Prescindamos agora do terreno concludentemente reivindicado contra as praxes do abuso pelo nosso raciocínio de ontem, e deixemos a polícia na fruição das vantagens da teoria corrente, admitindo a jurisprudência que estende o inquérito policial da lei de 1871 aos delitos não-comuns, se bem daí resulte, por corolário inelutável, a intrusão desse elemento processual até nos crimes militares. Para liberalizar essa concessão aos interesses do Governo, teremos de supor que, na linguagem daquela reforma, o adjetivo comuns, invariavelmente associado, no estatuto do inquérito policial, à expressão crimes¸ não passa de uma superfluidade, e que, dizendo “crimes comuns”, o legislador quis abranger toda espécie de crimes.

Ainda ensanchadas assim as atribuições policiais, e compreendido destarte na esfera do inquérito o delito em questão, apesar de não-comum, não pode o arbítrio dessa autoridade transpor as raias, que lhe traça, em várias disposições cuja clareza não se pode iludir, o decr. nº 4.824. Uma delas é a do art. 42, nº 7, onde se determina que “todas as diligências relativas ao inquérito serão feitas no prazo improrrogável de cinco dias”. A brevidade do prazo, circunscrito ao termo de cinco dias com a cláusula de improrrogabilidade, era um círculo de ferro oposto ao indefinido alongamento dos inquéritos e sua transformação em devassas, mais ou menos opressivas. Desse freio muito há que não faz a polícia a menor conta. Mas, dando-lhe mesmo de barato essa conquista, já inveterada, fica uma barreira, que se não pode saltar: a do art. 42, nº 9, que põe na assimilação, sob certas reservas, do inquérito à formação da culpa o máximo limite da autoridade policial no grupo de funções que, debaixo daquele título, se lhe cometem.

“Para a notificação e comparecimento das testemunhas e mais diligências do inquérito policial se observarão, no que for aplicável, as disposições que regulam o processo de formação da culpa.”

Das duas orações sublinhadas a primeira encerra indu­bitavelmente a idéia, reconhecida em termos explícitos, de que nem todas as faculdades estatuídas para o sumário da culpa têm cabida no inquérito policial.

Mas fique, por enquanto, de parte essa ressalva.

Resta a sentença terminal, cujo raio lógico domina o período todo: nem quanto à notificação das testemunhas, nem quanto ao seu comparecimento, nem quanto às outras diligências incluídas na órbita dessa função policial excederá ela os cânones que regulam a ação da justiça na fase inicial do processo.

É contra esta fórmula, categoricamente enunciada nos textos, que se acaba de rebelar a polícia do Rio de Janeiro. É nela que o Dr. Andrade Figueira assentou a sua resistência admiravelmente correta, severamente exemplar.

Em dois caracteres diferentes pode um homem ser chamado a depor no sumário de um crime e, portanto, sob duas qualidades diversas pode ter que responder num inquérito policial.

Como testemunha.

Como réu.

Seja, porém, no papel de réu, seja no de testemunha, o meio legítimo de notificar à pessoa, de quem se trata, a injunção da autoridade há de assumir as formas legais. Ainda à presença do mais elevado tribunal ninguém pode ser constrangido a acudir, quando o chamamento não revista a solenidade que lhe imprima o cunho da origem e a força do preceito. Em matéria criminal, que sendo o caso de citação por despacho no requerimento das partes, ou mediante portaria, quando o regimento peculiar do juízo o autorizar, o modo legal de efetuar a citação é o mandado.

Assim o estatui o nosso Código do Processo, art. 81.

Tem o mandado por fim, designando o indivíduo, contra quem se endereça, inteirá-lo da citação, da autoridade que a expede, do juízo a que o chama, do objeto para que se lhe exige a presença. São garantias essenciais à responsabilidade do funcionário e aos direitos do cidadão, que o Cód. do Processo acautela no art. 82. E desses requisitos o último não é menos imprescindível que os demais.

“O mandado para a citação deve conter:

“§ 3º O fim para quê, exceto se o objeto for de segredo, declarando-se isso mesmo.”

Óbvia é a razão. Não era mister que Paula Pessoa, entre outros, a desse, como a dá, no seu comentário (p. 146, nº 771): “Aqui, como em todo o sucesso, deve haver uma justiça obtida, e não um ato de surpresa: sendo por isto que se exige o fim para quê; aliás seria uma cilada e um meio de coarctar a defesa”.

E tanto mais se impõe a especificação do fim, para que se intima o comparecimento, quanto, segundo ele, pode variar a condição do intimado, no seu direito e na sua legítima atitude. Dirigida a um réu, ou a uma testemunha, a citação geraria efeitos diversos; porque o réu tem o direito de preferir à obediência a revelia. Tal a opção que lhe permite o Cód. do Processo no art. 221:

“A falta do comparecimento do réu, sem escusa legítima, o sujeitará à pena de revelia, isto é, a decisão pela prova dos autos, sem mais ser ouvido.”

Exigindo, no instrumento da citação, a menção explícita do seu fim, teve a lei em mira notificar à pessoa citada:

1º se a autoridade a chama como testemunha, ou como réu;

2º réu, ou testemunha, a espécie, o fato, o processo, em que a requisita a depor.

A esse preceito só se pode eximir o expedidor do mandato, diz a lei, se o objeto for de segredo.

Mas, em hipótese tal, dessa particularidade mesma se fará no mandado a declaração. “Declarando-se isso mesmo”, é a frase do Código.

Só esta última declaração poderá substituir, no mandado, a primeira. Ou uma ou outra é forçosamente impreterível, para que ele satisfaça às exigências legais. E, tratando-se de solenidade prescrita, na lei, à forma do ato, a ausência dela o despe completamente do seu caráter de legalidade. Mandado, que não encerrar os caracteres enumerados no art. 82 do Cód. do Processo, não é mandado legal: não reveste a face imperativa, não tem o cunho da autoridade, não impõe a ninguém obrigação de obedecer. Será um papel sujo, a que o indivíduo em nome da sua liberdade pode e deve negar submissão.

Ora do primeiro mandado, com que os agentes da polícia se apresentaram ao Dr. Andrade Figueira, temos a contrafé no Jornal do Commercio de 11 do corrente. Nele se intimava o nosso ilustre conterrâneo, “para prestar declarações”.

Declarações, tanto as presta o réu, como a testemunha. Prestar declarações não diz, pois, se é como testemunha, ou como réu, que o citavam. O art. 82 do Código do Processo, de mais a mais, rege os mandados de citação, não os mandados de prisão, que têm nele o nome de ordens, e se orientam pelo art. 176. Logo, subentendido está que todos os mandados, cujo fim expresso não for a captura do indivíduo, terão por objeto chamá-lo a fazer declarações. Isso está implícito à citação por mandado, nos termos do art. 82. O que este, por conseguinte, pretende, nas palavras “fim para quê”, não é inteirar a pessoa de que a intimam a fazer declarações, mas avisá-la do fim, do objeto, da matéria destas.

Ao primeiro mandado, portanto, falecia a especificação legal, arbitrariamente substituída por uma variante, que lhe não equivale.

O segundo incorria na mesma lacuna; porque nele se consignava meramente a intimação, para depor debaixo de vara, sem se particularizar acerca de que exigiam do intimado que depusesse. Todo o mandado, que não for de busca, ou prisão, é de intimação para depor. Mas depor em que lide, sobre que fato, para elucidação de que assunto? Eis o fim para quê do depoimento, exigido no § 3º do art. 82, e omitido, no incidente, em ambos os mandados.

Mandados, portanto, não eram; porque não tinham a vestidura legal, porque faltava à sua entidade jurídica um dos caracteres substanciais.

Tanto bastava, para que o citado não tivesse obrigação de respeitá-los, e, se os pretendessem, como pretenderam, executar pela força, opusesse, até com armas em punho, à força da prevaricação a força do direito.

Prosseguiremos.