez com a accusação que se nos fez de que nos limitámos a uma navegação costeira, e de que receiavamos sair para o mar alto! Como se pode dizer isso de um povo, cujos primeiros descobrimentos exactamente no mar alto é que se fazem, cujos coups d’essai são as viagens em que encontram a Madeira e sobretudo os Açores, cercados de um mar tempestuoso e terrivel, ainda hoje considerado como o de mais aspera educação para o marinheiro, e que estão mais avançados para o occidente do que a propria Islandia, essa ultima Thule, onde parou por tanto tempo amedrontada a navegação antiga?

Mas, percebe-se bem que, desde o momento que o fito das viagens portuguezas era chegar á India torneando a Africa, desde o momento que a geographia systematica dos antigos lhes dizia que logo abaixo de Marrocos principiava a Ethiopia, e que a costa logo fazia uma inflexão para léste; era essa volta da costa que elles sobretudo procuravam encontrar, e decerto não a encontravam abandonando a costa. E, comtudo, quantas vezes, fatigados d’essa investigação inutil, soltavam os nossos navegadores as velas ás brizas do Oceano, e percorriam de um vôo um grande espaço, chegando a um ponto muito adiantado da Africa e tendo depois de voltar atraz para explorar miudamente o trato de costa que tinham deixado em branco![2] Navegadores do seculo XV não podiam positivamente achar-se confinados nos estreitos limites de umas ilhas perdidas no meio do Oceano, sem terem a tentação irresistivel de sondar esse mar mysterioso, sobretudo quando a lenda confirmada pela sciencia conjectural d’esse tempo lhes fallava de ilhas maravilhosas a que não tinham chegado ainda, e quando as vagas do Oceano lhes traziam a cada instante a prova evidentissima de que para além d’esse horizonte branqueado pela espuma das vagas distantes, havia terras, terras habitadas, terras cobertas de vegetação. Sobretudo nos Açores os documentos multiplicavam-se e as tentações eram mais fortes. As ilhas não se apinhavam n’um só grupo como Madeira e Porto Santo. Havia ilhas destacadas como as vedetas d’essa guarda avançada da civilisação europea. Ainda se perceberia que taes tentativas se não fizessem, se não se houvesse chegado á ilha das Flores e á ilha do Corvo. Podia-se comprehender então que, satisfeitos com as ilhas paradisiacas que tinham encontrado, como a deleitosa S. Miguel, ou a fertilissima Terceira, se tivessem deixado ficar n’um ocio de Capua, sentimento aliás bem pouco natural em açorianos, e em açorianos d’esse tempo. Mas a descoberta do Corvo e da ilha das Flores mostram claramente que se não acalmára a sua irrequieta actividade, e que o Oceano continuava a ser sondado por esses audazes marinheiros, que são hoje accusados de não ousarem arriscar-se ás aventuras do alto mar!

«A Islandia, os Açores, e as Canarias, diz Humboldt, são os pontos de paragem que mais importante papel representaram na historia d’estas descobertas e da civilisação, quer dizer na série dos meios que os povos do Occidente empregaram para estender a esphera da sua actividade e para entrar em relação com as partes do mundo que lhes tinham ficado desconhecidas.» Em nota accrescenta Humboldt: «Ha da extremidade septentrional da Escocia á Islandia 162 leguas marinhas; da Islandia á extremidade sudoeste da Groenlandia 240 leguas; d’esta extremidade ás costas do Lavrador 140 leguas; á embocadura do S. Lourenço 260; da Islandia directamente ao Lavrador 380 leguas. Ha de Portugal (embocadura do Tejo) aos Açores (S. Miguel) 247 leguas; dos Açores (Corvo) á Nova Escocia 412 leguas!»[3] É isto o que explica de um modo bem positivo como foi que os intrépidos marinheiros da Islandia poderam encontrar a America, e não a poderam encontrar os não menos intrépidos marinheiros dos Açores. É isto o que responde, de um modo bem cathegorico, tambem, aos que dizem que os Portuguezes não largavam as costas. Um povo que nas suas primeiras viagens percorria 247 leguas maritimas para encontrar um ponto perdido no meio do Oceano, e que o fixava, e que n’essas ilhas ou proximas ou distantes estabelecia colonias regulares e em constante communicação com a metropole, era um povo que se encontrava bem mais apto do que outro qualquer para as grandes navegações maritimas, era um povo que os pavores do Oceano não obrigariam a desistir de tentar novas emprezas. Ah! se a Providencia, em vez de ter agrupado os Açores n’um só ponto, destacando apenas como sentinellas avançadas as Flores e o Corvo, as tivesse disseminado por toda a extensão do Atlantico, fazendo de todas ellas os marcos milliarios d’esse vasto percurso maritimo, como foram as Orcades, as Feroé, a Islandia e a Groenlandia para o continente norte-americano, seria talvez Colombo, mas Colombo em navios portuguezes, que teria realizado a empreza que de tão justa gloria rodeiou o seu nome. Mas razão tem de sobra o nosso illustre patricio, o eminente escriptor Ernesto do Canto, quando diz: «Foi certamente com a pratica da navegação para os Açores que os pilotos portuguezes se aperfeiçoaram nos processos de observar os astros para d’essas observações deduzirem a sua posição nas solidões do Oceano ou das terras que demandavam. Sem esta escola todo o progresso seria lento. A existencia e o achado do archipelago açoriano foi pois a causa determinante das posteriores e importantes descobertas do seculo XV[4] E razão tem ainda quando encima o capitulo IV da sua obra com esta affirmação justiceira: «Os Açores foram um posto avançado para a descoberta da America e um fóco de irradiação para as explorações maritimas.»[5] Como podiam os açorianos pois desprender a sua attenção d’essas terras do occidente se ellas a cada instante se faziam lembradas, arrojando-lhes troncos de arvore, pedaços de madeira lavrada, canoas e até cadaveres de homens de estranha physionomia?[6]Era o que succedia tambem na Irlanda, e o que tambem incitava os Irlandezes a procurar essas mysteriosas terras. Note-se, porém, que as circumstancias eram um pouco differentes. O genio aventuroso e emigrante dos celtas da Irlanda podia-os levar, e levava-os effectivamente, a navegar para os lados occidentaes; em todo o caso os Irlandezes estavam na sua patria e na sua casa, viviam na terra em que tinham nascido, prendiam-se ao solo por estas mil raizes tenues e poderosissimas que reagem insensivelmente contra o espirito de aventura, emquanto que esses primeiros colonos dos Açores, transplantados do solo natal, arrastados alli pelo desejo de tentar fortuna, achavam-se já elles proprios em plena aventura, estavam fundeados no meio do Oceano, e emquanto esse navio, porque até as agitações vulcanicas das ilhas faziam com que o solo lhes palpitasse debaixo dos pés como a tolda de uma embarcação, se não tornava para elles uma nova patria, estavam promptos sempre a saltar para as lanchas e a ir demandar nova poisada. Succedia um pouco a mesma coisa aos Madeirenses, mas esses, mais proximos da Africa, menos mettidos pelo Oceano, para a Africa, que era a grande e exclusiva preoccupação portugueza, voltavam naturalmente a attenção e os esforços. Os Açorianos, destacados perfeitamente do grande corpo de exercito, fóra da corrente das navegações methodicas que o infante D. Henrique dirigia, para o occidente e só para o occidente deixaram voar as suas aspirações.

É a prova d’isso que nós encontramos no proprio Herrera quando dá conta das revelações que incitaram Colombo a intentar a sua empreza. Foi a narrativa do piloto açoriano Martim Vicente, que, navegando a 450 leguas da costa de S. Vicente, encontrou boiando nas aguas um pedaço de madeira lavrada; foi a dos mareantes, que, saindo do Fayal, correram 150 leguas ao occidente, e que, voltando, encontraram a ilha das Flores. E, como n’um escripto publicado ultimamente na Illustracion española y americana se tratava com desdem este facto, alcunhado até de phantastico, paremos um instante para mostrar a sua perfeita authenticidade.

Foi Herrera que escreveu o seguinte: «Uno llamado Diogo de Tiene (Teive), cuyo piloto Diego Velasques vezino de Palos, afirmó a Don Christoval Colon, en el monasterio de Santa Maria de la Rabida, que se perdieron de la isla del Fayal, y que anduvieron cento y cincuenta leguas por el viento Leveche, que es el Sudueste; y que á la buelta descobriron la isla de las Flores, guiandose por muchas aves que vian boiar házia allá, las quales conocieron que non eran marinas.»[7]

Lembram-se os leitores de que o proprio Christovam Colombo, no seu Itinerario, quando diz os motivos porque mudou em certa altura o rumo da sua viagem, refere que o principal foi o exemplo dos Portuguezes, que, seguindo o vôo das aves, tinham descoberto as suas ilhas.

Mas temos mais, temos o documento authentico que mostra que foi effectivamente esse Diogo de Teive que descobriu a ilha das Flores. É a carta de doação da ilha das Flores a Fernão Telles, feita por D. Affonso V em Estremoz a 28 de janeiro de 1475, e onde diz:

«Outrosim nos praz e queremos que o dito Fernão Telles tenha e haja e assim seus successores as ilhas que chamam das Flores que pouco ha que achára Diogo de Teive e João de Teive seu filho, e elle dito Fernão Telles ora houve por um contracto que fez com o dito João de Teive, filho do dito Diogo de Teive que as ditas ilhas achou e tinha, e isto n’aquella forma com aquellas condições e maneira que as elle houve do dito João de Teive e que ficaram por morte do dito seu pai e no dito contracto é contheúdo.»[8] Mas os documentos não faltam para provar a actividade febril com que os Açorianos se arrojavam ao mar Oceano. N’essa mesma carta de doação se vê que Fernão Telles era um dos exploradores ou dos emprezarios d’essas explorações:

«A nós praz, diz El-Rei, que indo elle ou mandando seus navios ou homens nas partes do mar Oceano ou alguem que por seu mandado a isso vá, lhe fazemos mercê, pura e irrevogavel doação para todo o sempre, como logo de feito fazemos, de quaesquer ilhas que elle achar ou aquelles a que as elle mandar buscar novamente e escolher para as haver de mandar povoar, não sendo pois as taes ilhas nas partes de Guiné.»[9] Felizmente os documentos publicados pelo sr. Ernesto do Canto lançam vivissima luz n’este periodo preparatorio do descobrimento da America, e explicam com uma clareza perfeita as questões relativas a Colombo e a Portugal. Assim vemos primeiramente que os Açorianos e os Madeirenses não deixam de procurar terras para o occidente, e que tratam de obter do governo as concessões necessarias para que das suas conquistas e descobertas tirem a utilidade que desejam; segundo que os reis se mostram prodigos em fazer a esses exploradores todas as concessões desejadas, comtanto que do real thesouro não tenham de gastar nem mealha, e que esses exploradores por conta propria não vão entender com os descobrimentos para o lado da Guiné, que esses reservam-n’os para si ou para a ordem de Christo os soberanos portuguezes. E tão arraigado estava no espirito dos soberanos o desdem pelas viagens occidentaes que, ainda depois de descoberta a America, o proprio Gaspar Côrte-Real fez a viagem em que descobriu a Terra-Nova completamente á sua custa.

Vejamos então a fórmula das concessões dos reis:

Temos em primeiro logar a concessão feita a 21 de junho de 1473 a Ruy Gonçalves da Camara, filho segundo de João Gonçalves Zarco, o qual manda dizer a el-rei, segundo na carta se diz, «como o seu desejo e voomtade era buscar nas partes do mar ouciano huumas ylhas para as aver de povorar e aproveytar». E o rei declara-lhe que «de huma ilha que elle perssy ou seos navyos achar, com outorga e prazer do principe meu sobre todos muyto prezado e amado filho, pura e yrrevogavell doaçom valledoyra amtre vivos, jure erdatore pera elle e todos seus erdeyros que delle decemderem assy e tam compridamente como ella a noos perteemce e de dereyto pertemcer deva e esto com todollos foros dereytos e trebutos em ella em qualquer tempo a nos poderiam perteemcer despoys que povoada seja sem acerqua de nos ficar cousa algua. E como sse começar a povoar logo lhe fazemos mercee de toda a jurdiçom civell e crime mero misto ymperoi em todallas pesoas que em ella morarem e a povoarem ressalvando somente pera nos alçada de morte ou talhamento de membros nos feitos crimes porquanto queremos e nos praz que em todo o all assy civel como crime elle aja todo sem superioridade algua. E per os homens teerem mays rezom de a hyrem povoar a nos praz que todollos vezinhos e moradores em a dita ylha ajam todollos privillegios liberdades e framquezas que per nos e nossos antecessores sam dados e concedidos e outorgados aos vezinhos e moradores da ylha da Madeira que ora he do dito duque meu muyto prezado e amado sobrinho dos quaes queremos que gouvam os vizinhos e moradores em ella fazendo certo dos privilegios da dyta ylha da Madeyra e pruvica escriptura. E per esta presemte damos licença e logar ao dito Ruy Gonçalvez a que assy fazemos mercee da dita ylha que possa dar forall aos que a ella forem morar e a povoarem. O qual forall que lhe elle assy der queremos que seja firme e valha como sse per nos lhe fosse dado e outorgado e per elle sejam obrigados todos aos juizes, e justiças, officiaes e pessoas fazer comstranger os moradores e povoadores della como os comstramgeriamos per lex e ordenações nossas que per assi teer pera ello nossa autoridade, nom menos vigor deve a teer aver como se per nos fosse fecto».[10]

Vimos que a carta de doação a Fernão Telles tambem lhe confere a posse das ilhas que descobrir, mas logo em seguida a essa carta vem outra de 10 de novembro de 1475, em que se dão umas explicações bem proprias para esclarecer as navegações d’esse tempo, e destruir completamente as mesquinhas duvidas postas ácerca da prioridade dos descobrimentos portuguezes no Atlantico por extrangeiros que só muito superficialmente estudaram a historia portugueza. Na carta de 28 de janeiro não se falava senão em ilhas que Fernão Telles mandasse povoar, e então o rei explica: «E poderia ser que em elle as assi mandamdo buscar seus navios ou jente achariam as sete cidades ou alguuas outras ilhas poboadas que ao presemte nom som navegadas, nem achadas, nem trautadas per meus naturaaes e se poderia dizer que a mercee que lhe assi tenho fecto nom se deve a ellas estender per assi serem poboadas.»[11] E declara então que a mercê tambem a essas se estende e que dá a Fernão Telles sobre os habitantes d’essas ilhas os mesmos direitos que lhe concede sobre os povoadores que elle mandar para as ilhas desertas.

O que se vê d’aqui? Vê-se que os Portuguezes procuravam muito ingenuamente no Oceano as ilhas que a phantasia dos cartographos estampava nos mappas, que tinham viva crença na existencia verdadeira da ilha das Sete Cidades e na ilha de S. Brandão, e da Mayda e da Mão de Satanaz, da Antilha e da ilha do Brazil, e em todas as que nos mappas appareciam, filhas das conjecturas da geographia medieval ou antiga, e, se effectivamente as encontrassem, longe de quererem fazer suppor ao mundo que tinham encontrado terras cuja existencia era de todos desconhecida, se ufanariam de ter achado o que no mappa se designava, e a descoberta das ilhas desertas e vulcanicas dos Açores, e da propria ilha da Madeira toda coberta de bosques não era para elles senão um desapontamento, porque as ilhas que elles cubiçavam, as ilhas celebres, as ilhas dos mappas, essas fugiam-lhes constantemente das mãos.

Que espanto seria o d’esses navegadores, e dos seus contemporaneos se podessem ter conhecimento das duvidas modernas! Como achariam extranho que se lhes dissesse que só encontraram os Açores, porque a posição dos Açores estava indicada nos mappas, quando elles levaram annos a passar de umas para as outras ilhas que teriam n’uma só viagem encontrado se fosse pelos taes mappas que se guiassem![12] e como o infante D. Henrique ficaria surprehendido ao ver Humboldt encontrar a prova do conhecimento anterior dos Açores no facto d’elle ter dito a Gonçalo Velho Cabral, depois da descoberta das Formigas, que voltasse porque havia de encontrar nas suas proximidades uma ilha! muitas ilhas era o que deveria dizer-lhe, visto que o mappa lhe dava um archipelago. Como se espantaria de que um homem de sciencia como Humboldt não percebesse que o descobrimento de uns recifes como as Formigas com muita probabilidade indicava a proximidade de terra! Mas o grande espirito do sabio allemão estava evidentemente coberto com a nuvem do preconceito.

Assim vemos que o sonho das terras para o occidente e o sonho das ilhas do mar Oceano provocou a mente dos açorianos e dos madeirenses a arrojar-se ás perigosas aventuras. O rei facultava aos aventureiros tudo o que elles podiam desejar, menos dinheiro. A Guiné e o caminho para a India por esse lado eram a preoccupação constante do governo portuguez, que em todas as cartas estabelece bem o principio de que elle faz todas essas concessões, comtanto que as ilhas descobertas não fiquem nos mares da Guiné. Basta a leitura d’estas cartas para que se veja a impossibilidade do legendario descobrimento da Terra Nova por João Vaz Côrte Real, com que se tem procurado attenuar a gloria de Colombo. Percebe-se logo que o governo portuguez não podia dar a capitania da ilha Terceira em recompensa a quem descobrisse a Terra Nova, quando o que elle promettia aos descobridores era simplesmente a capitania das terras que descobrissem como fizera com a ilha da Madeira. E seria singular tambem que o descobridor de uma nova ilha, em vez de receber a capitania d’essa ilha e de a povoar e aproveitar, a abandonasse completamente e recebesse como premio d’esse descobrimento inutil a capitania de uma ilha já povoada e aproveitada, isto quando em 1473 o rei D. Affonso V, deferindo o requerimento de Ruy Gonçalves da Camara, dizia: «E visto per nos sseu requerimento e por que a nos perteemce primcipalmente as cousas desertas e nom aproveytadas fazer povoar e aproveytar pelo carrego que per deos nos he dado emquamto per sua graça tinhamos o regimento destes rregnos e senhorios que teemos».

Veremos no capitulo immediato como era absurdo que o rei fizesse a Toscanelli perguntas ácerca do problema do occidente no mesmo anno em que João Vaz Côrte Real lh’o resolvia quasi, e como é mais absurdo ainda que D. João II, rei habilissimo e zeloso do seu dominio, estabelecesse no tratado de Tordesillas um artigo transitorio que sacrificava, sem uma palavra de cedencia ao menos, terra descoberta por Portuguezes; agora mostraremos apenas que tudo é falso no que se allega com relação ao descobrimento de João Vaz Côrte Real. A falta de seriedade historica do auctor da Historia Insulana, Antonio Cordeiro, não deixára de impressionar os que mais se interessavam por essa reinvidicação portugueza, mas reanimava-os um pouco o verem que a noticia já Antonio Cordeiro a encontrára em Gaspar Fructuoso, auctor das Saudades da terra; mas Gaspar Fructuoso pertence tambem ao grupo d’aquelles historiadores que entendem que são licitas as mentiras quando d’ellas pode resultar a glorificação de um paiz, principio leviano contra o qual protestamos quando Villaut de Bellefond o aproveita contra nós e em beneficio da Normandia, mas que nos parece bem quando redunda em nosso favor. Gaspar Fructuoso, apesar de ter um merito superior ao do seu desastrado copista que outra coisa não é Antonio Cordeiro, não deixa de ser um auctor que acceita todas as lendas quando as reputa honrosas para os seus heroes.[13] Ora Antonio Cordeiro diz que em 1464 foram dadas as capitanias da ilha Terceira a Alvaro Martins Homem e João Vaz Côrte Real como recompensa da descoberta da Terra do Bacalhau que por ordem regia tinham effectuado.

Em primeiro logar não era o rei que dava as capitanias dos Açores que pertenciam ao donatario seu irmão D. Fernando; em segundo logar a doação da capitania de Angra é feita pela infanta D. Beatriz, viuva de D. Fernando, a 2 de abril de 1474, nem ella a podia ter feito em 1464, porque então ainda vivia seu marido; em terceiro logar a infanta o que recompensa são «os serviços que João Vaz Côrte Real, fidalgo da casa do dito senhor meu filho, fez a seu padre que Deus haja, depois a mim e a elle»;[14] em quarto logar Alvaro Martins já tinha uma capitania da ilha Terceira muito antes de João Vaz, tanto que a carta de doação a Alvaro Martins, em 17 de fevereiro de 1474, allega o seguinte motivo: «Considerando eu como entre Jacome Bruges e Alvaro Martins, capitão da sua ilha Terceira de Jesus Christo, sempre houve alguns debates por a terra da dita ilha não se ter de todo partida...»[15] Gaspar Fructuoso o que diz simplesmente, e n’um capitulo inçado de erros historicos evidentissimos, recheado de lendas, e em que parece até que ignora a existencia do grande Gaspar Côrte Real, é que, «vindo João Vaz Côrte Real do descobrimento da Terra Nova dos Bacalhaus, que por mandado de el-rei foi fazer, lhe foi dada a capitania de Angra da Ilha Terceira e da Ilha de S. Jorge.»[16] Sem nos alongarmos em considerações basta que citemos os seguintes documentos: a carta de doação de 12 de maio de 1500, em que D. Manuel concede a Gaspar Côrte Real as terras que descobrir, per sy e a sua custa... por ho asy querer fazer com tanto trabalho e perigo,[17] e a carta de doação de 17 de setembro de 1506, que transfere para Vasco Annes Côrte Real a doação da Terra Nova, «avemdo respeyto e lembramça como o dito Gaspar Corte Real seu irmão ffoy o primeiro descobridor das ditas teras[18] O que se deprehende de tudo o que diz Gaspar Fructuoso é que João Vaz Côrte Real era nos Açores um heroe legendario, um forte e um intrepido. Formara-se a lenda em torno d’elle. Pae de uma familia de navegadores, foi de certo navegador elle mesmo. Como tantos outros dos seus patricios, procurou tambem talvez, como elles, desvendar os segredos do occidente, mas voltou sem ter encontrado novas ilhas e novas terras. Teria ido talvez mais longe do que Diogo de Teive, que chegou a cento e cincoenta leguas ao occidente do Fayal, mas, se o fez, desanimou tambem e voltou sem encontrar a cubiçada terra. Foi mais feliz seu filho, e mais feliz porque o exemplo de Colombo pozera termo aos desanimos, e se nova prova fosse necessaria basta lembrarmo-nos que Martim de Behaim, o famoso geographo, que acariciou ardentemente o mesmo ideal de Colombo, que tudo queria saber do que se passava para o occidente, que viveu nos Açores em alta situação, que alli trabalhou, pensou e elaborou os seus trabalhos geographicos, ao fazer o globo de Nuremberg, em 1492, n’elle não inseriu a Terra Nova dos Bacalhaus, apesar de se não esquecer de inserir as ilhas phantasiadas.

É no meio d’este grupo de marinheiros intrepidos, devorados da curiosidade do Oceano, que não pensam senão nas suas secretas maravilhas, que não sonham senão com prestigiosas terras, cercadas por todas as miragens do mar e por todas as miragens da phantasia, por todas as confidencias mysteriosas que as correntes pelagicas lhes trazem de remotos mundos, é n’este synhedrio de pilotos que não ignoram o que dizem os livros, mas que sabem sobretudo o que diz o livro immenso do mar, que apparece de subito a figura pensativa e ardente de Christovam Colombo. N’essas torres de atalaya, como que erguidas pela natureza no seio dos mares, debruça-se a mirar sofregamente o Oceano o rosto ardente do Genovez. Era o homem providencial, um d’estes homens em que se incarna fatalmente a idéa que fluctúa sobre uma geração revolvida pela ancia do desconhecido no mundo physico ou no mundo moral. Se o problema do Occidente preoccupa já todos os espiritos na Europa, nos Açores e na Madeira apresenta-se com dobrada intensidade. Não volta um navio do occidente que não se trate logo de saber se traz comsigo a noticia de um novo descobrimento. Por uma coincidencia singular quasi ao mesmo tempo apparece nos Açores um homem intelligente e sabio, Martim de Behaim, que se sente tambem arrastado pela invencivel convicção de que ha terras para o lado do occidente, e que é por alli o verdadeiro caminho da India. Esse homem tem na sua vida singulares relações com a de Colombo. Este casou com a filha do donatario de Porto-Santo, aquelle com a do donatario do Fayal; um foi á Guiné nos navios portuguezes, o outro foi em navios portuguezes até ao Zaire. Mas um é allemão, um diplomata, um burguez, um discipulo correcto e regular de um dos maiores sabios da Europa, Regiomontanus; o outro é um italiano, um sonhador, um irregular, um estudante incompleto. O primeiro encontra facil accesso junto aos principes e nas universidades, o outro não acha muitas vezes nos altos logares senão repulsas e desdens; mas este é um perseverante, um ardente, um allucinado, o seu convencimento é uma paixão que o absorve, que o devora. O que actua n’elle não é tanto o raciocinio como a visão. A alma do infante D. Henrique parece renascer n’elle. Passou de Sagres para o Porto-Santo o vulto do asceta. Secularisou-se apenas; já não é o monge militar, é o cavalleiro andante, mais affectivo, mais dulcificado pelo seu conhecimento do amor, mas tendo a mesma paixão pelos ideaes da fé e da sciencia. E como sempre são estes inspirados os que attraem por um magnetismo indizivel as idéas audaciosas que fluctuam no ar, como em D. Henrique se incarnaram todas as aspirações de um mundo que anceia por quebrar as grades do carcere em que a tradição o encerra, foi tambem em Colombo que se incarnaram todas essas idéas que pairavam na atmosphera do seculo XV, e muito especialmente na atmosphera açoriana e madeirense. Triumphou mais uma vez o sonho sobre a razão, a dilatação da phantasia inflammada sobre o trabalho mecanico e lento do raciocinio, o meridional expansivo e apaixonado sobre o septentrional fleugmatico e frio, e foi Christovam Colombo e não Martim de Behaim quem resolveu o segundo dos grandes problemas geographicos.


  1. Tristão Vaz Teixeira, foi na grande expedição de 1445, de que fazia parte Soeiro da Costa. Alvaro Fernandes tornou-se celebre sobretudo pelo descobrimento da Serra Leôa.
  2. Alvaro Fernandes, por exemplo, foi de uma vez do Cabo Verde á Serra Leôa, e depois Cadamosto e outros exploraram cuidadosamente a costa intermedia, fazendo então viagem como se faz, quando se quer estudar uma costa. «A nossa navegação diz o viajante italiano, sempre foi de dia, lançando ancora todas as tardes ao sol posto com dez ou doze braças de agua.» Navegações de Cadamosto (traducção portugueza) pag. 51.
  3. Histoire de la géographie, etc., tom. II, pag. 56 e 57.
  4. Os Côrte-Reaes, pag. 61. (Ponta-Delgada, 1883).
  5. Ibid., pag. 57.
  6. Veja-se Herrera, Historia general de los hechos castellanos en las islas y tierra firme del mar oceano, tom. I, cap. II e III, pag. 4 a 6. (Madrid, 1601).
  7. Veja-se Herrera, Historia general de los hechos castellanos en las islas y tierra firme del mar oceano, tom. I, cap. II e III, pag. 4 a 6. (Madrid, 1601).
  8. Publicado no Archivo dos Açores, tom. I, pag. 24.
  9. Publicado no Archivo dos Açores, tom. I, pag. 22.
  10. Publicado pelo sr. Ernesto do Canto, nos Côrtes-Reaes, pag. 62.
  11. Publicado pelo sr. Ernesto do Canto, nos Côrte-Reaes, pag. 63.
  12. É o proprio Humboldt, que, referindo-se ás epochas do encontro das ilhas diz: «Ces époques sont, pour l’écueil des Formigas, 1431; pour l’île Santa Maria, 1432; pour San Miguel 1444; pour Terceira, San Jorge et Fayal, 1449; pour Graciosa, 1453. La découverte des îles les plus occidentales, Flores et Corvo, paraît antérieure à 1449, mais cette date est moins précise». Hist. de la géographie, etc., tom. II, pag. 105.
  13. Os Côrtes-Reaes, pag. 61.
  14. Assim de João Vaz Côrte Real não hesito em referir que se dizia que foi elle quem descobrira a ilha Terceira e a de S. Jorge e que por isso recebera a capitania das duas ilhas (!) Cabo Verde e o Brazil (!!). Tambem a respeito da força de João Vaz conta com a maior seriedade, e como facto authentico, uma d’estas lendas que atravessam os seculos, com as suas variantes, ácerca de homens famosos pela sua força muscular. Assim diz, que, estando João Vaz Côrte Real no Algarve a passeiar na sua quinta, veiu visital-o um castelhano muito forçoso, que tranquillamente, passando n’uma alameda de marmeleiros, os foi arrancando de um e de outro lado, pondo-lhes as raizes ao sol, João Vaz não fez a mais leve observação, mas apanhando os marmellos, apertou-os na mão e esmagou-os completamente não lhe ficando na mão senão o bagaço. É uma variante da historia do ferrador, um Mauricio de Sarce ou um D. Pedro II de Portugal. O rei ou o principe partia com a maior facilidade cada ferradura que o ferrador lhe apresentava, dizendo-lhe que não era boa, e o ferrador calado. Quando o alto personagem, pagando generosamente a sua ostentação de força, deu uma moeda de ouro ao ferrador, este partiu-a dizendo que não era boa. Como se vê, é o conto popular sempre com a mesma forma, repetida por um escriptor crendeiro, cujo testemunho tem comtudo servido para que escriptores serios percam o seu tempo com umas das suas lendas!
  15. Os Côrte-Reaes, pag. 36.
  16. Ibid., pag. 35.
  17. Os Côrte-Reaes, pag. 19.
  18. Arch. Nac. da Torre do Tombo, liv. 49 de D. João III, fl. 243, verso. Transcripto nos Côrte-Reaes, pag. 121 a 125.