Todos os povos possuem uma alma — confirma Gustave Le Bon, num livro rico em observações judiciosas, apesar de alguns desacêrtos que contêm contra o Brasil[1]. Essa alma é composta de sentimentos, interesses e crenças communs. Todo povo que não tiver uma alma nessas condições, está fatalmente condemnado a morrer. A cohesão ethnica, um ideal forte, numa palavra, o culto das tradições, que são a synthese da alma das raças, eis o meio de, virilmente, um povo se manter. Dahi, a importancia maxima que devem ter as tradições pâra um paiz. Ellas são quaes muralhas cyclopicas e impassiveis, que susteem os embates sociaes e impedem as dissoluções dos povos.

Quando tristemente meditamos em que o poderio romano baqueou minado pêla invasão lenta e pacifica dos barbaros, e os annaes contemporaneos registram a espoliação de nada menos de meia duzia de paizes fracos absorvidos pêlos fortes; quando vemos o processo da «selecção natural» applicado á história da humanidade por espiritos como Bagehot[2] ou como Gumplowicz, outro darwinista em sociologia, que converte num quasi dogma scientifico êste golpeante enunciado: «a perpétua lucta das raças é a lei da história, ao passo que a paz perpétua não é sinão o sonho dos idealistas»[3]; quando sabemos estarem longe as miragens de fraternidade universal, vislumbradas por Tolstoi e Novicow, pois em plena conferência chamada da paz, em Haya, vimos querer prevalecesse o criterio da fôrça bruta sôbre o direito; quando, finalmente, assistimos á emulação das nações» que se blindam em couraças e se multiplicam em canhões, ao mesmo tempo que vão educando as massas, com o duplo fim de realizar a integração ethnica e a unificação do caracter nacional, — não é justo, sem dúvida, permaneçamos na estagnação e no desânimo!

É verdade que a transformação que, em menos de um lustro, hemos operado com intenso brilho (talvez mais rapida, afinal, que a do Japão), e a trindade olympica incorporada em Rio Branco — a propria encarnação do patriotismo illuminado —, em Ruy Barbosa — que entre os primeiros das nações foi o primeiro —, e Joaquim Nabuco — o representante masculo do atticismo da nossa raça — fartamente provam que somos capazes de demonstrações heroicas, e que o brasileiro não é assim «um typo indescriptivel, cuja energia physica e mental se enfraqueceu»[4]! Todavia, quanta ainda nos resta que fazer!

E, como os povos vivem, principalmente, de tradições, como os seres organizados vivem de luz; e, como os symbolos e as imagens são pâra os povos o que os affectos e as idéas são pâra as almas, preciso é se tenha em verdadeira conta essa questão dos emblemas nacionaes, visto delles derivar um complexo de circumstâncias que profundamente vão influir nos sentimentos de honra que se traduzem pêlas expressões — integridade territorial e unidade moral da Patria.



Ora, pâra nós, que somos um povo visceralmente idealista e apaixonadamente amigo de symbolos e de imagens, a bandeira actual, de modo algum, póde servir. Ella não passa de uma burla genuina, quer como sciencia, quer como arte, quer como symbolo, quer como ideal patriotico. Os symbolos nacionaes, por isso mesmo que pertencem ao paiz todo, devem ser imagens verdadeiras, e não falsas, vehementes, e não apagadas, da sublime e animadora religião da Patria! Precisam, por todos os meios, vibrar funda e perennemente o patriotismo, porque «o patriotismo é o tincto de conservação dos povos»[5]; e precisam satisfazer a todos os cidadãos, pois que a patria não é só a terra dos antepassados, terra patria, segundo o conceito primitivo[6], ou a nossa mãe commum, mas a patria somos nós mesmos, segundo um moderno conceito norte-americano[7].

Sendo certo que o Brasil possue symbolos tradicionaes, e até estados e cidades nossas manteem os seus, não se comprehende como a bandeira actual repellisse de tal modo a tradição, a ponto de substituir, alêm dos symbolos, a historica e patriótica legenda «Independencia ou Morte» (que é a suprema aspiração e o resumo ideal de todo um povo) por uma outra, ostensivamente filiada a uma seita reduzida!

O projecto Wenceslau Escobar, recentemente apresentado quando se concluia a impressão dêste livro, ao meu ver, não resolve a questão, porque conserva um céo que jámais foi e será céo, e porque continúa a apresentar uma imagem falsa e inconveniente da patria brasileira. E tanto é nosso aquelle trecho de céo (?) que figura na bandeira, como a outra face opposta que ahi se não representa, essa, justamente, a mais bella e a mais rica região celeste, em que mirificamente esplende o incomparável gigante Orion, com o seu lucifero cortejo... Eis uma demonstração de que um céo não se reparte: um céo é todo inteiro!

Parece incrivel que paizes como o Congo, Liberia e S. Domingos possuam bandeiras e escudos de armas superiores aos do Brasil! Nós nem ao menos temos escudo, e agóra, que se trata de dar ao supremo magistrado da República um distinctivo com o emblema nacional, convinha remediar essa falta.

A prova mais evidente da antiga e aberta impopularidade que sempre existiu contra a bandeira, é a persistência com que, de tempos a tempos, surgem, na Câmara ou no Senado, projectos de modificação da mesma. Desde a proclamação da república, em que explodiu uma franca opposição popular e se moveu uma vigorosa campanha jornalística, até agóra, que longa e perseverante serie de tentativas, públicas ou latentes, pâra modifical-a! O dia da justiça, porêm, parece approximar-se...

Só os illudidos, os ignorantes ou os particularmente interessados é que podem querer a conservação da bandeira, como está.

Alguns espiritos bem intencionados, mas que não avaliam exactamente os factos, acham que, embora errada, ridicula e banal, deve a bandeira ser mantida, porque já existe, e é tarde demais pâra emendar a mão. Porventura será logico êste modo de pensar: persistir conscientemente no êrro?! E não é certo que nunca é tarde demais pâra reparar um mal? Onde então a idéa de progresso? E pâra que existem os homens, sinão pâra aperfeiçoar as cousas?

Outros entendem que só uma revolução póde mudar o que é resultado duma revolução. Ora, as revoluções, em geral, agem precipitadamente, e só a calma posterior é que restabelece as cousas conservaveis... A história toda está cheia de exemplos de mudanças de bandeira em plena paz. E por que não ha de ser assim, quando houver conveniencia manifesta? Não é facto que a antiga metropole portugueza, ao menos secundariamente, mais de uma vez, fez alterações nas suas armas? E o Uruguay, ha pouco tempo, conforme um despacho telegraphico, não modificou a sua bandeira e os seus emblemas? E, entre nós, não é sabido que ha visiveis falhas na applicação do decr. de 19 de novembro de 1889?

Não. A refórma ha de se dar, mais cedo ou mais tarde. Si não for hoje, ha de ser ámanhã. Ella é tão fatal, como fatal é o dia succeder á noite, a verdade substituir o êrro!



Do apparecimento do projecto Celso de Sousa, em julho de 1905, sôbre a refórma da bandeira, data a idéa dêste livro. A princípio mero artigo de jornal, depois completado pâra ser lido, em parte, no Instituto Historico e Geographico de S. Paulo, e em seguida publicado na imprensa diaria, de ampliação em ampliação, veio a constituir o presente volume. A primeira parte tem por idéa capital mostrar qual a bandeira e quaes as armas que, no meu entender, deveria ter o Brasil de accôrdo com a sua história e a sua tradição. Os desenhos annexos elucidam o plano, em virtude do qual seriam reivindicados os antigos e gloriosos symbolos da nossa nacionalidade. Os applausos e os encorajamentos que á minha these hão dispensado homens eminentes, as sympathicas referencias da imprensa local e da de alguns Estados demonstram que não estou longe da razão.

A segunda parte do livro, exclusivamente relativa á bandeira actual, consta duma refutação crítica a trabalhos de indivíduos que, mais por espirito de partido e por basofia, que por amor á verdade e á conveniencia geral da Patria, entenderam de combater os meus escriptos por um processo devéras singular: tomando por alvo o nome e a obra de Eduardo Prado, sôbre o mesmo assumpto, na qual eu, nas linhas geraes e especialmente na parte astronômica, me havia baseado. Até então, julgava eu que o folheto de Eduardo fôsse o bastante pâra revelar os principaes êrros e as maiores desvantagens da bandeira actual. Mas os sophismas accumulados foram tantos, as cavillações pâra embahir a opinião pública foram de tal ordem, que me vi forçado a escrever um novo trabalho, minuciosamente apontando as falhas da bandeira, sôbre todos os pontos de vista por que a possam considerar. Tive que ser longo e desenvolver demonstrações, afim de restabelecer a verdade e defender a memória de um morto, pâra mim, querido!

Aquelles que estão affeitos a certo genero de estudos bem avaliam quanto é penoso, ás vezes, recolher um pequeno facto, verificar uma simples data! E, pâra obter o resultado definitivo da obra, acabada e impressa, com todos os elementos reunidos, e num meio em que ainda escasseam os recursos europeus, só Deus sabe quanto me custou! Em attenção ao assumpto, sempre imaginei ésta obra requintada em primores graphicos. Entretanto, diz-me a consciencia que, no momento, melhor não foi possivel conseguir. Apesar do cuidado com que se fez a revisão, escaparam alguns êrros typographicos, que o leitor facil e bondosamente corrigirá.

Os desenhos a côres, que entremeam as páginas do texto, foram feitos: as armas propriamente ditas e a bandeira, pêlo saudoso amigo Ricardo Honorato Teixeira de Carvalho, que desenhou as armas do estado do Rio de Janeiro; o escudo e os ornamentos exteriores, pêlo distincto pintor Carlos de Servi; e o trabalho chromolithographico, pêla casa Hartmann e Reichenbach. Julgo um dever de boa camaradagem consignar os no daquelles que, supportando as minhas exigencias, pacientemente cooperaram pâra a consecução do meu fim.

Quanto ao espirito geral do livro, desejo não o julguem um trabalho de imaginação e, muito menos, de estylo; mas, apenas, um esfôrço de patriotismo e de demonstração da verdade. Quasi todo elle tumultuariamente escripto, pâra occorrer a uma necessidade de momento, e ás pressas terminado, não pôde o auctor applicar-lhe aquelle grave preceito de Horacio, exigido pâra a excellencia das producções literarias... Ácima de tudo attendi á anályse imparcial dos factos e aos altos destinos da Patria, inspirando-me na sua natureza e na sua história.

Aos brasileiros de consciencia entrego, pois, êste livro, certo de que elle possa contribuir pâra a solução magna do assumpto.

Não terminarei ainda éstas palavras preliminares sem referir um facto, que a muitos, talvez, houvesse passado despercebido, e sem formular um voto. Por occasião da conferência de Haya, deu-se um incidente, secundário (é certo), mas que tem a sua significação: num projecto de bandeira internacional, então architectado[8], e em que as nações são classificadas, mais ou menos, segundo o seu poder militar, o Brasil apparece em último logar, depois da Turquia e da Rumania, da Persia e de Marrocos, — elle que já é, incontestavelmente, o primeiro paiz do mundo pêla hospitalidade prodiga e pêlo idealismo bom! Pois bem: o desejo de quem escreve éstas linhas, e que deve ser o de todo brasileiro, é que elle continue, diligente e patrioticamente, a tornar-se grande, e rico, e forte, afim de em breve hombrear com as chamadas potencias mundiaes, e vir a ser, assim, tão conhecido e respeitado quanto elle, de facto, o merece!


Praia de Guarujá (Santos) — julho de 1908.


Eurico de Goes.

Notas de rodapé editar

  1. Lois psychologiques de l′évolution des peuples.
  2. Lois identifiques du développement des nations.
  3. Gumplowicz, La lutte des races. Paris, 1893, liv. IV, cap. XXXIX, pág. 261.
  4. Agassiz, cit. por Le Bon, Lois psychologiques de l′évolution des peuples, Paris, 1907, cap. V, pág. 45, nota.
  5. Émile Bocquillon, La crise du patriotisme à l′école, Paris, 1905, introd., pág. 1.
  6. Fustel de Coulanges, La cité antique, Paris, 1905, liv. III, cap. XIII, pág. 233.
  7. Albert B. Hart, cit. por José Veríssimo, na Educação nacional, Rio de Janeiro, 1906, introd., pág. XLVII.
  8. Vide trabalho intitulado Essai de constitution internationale, redigido por Umano, Paris, 1907. A imaginária bandeira internacional, com um sol ao centro e os pavilhões nacionaes em volta, vem na capa da publicação.